domingo, 25 de abril de 2010

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS ('Alice in Wonderland'). EUA, 2010. Direção: Tim Burton.


Por mais que Tim Burton insista que o roteiro que ficou sob sua direção é uma adaptação livre dos personagens criados por Lewis Carroll, não há como não começar um texto sobre este filme sem compará-lo com o livro original e com algumas das mais famosas versões cinematográficas do mesmo. Se, na obra literária original, o que chamava mais atenção eram os questionamentos subjetivos da garotinha protagonista acerca da lógica absurda que por vezes permeia o comportamento dos adultos ao seu redor (e que se refletiam oniricamente nos personagens surreais com que se depara no país-título), na versão em desenho animado da Disney merece destaque o modo como seus roteiristas reinventaram a trama, tornando-a mais divertida e absurda do que a mesma já era. Há uma versão musical pornográfica em que os devaneios da protagonista condensam seu bloqueio em fazer sexo com o namorado, enquanto noutra versão animada tcheca, o que é digno de nota é o invencionismo formal de seu diretor.

Cada qual a seu modo, porém, todas as obras supramencionadas possuíam charme e qualidade intelectiva, ao passo que, na obra aqui analisada, causa vergonha o modo como o outrora fantasioso diretor Tim Burton subsume as reviravoltas bélicas formulaicas de seu enredo a um maniqueísmo colonialista tacanho, que atinge o paroxismo do ridículo nos planos comerciais da protagonista ao final, quando abdica de um desagradabilíssimo casamento por conveniência em prol de um emprego como aprendiz comercial, através do qual planeja saturar o território asiático com suas transações crematísticas. Mesmo que não se tenha lido ainda a continuação das aventuras da protagonista carrolliana (“Alice Através do Espelho”, publicado originalmente em 1871), intui-se assombradamente que o diretor Tim Burton dota o seu filme com um fervor apologético capitalista ainda mais deletério do que aquele que emprenhava suas desnecessárias regravações para um clássico filme de ficção científica em que os personagens eram símios ou um filme infantil que mexia com os anseios hipoglicêmicos do público. Em sua versão para “Alice no País das Maravilhas”, ficamos chocados ao constatar como ele aplica clichês de batalha carcomidos por filmes recentes, a ponto de que até mesmo os improváveis apreciadores desta obra gastam um bom tempo de seus discursos elogiosos comparando-a com produtos midiáticos que, abordando o mesmo tipo de confronto maniqueísta, não possuía o aparato digital aqui empregado. Conclusão prévia: até mesmo o filme tem de supostamente bom, é discursivamente ruim!


Ainda durante os créditos iniciais, ouvimos acordes facilmente identificáveis como sendo compostos pelo músico Danny Elfman, parceiro habitual do diretor e que respondia componencialmente por parte do sucesso dramático de seus roteiros. A certeza de que a direção de fotografia será deslumbrante e que o elenco estará propositalmente hiper-afetado na composição de seus personagens são dois aspectos também facilmente identificáveis que, somados à ótima trilha sonora, ameaçam dilapidar o pessimismo espectatorial daqueles que temiam que o diretor tivesse perdido a sua verve crítica e amoral, conforme ficou patente no frouxo “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007). A cena inicial, que mostra a pequena Alice (vivida com leve graça por Mairi Ella Challen) conversando com seu pai sobre um pesadelo recorrente, ao que este respondente que “algumas das melhores pessoas do mundo são justamente aquelas que são meio loucas”, é simpática quando confrontada com o sentido geral do ‘corpus’ do diretor, mas a seqüência seguinte, em que ela é mostrada jovem (interpretada pela apática Mia Wasikowska), contrária ao uso de meias e espartilhos e forçosamente inserida no meio aristocrático londrino, logo denuncia algo suspeito em relação a preconceitos de classe obviamente suportados pelo diretor, mas que nunca haviam chegado ao nível epidérmico ora demonstrado, em que um antipático pretendente marital de Alice é rejeitado por seus tiques burgueses e problemas estomacais e uma tia solteirona da protagonista é ridicularizada por ainda sonhar com o príncipe encantado.

