sexta-feira, 25 de junho de 2010

O GOLPISTA DO ANO ('I Love You, Phillip Morris') EUA, 2009. Direção: Glenn Ficarra & John Requa

“Papai Noel às Avessas” (2003, de Terry Zwigoff), filme anteriormente roteirizado pelos diretores-roteiristas do filme ora analisado, apresenta o mesmo problema dominante que este em relação à sua apreciação receptiva/distributiva: a indefinição do tom moral que se sobrepõe à narrativa. Ou seja, se naquele filme havia um personagem voluntariamente marginalizado que, obrigado a enfrentar situações humanitariamente dignificantes, é privado pelo roteiro de sua propensão à regenerabilidade, o mesmo acontece neste filme mais recente, em que o personagem real biografado é anunciado como terminantemente confinado numa prisão durante os letreiros que antecedem os créditos finais. Entretanto, em relação ao filme dirigido por Terry Zwigoff, a estréia como diretores de Glenn Ficarra & John Requa beneficia-se de um detalhe qualitativo basilar, maravilhosamente destacado no título original do filme: a coerência emocional que permeia toda a trajetória de erros do protagonista.

Ou seja, por mais que as várias facetas de Steven Russell fossem pautadas pela execução progressiva de mentiras, conforme reclama o remetente Philip Morris, ele realmente amava este personagem e, como tal, o filme se sobressai como uma das mais inusitadas e irreverentes declarações de amor do cinema atual. O fato de esta declaração de amor ser correspondente a um romance homossexual é um detalhe brilhantemente normalizado pelo roteiro, que se beneficia de três estratégias geniais: primeiro, fazer questão de frisar que, não obstante haver uma radical mudança de comportamentos por parte do protagonista em relação à sua transmutação de marido heterossexual para golpista “bicha”, esta mudança comportamental é motivada bem mais pela assunção de uma tendência sexualista demonstrada desde a infância do que necessariamente por um pantim retratador; segundo, construir as práticas sexuais do protagonista e seus eventuais parceiros como sendo deveras naturalizadas, até mesmo em situações consideradas ofensivas para o público comum, como associar a ingestão de esperma depois de uma felação a uma declaração de afeto; e, terceiro, dissociar a estereotipia crível de alguns personagens da tendenciosa legitimação de preconceitos que pode ocorrer através do humor, visto que os roteiristas eram não somente plenamente cônscios de que isso poderia acontecer, como são plenamente fiéis à representação dos personagens, no sentido de que é plenamente sabido que a afetação exacerbada é, de fato, a característica mais perceptível na postura de alguns ‘gays’.


A inteligência sobressalente da seqüência que deixa explícito este terceiro estratagema merece uma descrição pormenorizada, em virtude não somente de seus potenciais narrativos básicos, mas também porque é a maior ferramenta discursiva contra espectadores precipitadamente acríticos que tendem a tachar o filme de “homofóbico”, quando ele opera justamente pela lógica inversa: a normalização impressionante dos comportamentos sexuais supostamente pervertidos dos personagens. Se eles são julgados como desviantes, isso se deve a rupturas legislativas bem mais amplas, que trazem novamente à tona a indefinição de tom moral destacada no início deste texto e que voltará na conclusão do mesmo.

Mas, antes, regressemos à descrição da cena que se configura como a mais importante para a interpretação discursivamente laudatória deste filme: num dado momento, o protagonista Steven Russell, já trabalhando como consultor financeiro de uma grande empresa, conta a uma secretária um chiste anedótico envolvendo um advogado qualquer que cobra uma grande quantia para que seu cliente possa-lhe fazer três perguntas, sendo este último lesado até mesmo neste direito numérico básico. Em seguida, vemos a mesma piada ser recontada por diversos outros personagens figurantes, até que, após várias versões levemente modificadas da mesma piada, vemos Steven Russell ouvir a mesma estrutura cômica que difundira ser-lhe devolvida pelo patrão com uma diferença crucial: os dois interlocutores da piada eram agora um negro e um judeu, ambos tipos humanos caracteristicamente vitimados por preconceitos humorísticos alheios. Detalhe: depois que acompanhamos este longo processo de demonstração de como o humor aparentemente inofensivo serve para ofender determinadas configurações humanas, descobrimos que a transmissão inicial desta blague tinha uma função deveras pragmática: distrair a secretária que a ouvia para que, assim, Steven Russell pudesse usurpar um carimbo que lhe seria bastante útil em suas futuras tramóias. Perfeito! Só esta cena preciosa justificaria todo o bem-estar intelectivo que o filme causa, mas ele é bem mais (e também menos) do que isso...


