terça-feira, 16 de agosto de 2011

SUPER 8 ('Super 8') EUA, 2011. Direção: J. J. Abrams.

Não obstante gozar de considerável fama e de suficiente capital comercial por ter sido o criador do bem-sucedido seriado televisivo “Lost” e por ter dirigido o nojoso mas vendável “Star Trek” (2009), J.J. Abrams é comumente eclipsado no material de divulgação deste filme pelo supradestacado nome do produtor Steven Spielberg. A principal explicação para a recorrência deste eclipse directivo não é meramente oportunista ou involuntária: de fato, “Super 8” tenta emular o clima de espanto extraterreno que marcou “E.T., o Extraterrestre” (1982), uma das várias obras-primas deste diretor. Além de alguns enquadramentos tentarem recriar o clima de deslumbramento que torna aquele filme inesquecível, o modo como os personagens pré-adolescentes são construídos parece se sujeitar a um padrão spielberguiano primevo de adesão sincera às motivações do público-alvo mais rentável de Hollywood.

Mas as semelhanças param por aí: por mais que o esforçado diretor de fotografia Larry Fong endosse a referida similaridade, o tom moral que J. J. Abrams imprime em seu roteiro trai violentamente o respeito infanto-juvenil que Steven Spielberg demonstrava em cada minuto de seu filme emulado. Para ficar em apenas um exemplo evidente, basta analisar como o péssimo uso da trilha sonora incidental de Michael Giacchino, colaborador habitual do diretor J. J. Abrams, chafurda no enfado não-diegético qualquer possibilidade de os personagens deste filme gozarem de tridimensionalidade compositiva.

Ou seja, até mesmo um ensaio actancial do curta-metragem que os diletantes personagens realizam é acompanhado por uma trilha sonora xaroposa que artificializa e torna ainda mais inverossímeis as reviravoltas defeituosas do entrecho, que descamba para a auto-ridicularização quando sucumbe a um clichê heróico ingênuo e basilar do cinema aventuresco: a crença de que o espectador aceitará como absolutamente normal que, por mais ameaçadores que possam ser os perigos ao redor, nenhum dos amigos íntimos do “mocinho” será morto ou gravemente ferido até que a estória termine. Pior: além da citada “indestrutibilidade prototípica”, os parentes e amigos do protagonista demonstram-se capazes de façanhas quase sobre-humanas, que garantem a salvação de toda a humanidade, numa inversão de princípios que, se parecia inicialmente destinada a reconstituir uma espécie de saudosismo oitentista, revela-se pernosticamente anacrônica em sua pecha de atualização tecnológica.


Abusando de componentes enredísticos absolutamente chavonados que têm por intuito-mor fazer com que um espectador mais velho (e, portanto, fã do filme spielberguiano) se sinta retransportado ao contexto em que “E.T., o Extraterrestre” fora lançado, “Super 8” abusa de elementos estereotípicos relacionados àquela época. Por isso, ouvimos um atendente de loja de conveniência escutar um sucesso antigo do grupo Blondie num ‘walkman’ e comemorar a novidade de tal empreitada; vemos uma cidadã reclamar que, segundo suas suspeitas plausíveis, o desaparecimento de vários fornos microondas de seu estoque de eletrodomésticos seja um estratagema de invasão soviética; e deparamo-nos com o sobejo de piadas envolvendo o funcionário de loja de revelação de material cinematográfico que exagera no consumo de substâncias entorpecentes. A pretensão destes estereótipos é evocar o espírito ‘kitsch’ tipicamente associado à década de 1980, mas estes fracassam por julgarem como retrógrados e caricatos os traços meramente peculiares de uma conjunção geracional.

Neste sentido, a descrição geral dos amigos do protagonista Joe Lamb (Joel Courtney) é abominável: há uma garotinha mui expressiva (Elle Fanning) mantida em confinamento pelo pai alcoólatra (Ron Eldard); há um garoto gordo e apaixonado por cinema de horror (Riley Griffiths) ansioso para poder encenar algumas convenções do gênero; há o rapazola bonito e mimado (Gabriel Basso), que sofre uma fratura exposta na perna como se fosse a punição por chorar e vomitar em demasia; há o piromaníaco imberbe (Ryan Lee) que contribui para que seus amigos livrem-se de uma situação de perigo, sem contar os policiais excessivamente íntegros e os militares insensíveis e vilanescos. Mas nada incomoda mais do que a previsibilidade acachapante das situações de redenção personalística que são anunciadas desde a primeira seqüência, quando sabemos que a morte da mãe de Joe por causa de um acidente metalúrgico engendrará a futura reconciliação entre o traumatizado causador do acidente e o amargurado viúvo, num diálogo que envergonha bastante por causa de sua insinceridade motivacional.


Ainda no que diz respeito às tentativas fracassadas de emular um clima de época, cabe-se perguntar o que o já mencionado diretor de fotografia Larry Fong quis dizer com a insistência em fazer com que um rastro de luz horizontal azul atravessasse a tela ao meio em mais de um momento: seja causada pelos faróis de um carro, pela fumaça de um cigarro, ou por reflexos luminosos aparentemente contingenciais, são diversas as seqüências em que esta linha azulada pode ser percebida nos fotogramas, como se possuísse uma significação fílmica essencial para a resolução/interpretação tramática, não sendo, portanto, um mero capricho técnico dos responsáveis pelo filme. Mas, tal qual o desaparecimento misterioso de todos os cachorros da cidade, esta linha azulada permanece sem explicação estético-funcional.

