quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

BEM-VINDO ('Welcome') França, 2009. Direção: Philippe Lioret


Apesar de ser uma personagem secundária, Marion (Audrey Dana), ex-esposa do instrutor de natação que abriga o protagonista curdo, é aquela que representa com mais afinco a moral canhestra a que o filme se filia: na primeira cena em que é mostrada, vemo-la trabalhando como voluntária numa missão que alimenta refugiados de países em guerra que chegam à França. Em seguida, quando encontra seu ex-marido numa fila de compras, ela critica a indiferença dele, no sentido que ele nada faz para interferir na segregação alegadamente defensiva de alguns funcionários do supermercado, que impedem a entrada de alguns curdos no recinto. Quando descobre que Simon Calmat (Vincent Lindon) permitiu que dois iraquianos ficassem alojados em sua casa por três noites, ela trava uma briga admoestatória com ele, chamando-o de inconseqüente e descuidado, e esquecendo que ele só fez isso para não mais ser tachado de indiferente por ela, tal qual havia acontecido na situação anterior. Esta inversão supostamente justificada de princípios militantes é condizente com o tipo de cinema exibicionista que é apregoado pelo britânico Ken Loach, que costuma realizar filmes em que os direitos de trabalhadores imigrantes são defendidos de forma condizente com a cartilha advocatícia do capitalismo pseudo-democrático, cineasta a quem Philippe Lioret parece nutrir uma verdadeira devoção. A diferença neste subproduto imitativo é que o diretor de “Bem-Vindo” equivoca-se profissionalmente ao amalgamar os talentos de vários técnicos competentes, como o diretor de fotografia Laurent Dailland (que investe em associações denuncistas primárias envolvendo a bandeira da França) e os músicos Wojciech Kilar, Armand Amar e Nicola Piovani, que imitam a melancolia ‘in crescendo’ do polonês Zbigniew Preisner, com o diferencial demeritório de que, sempre que as tocantes músicas entram em cena associadas com as imagens do filme, o efeito resultante é a comicidade involuntária, dado que resvalam nos clichês xaroposos mais intragáveis neste sério tipo de enredo.


A sinopse do filme (em que um iraquiano turco chega até a França e obtém aulas de natação com o intuito de atravessar o Canal da Mancha a nado e reencontrar sua namorada, que vive com a família proibitiva em Londres) é estapafúrdia e inverossímil por si só, mas torna-se ainda mais absurda à medida que vem sendo executada, em virtude dos clichês pueris a que o roteiro se submete. Se, num primeiro momento, soam inconvincentes as motivações e posturas cotidianas do jovem Bilal Kayani (Firat Ayverdi), o modo como ele conhece Simon e a impactante seqüência em que ele é mostrado no oceano antes de ser encontrado morto são alguns dos momentos mais inverossímeis do filme, que, não obstante chamarem a atenção espectatorial imediata por causa da beleza e carisma natural do ator que interpreta o iraquiano, irritam-nos deveras em virtude da concatenação precária com os demais componentes técnicos do filme.

Insistindo: não que fotografia e trilha sonora sejam ruins – muito pelo contrário – mas as mesmas são utilizadas de forma simplista pelo diretor Philippe Lioret. Ao final, quando Simon se aproveita da recusa da viúva Mina (Deria Ayverdi) em aceitar o precioso anel com que ele tinha presenteado Bilal para reatar os vínculos afetivos ainda sobreviventes dos oito anos em que negociava um divórcio com a inconstante Marion, percebemos que o oportunismo legitimado pelo roteiro chega ao seu patamar, escorraçando de vez qualquer indício de credibilidade política que pudéssemos depositar sobre o mesmo.

A pusilanimidade sobressalente no roteiro, aliada às atuações irregulares (sincera no caso de Vincent Lindon, arrebatadora no caso de Firat Ayverdi, e irritante no caso de Audrey Dana), impede qualquer reverberação duradoura de seu potencial reflexivo acerca da complicada situação dos imigrantes do Oriente Médio e/ou África na Europa, particularmente delicada considerando-se eventos violentos e polêmicos recentes da História da França. Dizendo de outra forma: lamenta-se que este tipo de filme seja realizado menos para emocionar do que para abocanhar prêmios da crítica cinematográfica mundial, que parece aceitar de bom grado os conchavos capitalistas metonimizados em cenas como o já descrito encontro no supermercado, a inconveniente reunião entre Simon e Mina na lanchonete em que estava sendo televisionado um jogo de futebol do time inglês preferido de Bilal, e as diversas transações monetárias problemáticas e ilegais envolvendo os curdos que emigram do Iraque e hostilizam Bilal.