Como intérprete do protagonista real e inicialmente incredível em sua concepção, Jim Carrey não oferece uma atuação necessariamente ruim ou careteira (como estão a reclamar em alguns artigos). O maior problema de sua interpretação é um desgaste natural da figura do ator, que parece mais velho do que o personagem em diversos momentos, mas, mesmo assim, ele é bastante elogiável tanto nas cenas que amontoam inúmeros de seus golpes surpreendentes quanto naquelas em que ele evidencia o amor que sente por seu antigo companheiro de prisão. Rodrigo Santoro (que vive o antigo namorado aidético do protagonista, Jimmy) e Leslie Mann (que interpreta sua ex-esposa histericamente religiosa Debbie) têm desempenhos exagerados, mas também condizentes com o clima concomitantemente esquizofrênico e verossímil que permeia o filme, onde Ewan McGregor destaca-se pela construção detalhada, minuciosa e louvável do objeto frasal titular, Phillip Morris, numa atuação não somente ótima como também contrastante, no melhor sentido do termo, com a euforia reinante no enredo. A timidez de seu personagem, portanto, funciona como um bálsamo bem-vindo ao frenesi típico da presença em cena do dinâmico Jim Carrey, chegando ao píncaro da eficiência compositiva no empertigado percurso que ele enfrenta a fim de se despedir de seu namorado ao som de “To Love Somebody” (cantada na voz sofrida de Nina Simone), numa cena que emociona qualquer um que tenha se deixado levar pela sinceridade redentora do envolvimento romântico entre os dois.


Np plano técnico, portanto, direção, roteiro, trilha sonora, fotografia e montagem coligam-se muito bem no afã por divertir o público, ao mesmo tempo em que apresenta uma fábula amoral tipicamente contemporânea, realmente impressionante para ser verídica, conforme os letreiros de abertura fazem questão de frisar. Entretanto, conforme já foi anunciado, há um problema de tom geral sobre os juízos de valor destinados ao protagonista, que prejudica a sua apreensão relaxada enquanto um mero filme.

Se, por um lado, o decisivo julgamento do protagonista, aquele que o manteve peremptoriamente preso por pelos menos 23 horas diárias a uma cela, é criticado como sendo dominando por interesses vergonhosos pessoais de membros do júri, a separação física definitiva dos dois apaixonados ganha ares socialmente preventivos demasiado oportunistas, o que impede que, mais do que classificar este filme num dado gênero distributivo específico, não saibamos se ele serve mais aos ímpetos libertinos do cinema independente ou ao conservadorismo pseudo-embaçado por breves concessões temáticas que impera no dominante cinema de estúdios. Este pode parecer um problema menor – e é até interessante que assim pareça – mas limita os vôos ideológicos mais arrojados que este filme poderia alçar, mas deve-se ficar bem claro que isto não é um empecilho para o inusitado bem-estar que ele causa, tanto no plano do entretimento quanto da dignidade personalística: por mais estranho que pareça, as pessoas aqui retratadas são mostradas como reais, até mesmo em situações absurdas ou socialmente proibitivas. E, num contexto em que qualquer simples ato cômico pode retroalimentar um preconceito, isto é digno de menção elogiosa extra-filmica!

Wesley Pereira de Castro.

domingo, 20 de junho de 2010

O ESCRITOR FANTASMA ('The Ghost Writer' - Alemanha/França/Inglaterra, 2010) Direção: Roman Polasnki

Num dos primeiros encontros que trava com o personagem real que ajudará a autobiografar, o protagonista afirma que, em sua narração, este deve destacar os fatos mais românticos de sua vida, visto que “os leitores se identificam com situações que evocam o coração”. Ao se pensar na biografia do diretor Roman Polanski, esta dramaticidade pretendida não tem como ficar em segundo plano: perseguido pelos nazistas durante a infância, testemunha do assassinato público de sua esposa grávida em 1969, acusado de pedofilia no final da década de 1970 e preso na Suíça em 2009 por este mesmo crime do passado, a vida pessoal do diretor polonês é sempre permeada pela polêmica e pela necessidade de fuga, o que explica os temas recorrentes do confinamento ostensivo e da claustrofobia instituída em sua obra absolutamente autoral.