Em seus filmes anteriores, os caracteres personalísticos não eram tão evidentemente unilaterais, mas, ainda assim, este filme seguia um tanto espirituoso em seus percalços proto-feministas. Os contatos iniciais da jovem Alice com o País das Maravilhas que ela esquecera ter visitado na infância, idem, mas a entrada em cena do irrevogavelmente maquiavélico personagem Stayne (Crispin Glover) estraçalha a condução até então agradável do filme: o que os produtores do filme tencionam fazer com o mesmo é assemelhá-lo ao máximo com filmes bem-sucedidos em vendagens como “O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei” (2005, de Peter Jackson), “Tróia” (2004, de Wolfgang Petersen) e “As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa” (2005, de Andrew Adamson), para ficar em apenas alguns exemplos imediatos. E, sendo estes exemplos precários justamente em seu afã belicista, esta versão contemporânea e malevolente de “Alice no País das Maravilhas” entoja por seu confesso apoio à política invasiva cara aos Estados Unidos da América. E, com isso, vai-se embora o deslumbrante prazer visual que poderia estar associado à boa direção fotográfica de Darius Wolski e à ótima direção de arte que lhe dá suporte.


À medida que o horrível roteiro escrito por Linda Woolverton vai se desenvolvendo – e repete em nível plagiador as insatisfações etárias de sucessão monárquica que a roteirista adotou em “O Rei Leão” (1994, de Roger Allers & Rob Minkoff) – cada uma das virtudes eventuais do filme vai se dissipando, seja a extraordinária dublagem do competente ator britânico Alan Rickman para a Lagarta Azul, seja a pitoresca movimentação melindrosa das mãos da Rainha Branca (interpretada com o charme típico da bela atriz juvenil Anne Hathaway). Os aspectos negativos, por outro lado, se amontoam: a má vivificação de Johnny Depp como o Chapeleiro Louco, que chega ao cúmulo do desagradável na cena em que ele executa os passos de dança prometidos desde que entra em cena; a preconceituosa concepção da personagem Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter, esposa do diretor e, coincidentemente, sua companheira fixa nos piores filmes da carreira do mesmo), escarnecida publicamente por causa de um desvio nos padrões estéticos de apreciação cefálica; o desperdício coadjuvante de personagens como o gato Sorridente, a Lebre de Maio e um cachorro aprisionado pela rainha má, todos eles mostrados em situações pouco relevantes para a trama como um todo; e, principalmente, a extrema violência física legitimada na batalha definitiva entre o exército da Rainha Branca e o Exército da Rainha Vermelha, nas expectativas que motivam (e justificam) o momento em que Alice decepa a cabeça de um dragão usando precisamente o jargão de sua inimiga (“cortem-lhe a cabeça!”) e o modo como outros animais interagem entre si no ambiente selvagem pelo qual Alice perambula antes de chegar ao castelo em que é acolhida como hóspede.

Enquanto consolo dominante, só mesmo as lembranças das ótimas aparições dos gêmeos Tweedledee e Tweedledum (ambos interpretados por Matt Lucas), que, com seus diálogos tautológicos e/ou paradoxais, funcionam como uma espécie de metonímia sarcástica para o uso chistoso que as classes detentoras do poder aquisitivo e/ou combatente fazem daqueles indivíduos que desfrutam de certo capital intelectual.


Quando os créditos finais se descortinam e uma versão mecanizada da canção-tema de Avril Lavigne antecede novos acordes de Danny Elfman, não tão reconhecíveis e positivamente nostálgicos quanto os exordiais, mas ainda assim dignos de elogios, o espectador queda paralisado de choque por alguns instantes, antes que disponha novamente de forças para organizar mentalmente todas as mensagens subliminarmente destrutivas que emanam deste filme absolutamente violento e oposto à magia filiada a personagens injustamente marginais que tanto caracterizou a obra burtoniana em seu período egrégio.

A subsunção vergonhosa a fórmulas de ação descerebrada, o maniqueísmo insuspeito das conduções morais dos personagens e a pecha capitalista assumida veementemente na última seqüência impedem qualquer proveito benéfico advindo desta obra. O humor negro, a ambigüidade valorativa e o surrealismo hiper-realista (ou vice-versa) de Tim Burton parecem irreversivelmente destruídos pelo esquema industrial do cinema hollywoodiano contemporâneo. Pena que ele tenha que recorrer a filmes e livros pré-existentes para nos envergonhar ao demonstrar isso...