Quando perguntado sobre os motivos que o levaram a sair de seu país belicoso, Bilal responde que suas razões têm a ver com o amor irrefreado que sente por Mina e com a necessidade de enviar dinheiro para a sua família. Entretanto, não percebemos nas ações do jovem nenhuma motivação para pôr em prática o assistencialismo da segunda justificativa, com a qual muitos se identificam e se aproveitam para defender a sua gana. Isso basta para suscitar a que tipo de reação o filme se pretende...

Wesley Pereira de Castro.

domingo, 3 de janeiro de 2010

LULA, O FILHO DO BRASIL (Brasil, 2010). Direção: Fábio Barreto


A filiação deste filme ao subgênero biográfico adverte-nos que sua apreciação repousa numa consideração prévia concessiva, em que sabemos de antemão que, entre a representação fílmica propriamente dita e os eventos reais que a deram origem, existe um projeto de supressão eventual ostensivamente ideológico, tanto que, neste caso específico, o fato de o personagem biografado ser o presidente da República Federativa do Brasil dotou a divulgação deste filme de uma polêmica ferrenha acerca de seus pretensos ideais eleitoreiros. Para além de estes ideais serem propositais ou não – fato este que tenta ser fortemente negado pelos créditos de abertura, que advertem que o filme não recebeu qualquer incentivo estatal, sendo financiado apenas por um longo rol de empresas particulares – “Lula, o Filho do Brasil” é um filme precário menos pelo que representa e mais pelo modo como representa, dado que a condução burocrática de Fábio Barreto imita as convenções adocicadas de uma telenovela vespertina, tanto que qualquer rudeza personalística por parte do protagonista é retirada, de maneira que sempre que ele é mostrado em cena, em qualquer uma das variações etárias escolhidas pelo filme, o personagem destaca-se sempre pela gentileza descomedida e pelo afeto exacerbado pelas pessoas que o cercam, exceto quando precisa enfrentar a cólera de seu pai bêbado (vivido estereotipadamente por Milhem Cortaz). Nesse sentido, segue aqui a primeira reprimenda à qualidade sub-mediana deste filme: as atuações são preguiçosas, e isto se deve menos ao talento dos bons atores escalados do que à já citada direção preguiçosa de Fábio Barreto.


Não obstante o personagem-título ser corretamente interpretado por Felipe Falanga (7 anos), Guilherme Tortolio (15 anos) e Rui Ricardo Diaz (dos 18 aos 35 anos), a verdadeira estrela do elenco é Glória Pires, que vivifica Dona Lindu, mãe do protagonista e a quem o mesmo dedica (na vida real) as vitórias atingidas em sua carreira política. Entretanto, a interpretação desta ótima atriz brasileira é predominantemente inconvincente, talvez porque a personagem nunca parece crível, tamanha a inverossimilhança de sua bondade xaroposa e dos clichês discursivos acerca da teimosia bem-sucedida dos nordestinos. Seu sotaque indistinto, seu olhar firme e compreensivo e a posse das palavras certas para usar em qualquer situação (vide o momento em que ela se recusa a entregar um filho para ser adotado pela professora vivida por Lucélia Santos) são características que dotam a personagem real de uma merecida honraria, mas, enquanto personagem fílmica, fazem com que a mesma esteja sempre negativamente sobreposta em relação aos eventos deslindados, de maneira que a recomposição mental dos eventos abordados na mente do espectador (ao contrário do que deve ter acontecido em relação à leitura do livro que serviu de base ao roteiro) seja sempre rechaçada pela grosseria actancial, o que se torna ainda mais grave quando Cléo Pires (filha de Glória Pires na vida real) entra em cena como a noiva de Lula.