Cada um de seus filmes, seja ele de qualquer gênero ou produzido em qualquer época, traz no bojo um protagonista perseguido pela culpa, não necessariamente comprovada, que, como tal, precisa executar medidas extremas para declarar sua inocência ou permanecer íntegro diante de situações-limite. No filme ora analisado, muito superior em qualidade e autenticidade ao longa-metragem anterior do diretor [“Oliver Twist” (2005)], o que mais surpreende é como o roteiro, escrito pelo próprio diretor e por Robert Harris (autor do livro que deu origem ao filme), mescla com sagacidade denuncista elementos que já foram trabalhados em obras como “O Inquilino” (1976), “Busca Frenética” (1988) e “O Último Portal” (1999), a fim de metaforizar emoções persecutórias que têm a ver com o mal-estar público do cineasta. Nesse sentido, as opressões xenofóbicas tangenciais, o perene desconforto advindo da constatação de que não se pode mais confiar em ninguém e as ambíguas exigências profissionais da carreira de escritor são circunstâncias fílmicas que só dignificam esta obra, asfixiante ao extremo, que deposita no espectador uma impressão de desconforto pretendido tão eficaz quanto aquela que pulula nas obras-primas literárias escritas pelo tcheco Franz Kafka. Comparando-se, portanto, os componentes tramáticos do filme com as fortes divergências hermenêuticas envolvendo o julgamento do diretor acerca do crime que cometera há mais de 30 anos, não tem como não se perguntar: diante dos interesses oportunistas de políticos corruptos e influentes, ainda é possível depositar confiança nas representações estatais de poder?


No plano directivo, Roman Polanski é digno de elogios pela agilidade que instaura no ritmo frenético do filme, de maneira que, se por vezes ele parece mais extenso do que os 128 minutos de sua duração, isso se dá justamente pelo efeito bem-sucedido de dilatação temporal decorrente da sensação de perseguição que acomete o protagonista durante toda a sua estada na ilha em que se passa o enredo, sensação esta que manifesta-se tanto no coincidente disparar de alarmes na cena em que o protagonista tenta descobrir a senha que protege o conteúdo de um arquivo de computador quanto na observação dos automóveis à espreita quando ele se locomove de um local para outro, passando também pelos estranhos contatos que ele trava com a população local, como os empregados chineses da residência de seu patrão britânico, a atendente solitária do hotel em que se instala e o velhinho (magnificamente interpretado pelo lendário Eli Wallach) que lhe confessa as incongruências de um assassinato encoberto sabe-se lá por quem.

O único desvio rítmico digno de destaque no filme diz respeito justamente ao final, que parece um tanto precipitado, tamanha a cautela com que foram construídos os eventos prévios à sua execução. Algo soa forçado na bazófia vingativa do protagonista quando este escreve um bilhete para Ruth Lang (Olivia Williams, muito mais imponente do que de costume), anunciando que descobrira um importante acróstico preparado por seu antecessor empregatício, e logo é atropelado quando tentava fugir com o manuscrito original das memórias do ex-primeiro-ministro inglês, a fim de descobrir novos mistérios escondidos em códigos de escrita naquelas páginas. Talvez o filme não precisasse desta cena de impacto fácil para se manter significativo em seu potencial de suspense, como efetivamente já o fazia até então. Mas, venhamos e convenhamos, até este é um mal menor.


No plano técnico, merecem destaque a extraordinária trilha sonora de Alexandre Desplat, que pontua muito bem o estado contínuo de aflição do protagonista, e a direção de fotografia eficiente do colaborador habitual dos filmes recentes do cineasta, Pawel Edelman. Encabeçando o elenco, Ewan McGregor oferece uma atuação contida muito condizente com os anseios de discrição do personagem, enquanto Pierce Brosnan desempenha o seu papel com perdoável estardalhaço, Kim Cattrall o faz com firmeza engenhosidade de coadjuvante e Tom Wilkinson impõe-se nos poucos minutos em que contracena como o enigmático professor universitário Paul Emmett. Algumas das cenas mais intrigantes do filme, porém, dão-se entre o protagonista e Olivia Williams(que interpreta a esposa do ex-primeiro-ministro), personagens que fazem sexo num contexto atribulado e muito tenso, depois de travarem um contundente diálogo em que, quando ele pergunta a ela porque a mesma nunca foi uma candidata política de verdade, ela retruca, imponentemente: “e tu, por que nunca foste um escritor de verdade?”. A ele, só resta apenas emitir uma interjeição de descontentamento impotente e permitir que a mesma divida a cama com ele.