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

AS MELHORES COISAS DO MUNDO (Brasil, 2010). Dirção: Laís Bodanzky


Na primeira cena do filme, o narrador e protagonista Hermano (vivido com muita graça pelo estreante Francisco Miguez) repete a declaração, feita por seu pai, de que “a melhor fase da vida é a infância e que esta passa rápido demais”, ao que ele discorda, afirmando que demorou muito para que ele atingisse a sua liberdade. Ao final do filme, ele afirma que “não é impossível ser feliz depois que se cresce. É apenas mais complicado”. Nos 107 minutos que separam a contestação da primeira afirmação e a aceitação resignada da segunda, entramos em contato com uma simpática amostragem do cotidiano adolescente contemporâneo, que apresenta particularidades tecnocráticas mui peculiares que, ao mesmo tempo que o distingue radicalmente das gerações adolescentes anteriores (distinção esta muito bem apontada no filme através do ótimo personagem de Caio Blat), possibilitam a instauração de conflitos publicamente interativos que reformulam a noção de dramaticidade no que se convencionou chamar de Era da Informação.

No caso do filme em pauta, o questionamento acerca de o quanto esta pletora de informações altera a sensibilidade dos adolescentes em relação aos dramas que enfrentam (ou pensam enfrentar, em alguns dos casos) vem à tona em três situações-chave, todas elas largamente comentadas por uma blogueira contumaz: a disseminação de fotografias eróticas da adolescente mais cobiçada do colégio em que Hermano estuda, através da qual o mesmo tem sua iniciação sexual; a demissão de um professor de Física bem-quisto pelas alunas do colégio, depois que uma delas (interpretada pela mui expressiva Gabriela Rocha) lhe aplica um beijo num restaurante; e a difusão polêmica da informação verídica de que o pai do protagonista separou-se de sua esposa para viver um romance homossexual, o que ocasiona até mesmo um espancamento. Para além de merecer com louvor os aplausos que vem recebendo em algumas sessões, este filme possui alguns problemas estruturais suspeitos que, não obstante conservarem incólume a simpatia identificatória em relação aos ótimos personagens, precisam ser evidenciados no que tange ao atrelamento do mesmo à possível exploração comercial futura em um formato televisivo seriado, tal qual aconteceu com os livros de Gilberto Dimenstein e Heloísa Prieto que deram origem ao roteiro de Luiz Bolognesi, marido e parceiro habitual da diretora. Vamos a estes problemas, antes que tenhamos oportunidade de novamente elogiar o inspirado sopro de vida que este filme lança no ideário adolescente contemporâneo.


A não-dominação da perspectiva narrativa de Hermano em relação aos eventos que o circundam talvez seja o grande problema de subsunção institucional/mercadológica que este filme enfrenta, no sentido de que a concomitância de várias instâncias narrativas diz menos respeito a uma plurivocalidade personalista do que à exaltação egocêntrica do personagem Pedro, irmão do protagonista, que é interpretado por Fiuk, um astro forçosamente ascendido da Rede Globo de Televisão. Em dado momento do filme, portanto, quando já estávamos acostumados a acompanhar os eventos através do prisma sentimental de Hermano, sem julgá-lo pelos erros cometidos e mais tarde justificados por um aforismo pertinente de seu professor de violão (surpreendentemente crível através da interpretação de Paulo Vilhena), a depressão reinante de Pedro assume o papel quase principal do filme e, graças à difusão crescente de suas próprias atividades enquanto blogueiro poético suicida, engendra uma reunião apaziguada dos membros de sua família (incluindo o namorado de seu pai), que, apesar de ser considerada hipócrita pelo jovem que tentara se suicidar, é moralmente validada pelo roteiro, que encontra aqui seu canal dominante de inoculação ideológica. Em verdade, há de se convir que o referido personagem Pedro cresce bastante no decorrer da trama, no sentido de que abandona a ignorância responsiva do início e assume a fragilidade rebelde no final, quando resolve propor à sua ex-namorada uma tentativa de reconciliação poligâmica, mas, ainda assim, sua concepção como um todo é deveras suspeita levando-se em conta os interesses vislumbrados por alguns dos produtores do filme.