Os eventos dramáticos em que o roteiro tenta se sustentar e despertar o interesse espectatorial, por outro lado, são realmente penosos, mas são também prejudicados por uma descomunal exposição tramática, seja pelo exagerado material de divulgação do filme seja pelas entrevistas com o biografado, que antecipam e tornam desprovidas de surpresas as reviravoltas do enredo, como a morte da primeira esposa e do filho do protagonista, o momento em que o mesmo perde um dedo num acidente de trabalho (não tão explorado pelo roteiro quanto deveria) e o segundo casamento com a atual primeira-dama do Brasil, Marisa Letícia da Silva, aqui interpretada pela subestimada Juliana Baroni.


Ainda comentando o roteiro de Daniel Tendler, Fernando Bonassi e Denise Paraná (autora do livro em que o filme se baseou), cabe lamentar a queda drástica de ritmo que o filme sofre na metade final, quando passa a abordar a ascensão sindicalista do personagem e encerra a mesma com um anticlímax, fazendo uso de uma elipse de mais de 20 anos de História, o que obviamente tem a ver com as manipulações eleitorais levadas a cabo pela Rede Globo de Televisão, discretamente envolvida na produção do filme e que sempre se mostrou hostil aos intentos presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva. Nesse sentido, a cena em que os personagens incomodam-se quando uma reportagem especial do Jornal Nacional interrompe a transmissão do capítulo de telenovela a que eles estavam assistindo funciona como uma vergonhosa supressão do posicionamento ideológico que esta emissora engendrava quando a ditadura militar estava em voga no Brasil. Além disso, é lamentável o desrespeito à desenvoltura rítmica do filme, que, se é entretenedor em seus 128 minutos de duração, prejudica o charme singular de cenas emocionadas com a urgência em manter o espectador fascinado com a colagem de situações conhecidas do imaginário popular, desrespeito este que se destaca naquela que poderia ser a melhor cena do filme, quando o personagem escuta a canção-tema de seu relacionamento com a finada Lurdes (“Você”, na voz de Tim Maia) num táxi e pede que o motorista desligue o aparelho de rádio em que a mesma estava sendo executada, o que gera uma conversa que faz com que antecipemos que ele vá se apaixonar pela filha viúva do condutor do veículo. Estendendo a crítica à trilha sonora de Antônio Pinto e Jacques Morelenbaum, convém acrescentar que a mesma é efetiva quando se propõe a fixar um ‘leitmotiv’, mas é chinfrim quando se submete a acompanhamentos pleonásticos nas cenas de protesto grevista ou nos funerais que marcam a vida do protagonista.


Enxergando-se o filme de maneira técnica mais geral, reclama-se que ele seja um mero produto serial, a ser acrescentado na tendência dominante no cinema popularesco contemporâneo de biografar personalidades famosas, como Zezé di Camargo & Luciano, Cazuza ou Chico Xavier, de maneira que os esforços profissionais a ele relacionados, salvo raras exceções, atrelam-se ao mecanicismo e à padronização sub-qualitativa, conforme se pode perceber na forçada e incômoda direção de fotografia de Gustavo Hadba, que oscila entre os rápidos movimentos de câmera em cenas de tensão (que logo cedem espaço a efeitos enfadonhos de câmera lenta) e a montagem paralela e desprovida de impacto a cargo de Letícia Giffoni.

Para quem está acostumado ao estilo tedioso do diretor Fábio Barreto, portanto, o filme ganha pontos por cumprir exatamente aquilo que era esperado antes que fosse apreciado no cinema: é apenas a transcrição linear de eventos previamente conhecidos e supostamente emocionantes que, quando reproduzidos de maneira supostamente diferenciada (vide a intercalação de planos do fiel cachorro da família Silva correndo atrás do pau-de-arara em que está Lindu e seus filhos e dos créditos de abertura, por exemplo), fracassam por deixarem óbvios os intentos ideológicos e/ou puramente mercadológicos que motivaram a feitura deste filme. Por isso, é quase irrelevante que dediquemos tanto tempo a uma análise do mesmo, visto que, para os produtores e para a maioria dos envolvidos no projeto, o que interessa mesmo é o seu potencial de faturamento nas salas de exibição cinematográfica brasileiras - Ou, no máximo, um oportunista auxílio à campanha eleitoral de um abrandado Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2010!

Wesley Pereira de Castro.