Analisando-se o filme como portador de mensagens subliminares em relação às insatisfações do diretor e de seus fãs ao modo como são conduzidos os inquéritos de acusação contra ele, pode-se dizer que o mesmo é deveras exitoso em seus intentos. Não somente “O Escritor Fantasma” diverte bastante enquanto ‘thriller’ e enquanto filme político, como o mesmo pode ser interpretado por vários vieses para quem conhece a fundo as idiossincrasias e obsessões temáticas do seu realizador, que, conforme visto, sabe lidar muito bem, no plano artístico, com a tragicidade ostensiva de sua vida real. As divergências de princípios morais entre o protagonista e seus empregadores numa das seqüências iniciais, o mistério crescente das motivações políticas dos personagens que transitam em torno do ex-primeiro-ministro Jack Lang (Pierce Brosnan), a própria assunção do mesmo em relação aos crimes de guerra que cometera e as tramóias militares que emergem à medida que a trama se desenvolve são elementos que deixam a nu os intentos questionadores e críticos do filme, que vão muito além de sua argúcia genérica no patamar cinematográfico, o que, seja dito novamente, o filme faz com presteza admirável. Tanto é que só se percebe que o protagonista é inomeado depois que o filme acaba e ele supostamente está morto.

No auge de seus 76 anos de idade e enfrentando fortes restrições no seu direito de ir e vir, Roman Polanski, realiza, portanto, um arrojado filme de autor no costumeiramente formulaico panorama anglofílico hodierno de cinema. Que venham outros!

Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

QUINCAS BERRO D'ÁGUA(Brasil, 2010). Direção: Sérgio Machado

Um dos comentários mais generalizados sobre este filme é o de que o ator Paulo José insistiu em estar presente em todas as situações em que seu personagem morto estaria em cena, salvo duas situações de perigo em que, obviamente, seria necessária a utilização de um boneco, a fim de preservar a integridade física do ator. Tal atitude revela que este dedicado intérprete estava preocupado com um detalhe essencial do roteiro: o de que a perspectiva condutiva dominante acerca do mesmo seria justamente a do cadáver, algo que, infelizmente, nem sempre pôde ser respeitado pelo diretor e roteirista Sérgio Machado, que comete um dos pecados mais recorrentes nos filmes da Globo Filmes locados em cidades nordestinas: convidar atores do sudeste brasileiro para vivificarem pessoas que falam com sotaques demasiado carregados, o que, para além dos méritos actanciais dos profissionais envolvidos, descaracterizam a configuração local dos personagens, conforme acontece aqui com Mariana Ximenes, que desempenha um papel importante – venhamos e convenhamos, em contraponto reflexivo com o protagonista – mas tem sua presença hipertrofiada pelos produtores, que vêem na mesma um chamariz publicitário que o filme poderia muito bem dispensar, tamanho o entrosamento peculiar que atores menos conhecidos como Irandhir Santos e Frank Menezes demonstram em relação ao público, envolvendo prioritariamente o carisma carnavalesco dos baianos constantes do elenco.

Em outras palavras: o filme funciona bastante quando Paulo José está comentando sua própria trajetória de vida ou proferindo julgamentos morais nas cenas em que não está presente (visto que sua condição de morto protagonista valida a onisciência narrativa), mas as situações protagonizadas pelos demais coadjuvantes, muito numerosos – sejam na residência de Vanda, seja no terreiro da mãe Ana – falham pela precariedade concatenadora, o que não se constata, por sua vez, no bordel de Manuela, tamanha a argúcia de Marieta Severo como a espanhola que comanda o recinto e que, quando tenta se matar tomando vários comprimidos de magnésia (sem que soubesse a composição química dos mesmos), passa uma tarde inteira no banheiro, crise diarréica esta que rende um dos vários ditados populares consagrados em diálogos do filme; “cada um chora por onde sente mais saudade”. Surge aqui, outro aspecto importante na análise do filme: o modo como o mesmo se vale de dizeres característicos do povo baiano (e nordestino como um todo), o que nos leva a prestar ainda mais atenção na configuração pretensamente localista do filme.


Se o diretor Sérgio Machado goza de um bom currículo prévio enquanto diretor de um documentário sobre Mário Peixoto (ainda não-visto), alguns bons episódios da série de TV a cabo “Alice” e o sincero longa-metragem “Cidade Baixa” (2005), neste novo filme ele não parece desfrutar de liberdade criativa suficiente para explorar as nuanças soteropolitanas que tão bem conhece e que chamaram a atenção dos críticos em suas obras anteriores. Por um lado, a ótima direção de fotografia de Toca Seabra valoriza plenamente pontos turísticos como o Elevador Lacerda, sem que o mesmo pareça “artigo de exportação” ao ser percebido/destacado em meio à cuidadosa reconstituição de época, e, por outro lado, este mesmo primor técnico-reconstitutivo é desviado de nossa atenção em virtude da pletora de personagens, que se somam de forma tão alvoroçada que algumas sub-tramas ficam mal-construídas, para além das advertências sinópticas do narrador Quincas (vide os exemplos da temida e maternal prostituta que ele amparou antes de ser presa e do cafajeste mal-humorado que cria briga no cabaré de Manuela quando esbarra em alguém no balcão).