Por mais que se possa reclamar de alguns desvios ideológicos e disritmias estruturais do roteiro, a homogeneidade actancial dos elencos adulto e juvenil merece destaque, no sentido de que isentam-se dos cacoetes de estúdio a que estes atores poderiam estar submetidos, conforme demonstram a firmeza de Denise Fraga em impedir que sua personagem torne-se caricata ao defender a todo custo a aplicação de éticas de conduta profissional ou o já citado desempenho de Caio Blat, que assume-se como porta-voz sincero (e obviamente secundarizado) daqueles que se opõem às estruturas canônicas de dominação econômica, e que se pode constatar particularmente na brilhante seqüência em que ele se mostra previsivelmente escandalizado diante das propostas monetifágicas de uma chapa de grêmio estudantil que se auto-batizou “Grana” – e que, não por acaso, será a chapa vencedora na eleição que ocupa o roteiro por algum tempo. No que se refere à condução directiva singela de Laís Bodanzky, pode-se perceber um evidente conflito interno em relação à polidez formal e as soluções supostamente livre-arbitrárias, deveras funcional na cena de abertura, em que ‘riffs’ pesados de guitarra são substituídos por uma música suave no mesmo plano em que Hermano deita-se no chão refletindo sobre o seu futuro, e precipitada ou clicherosamente equivocada na cena em que o protagonista e seus colegas fogem de um bordel quando a fraude de um deles em relação ao pagamento faz com que o mesmo seja alcunhado de “‘playboy’ de condomínio”.

A introdução iterativa da canção “Something” (de The Beatles) em momentos pontuais da trama, visto que esta canção é a preferida do protagonista e com a qual ele vislumbra conquistar as meninas por quem se apaixona, também se revela positiva, não obstante os perigos formulaicos a que esta adesão musical pré-consagrada poderia pressupor.


Aproveitando o inspirado título do filme, posto em cena justamente pela excelente personagem Carol – de longe a melhor coisa do filme! – chama a atenção o modo como ele assegura a cumplicidade com o público (seja qual for a faixa etária) através da exposição elaborada de problemas inevitáveis da contemporaneidade, que culmina no momento de grande dramaticidade terapêutica em que Hermano e sua mãe atiram ovos contra a parede da cozinha depois de um paroxismo de fúria. Junto à qualidade cinematográfica destacável desta seqüência, podemos enumerar todas as ótimas conversas entre Mano e Carol no interior de um ônibus, a filmagem entrecortada da peça teatral concebida por Pedro, o uso incidental da trilha sonora a cargo de BiD (onde merece crédito a maravilhosa seqüência em que Gabriela Rocha cantarola “Com Mais de 30”, de Marcos Valle) e a boa edição de Daniel Rezende, que tem um senso preciso de onde utilizar a montagem saltada e os ‘fade-outs’. Ainda que seja o filme menos habilmente controlado pela diretora Laís Bodzanky, “As Melhores Coisas do Mundo” é prenhe de vida e de originalidade representativa. E isso conta muito na pletora sub-igualitária dos dias atuais!

Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

CHICO XAVIER (Brasil, 2010). Direção: Daniel Filho


Antes que este filme estreasse, um crítico de cinema brasileiro parafraseou um célebre aforismo do escritor André Gide (“não se faz boa literatura com boas intenções nem com bons sentimentos”) para antecipar que sua recepção espectatorial estaria balizada por um discurso proto-hagiográfico, em que o personagem biografado em pauta seria assumido como uma manifestação por excelência do amor humano terreno. Ou seja, bastaria assistir ao anúncio publicitário do filme para conhecer todas as suas reviravoltas tramáticas programadas e as manipulações discursivas em prol dos fatos reais da vida do protagonista, em detrimento da qualidade técnico-lingüística exigida ao se assumir este produto audiovisual como “filme”. Quando entramos em contato com um letreiro que prediz que “nenhum filme é suficiente para caber uma vida humana e que o roteiro pretende apenas ser fiel aos acontecimentos e à vida das pessoas envolvidas”, tem-se a impressão certeira de que os resultados cinemáticos aqui pretendidos estarão muito aquém de julgamentos qualitativos proveitosos e se equalizarão com a nulidade. Assim sendo, é mister interrogar-se sobre que tipo de observação crítica poderia ser publicada acerca deste filme a fim de considerá-lo como tal, visto que, não obstante seus eventuais interesses narrativos, ele é sub-qualitativamente obnubilado até mesmo pelos padrões decadentes da Globo Filmes. Tentemos encontrar algo nele que sirva, portanto!

A entrega da trilha sonora ao músico de vanguarda Egberto Gismonti é um elemento que chama atenção, no sentido de que a adesão deste irrequieto artista ao projeto talvez indicasse uma regeneração ideológica por parte dos envolvidos, mas, infelizmente, o que acontece é justamente o contrário: não somente o roteiro do filme dilui ardilosamente toda a sua negatividade oportunista como a trilha sonora composta pelo virtuoso arranjador fluminense pouco faz além de acentuar os vazios discursivos do filme, que se estrutura permissivamente através do revezamento entre a reprodução de uma famosa entrevista do médium mineiro a uma emissora de televisão na década de 1970 e a reconstituição dos fatos que ele narra, desde a lambida forçada que ele é obrigado a aplicar sobre uma ferida no joelho de um menino, quando ainda era criança (época em que é interpretado hiperestimadamente por Matheus Costa) e constantemente espancado por sua madrinha Rita (Giulia Gam), até os anos finais de sua velhice, em que se dedicara sobremaneira ao trabalho de psicografador, ignorando as moléstias oculares e prostáticas que lhe afligiam. É neste ponto que cabe ser renitente acerca de um aspecto deveras preocupante do filme: seus elementos isolados até que não são de todo ruins, mas o modo como estes são concatenados comercialmente – e moralmente, já que o discurso ecumênico do filme é bastante suspeito – faz com que seus 125 minutos de duração soem bastante incômodos, mesmo não sendo necessariamente enfadonhos.

A má direção previsível do televisivamente esquemático Daniel Filho é um dos principais defeitos do filme, visto que ele prejudica a linearidade expositiva do filme, desperdiçando bons atores (Christiane Torloni, por exemplo, está insuportavelmente caricata como a atormentada Glória) e inserindo momentos de comicidade que, ainda que tenham sua veracidade confirmada pelo personagem real, vão de encontro à seriedade religiosa e/ou doutrinária que, sob o comando de um realizador minimamente competente, mereceria crédito ao menos pela sinceridade. Nesse sentido, a cena em que o jovem Francisco (Ângelo Antônio) congrega as prostitutas de um bordel numa oração, o instante em que este mesmo personagem é açoitado por uma bíblia depois de um exorcismo e a seqüência em que o velho Chico Xavier se apavora durante uma viagem de avião são contraproducentes em relação à simpatia até então desenvolvida sobre o personagem principal, mesmo que inicialmente discordássemos ou descrêssemos de seus preceitos espirituais. O mesmo pode ser dito em relação às cenas protagonizadas por Giovanna Antonelli e Cássio Gabus Mendes, ambos injustamente prejudicados pela má composição de seus personagens. Quanto ao papel desempenhado por Tony Ramos, que vivifica um editor de televisão atormentado pela morte recente de um filho, o roteiro de Marcos Bernstein é bem-sucedido quando lhe dá voz, dado que ele condensa com precisão experiências que o diretor Daniel Filho pode ter vivido e que tencionava valorizar enquanto subtexto profissionalizante, o que explica a pusilanimidade formal da fotografia de Nonato Estrela e faz com que questionemos o sentido metafórico equivocado do primeiríssimo plano que abre o filme, quando uma gota de colírio é mostrada pingando sobre a córnea do líder espírita.


Supondo que o espectador consiga relevar diálogos abomináveis como quando o protagonista diz que só vai morrer “quando o Brasil inteiro estiver feliz” (declaração confirmada durante os créditos finais pela coincidência entre a morte do religioso e a conquista de um importante campeonato de futebol pela seleção brasileira) ou a misteriosa declaração do mesmo sobre o sexo (em que ele afirma que deveríamos destinar energias canalizadas nesta atividade para outras situações afetivas mais gerais), este será obrigado a concordar que algo neste filme é excepcional: a interpretação praticamente mediúnica de Nelson Xavier, que capta com riqueza de detalhes a extrema afetação comportamental do personagem, conforme podemos confrontar ao vermos imagens reais de Chico Xavier durante os créditos finais, em que são exibidos vários trechos da famosa entrevista reproduzida no filme, o que, por outro lado, faz com que questionemos novamente os interesses que permeiam esta reprodutividade transmidiática. Palavras conclusivas: o filme é minimamente agradável enquanto potencial narrativa biográfica, mas contentar-se com este tipo dominante de fórmula enredística durante uma nova tradição emergente de cinematografia nacional popularesca é engessar-se na mesmice financiada dia após dia pela emissora de TV de onde proveio a maior parte dos técnicos envolvidos no projeto. E isto é mau, muito mau (com u mesmo)!

Wesley Pereira de Castro.