Entretanto, não se pode reclamar que a adaptação enredística engendrada pelo próprio diretor Sérgio Machado seja ruim. Pelo contrário, ele conseguiu tornar a trama suficientemente concisa para quem ainda não tenha lido a obra literária original de Jorge Amado, não obstante focar superficialmente aquele que poderia ser o ponto nodal da trama: a conversão do simplório e entediado funcionário público Joaquim Soares da Cunha no boêmio bem-dotado Quincas Berro ‘d’água. Os ‘flashbacks’ que eventualmente pontuam a trama são sempre bem-sucedidos, seja naquele em que o protagonista teme que sua filha torne-se uma cópia moral da sua flatulenta esposa, a quem ele tacha de jararaca num momento de fúria, seja quando ele é mostrado pendurando-se numa estátua e cantarolando músicas chulas, ainda na fase exordial de sua conversão à bebedeira festiva.


Em relação ao discurso moral potencialmente dramático que toma de assalto alguns trechos do filme, os mesmos foram bem-inseridos na narrativa, ainda que pareçam um tanto óbvios em sua redenção final, em que os personagens avessos à literatura do protagonista sejam mostrados acordando de práticas sexuais que, de outra forma, não seriam condizentes com seus cotidianos modorrentos e hipócritas, criticados veementemente pelo sarcástico humor de Quincas Berro d’Água, que, mesmo morto, insiste em comentar as situações ao seu redor, alegando que “não há nada demais em morrer, exceto pelo fato que há uma picada na bunda que não se consegue mais coçar”. Nesse sentido, merece um renovado elogio a insistência de Paulo José em abdicar do uso de dublês, o que valida o convencimento redentor da seqüência final, após a tempestade do mar, quando ele é finalmente sepultado “ao lado de Iemanjá”, e visa diretamente ao espectador, em sua exortação extrema de aproveitamento da vida e da morte.

Além do elenco competente e coeso (que, se não está de todo bom, é menos por deficiências actanciais do que pela imposição de estrelas reconhecíveis da televisão por parte dos produtores do filme) e do bom roteiro adaptado e compreensivamente descompassado em sua transferência de um ponto de vista mais indolente sobre a vida boêmia do falecido protagonista à sua filha quiçá também libertina em potencial, a equipe técnica do filme merece também encômios pro causa da excelente trilha sonora, que mescla os temas originais de Beto Soares a canções notáveis da era de ouro do rádio no Brasil.

Pode-se reclamar que o filme está muito mais preocupado com a disseminação popularesca de valores risórios, em que a estereotipização de modos de fala tipicamente nordestinos e as extravagâncias naturais de personagens da fauna urbana noturna como travestis, prostitutas e delegados pederastas é utilizada de forma mais comercial do que necessariamente espontânea, as gargalhadas empolgadas das pessoas – inclusive nordestinas – parecem consolidar por extensão apreciativa as opções rigorosamente planejadas para reações atreladas aos preconceitos espectatoriais, de maneira que é assaz compreensível e defensável a insistência de que o filme está bem acima da média de filmes brasileiros comerciais lançados nos últimos anos, não obstante seu roteiro está muito aquém de esboçar adequadamente os valores populares defendidos no entrecho e no livro original que lhe deu origem.


Inclusive, este embate de interesses pode ser metaforicamente ampliado a partir de uma seqüência-chave do filme, quando um dos amigos do falecido, encasquetado de que é poeta, insiste em ler um poema que escrevera para sua amada, diante do caixão. Ao perceber a insatisfação receptiva por parte de alguns dos presentes, comenta: “sei que não é um poema de qualidade superior, mas é melhor uma poesia ruim do que merda nenhuma”. Quem se vê obrigado a sucumbir à inevitabilidade crescente das concessões qualitativas da Indústria Cultural, pode se conformar com isso e fazer de conta que não ouve a imediata contestação do falecido protagonista: “ouvido de morto não é penico”. O de alguns vivos, pelo jeito, é...

Wesley Pereira de Castro.