Além disso, os índices que antecedem a aparição definitiva do que se descobre como um extraterrestre confinado na Terra são falhos em sua intenção de criar suspense, posto que os efeitos especiais do filme são inconvincentes e deveras inferiores ao tipo de pirotecnia caro a produções do gênero. Tanto que beira o ridículo quando um garoto visa atrair a atenção do monstro alienígena com alguns fogos de artifício, quando este estava justamente ocupado com a montagem de uma maquete de nave espacial, em que faíscas ígneas saltavam das matérias-primas metálicas o tempo inteiro. Definitivamente, o roteiro paspalhão de J. J. Abrams subestima a capacidade perceptiva do espectador de uma forma tão vergonhosa quanto audaciosa, crente de que bastaria aumentar a intensidade dos acordes menos inspirados das composições de Michael Giacchino para obnubilar o quanto os clímaxes de ação deste filme são caricatos e esquemáticos.


Para que não se diga que o filme não tem mais nada de interessante, é válido acrescentar que a seqüência meta-narrativa que é apresentada durante os créditos finais é praticamente melhor que todo o filme em si, sendo feliz (agora sim!) na emulação de um espírito de época, homenageando adequadamente os famosos filmes de zumbis do mestre George A. Romero. Esta mesma seqüência, entretanto, revela o quanto o título do filme é infeliz em suas propostas genéricas, dado que as filmagens em Super-8 que os amigos infantis realizam durante o enredo vão se tornando terciárias enquanto foco de interesse, depois que o suposto poder de encantamento passional da personagem feminina Alice Dainard é externado. Voltando para o cotejo com o clássico spielberguiano: se, no filme de 1982, as crianças eram realmente interpretadas por crianças que agiam como crianças, aqui, as crianças são interpretadas por adolescentes que oscilam indiscriminadamente entre a pretensão profissional púbere (no pior sentido do termo, indicativo de adesão voluntária a uma fórmula de efetivação trabalhista) e os pantins tipicamente etários. Tudo isso contribui para que “Super 8” seja desagradabilíssimo enquanto retrato de uma época, enquanto filme de ação, enquanto esboço de ficção científica e enquanto cartilha moral reconciliatória. É como se Hollywood estivesse desaprendendo a emocionar ao mesmo tempo em que entrega às platéias um filme destinado a ser arrasa-quarteirão – como Steven Spielberg tão bem demonstrou em diversas de suas produções – o que só configura mais um reflexo lamentável da decadência hodierna generalizada que motivou a sua realização...

Wesley Pereira de Castro.

domingo, 14 de agosto de 2011

A ÁRVORE DA VIDA ('The Tree of Life') EUA, 2011. Direção: Terrence Malick.

Numa primeira análise, muitas são as similaridades percebidas entre os estilos e personalidades de Terrence Malick e Stanley Kubrick. Ambos são pessoalmente reservados, sofreram violentas sanções de seus produtores no que tange à autoralidade premente de suas obras, filmam com largos intervalos de tempo entre uma produção e outra e são muito coerentes na exortação das determinações morais que impingem em suas preciosidades cinematográficas. Enquanto o segundo diretor polariza os seus enredos através do conflito manifesto entre livre-arbítrio individual X pressões institucionais, o primeiro dialoga diretamente com uma entidade que pode ser amplamente cognominada como Deus.

Em seu filme mais recente, portanto, Terrence Malick assume este diálogo num viés que traz à tona o tipo de sobrenaturalidade realista praticado com fervor pelo genial cineasta italiano Roberto Rossellini. Os traços malickianos peculiares de montagem, fotografia e enredo estão lá: apesar de possuir apenas 139 minutos de duração e de os fotogramas serem concatenados de um modo célere quase videoclipesco, a suspensão proposital da narrativa faz com que o filme pareça mais lento do que é, forçando o espectador a uma reflexão intensa sobre os substratos éticos e religiosos da obra e da própria vida, tendo como ponto de partida o cotidiano de uma família tipicamente estadunidense, composta por pai, mãe e três filhos do sexo masculino, com pouca diferença de idade entre si. Um deles morre tragicamente e causa uma perturbação perene nos seus familiares sobreviventes, perturbação esta que será redimida numa seqüência derradeira metaforicamente associada ao Juízo Final ou ao sumo perdão divino que cimenta muitas religiões cristãs. O diferencial no modo como o diretor e roteirista defende seus pontos de vista mui particulares sobre religiosidade está no teor experimental de sua narrativa que, se não pode ser completamente tachada de inovadora (não obstante ser desconcertantemente inaudita) é justamente porque se assemelha deveras ao trecho final de “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968), obra-prima do cineasta com o qual Terrence Malick foi comparado no início deste parágrafo. Afinal de contas, em pelo século XXI, quem imaginaria que um drama intimista sobre a reconstituição intravalorativa de uma família norte-americana seria contrabalançado pela gênese de águas-vivas e pela extinção dos dinossauros?


Apesar de seus intentos gerais permanecerem obscuros para quem não viu todos os filmes anteriores do cineasta, não se pode reclamar que Terrence Malick tenha sido pouco explícito na explanação de suas crenças: construindo o personagem Jack O’Brien (na infância, supremamente interpretado por Hunter McCracken; e, na idade adulta, por Sean Penn) como uma espécie de alter-ego confessional, o enredo deste filme inicia-se com uma divagação da jovem mãe interpretada maravilhosamente por Jessica Chastain, que comenta que, na infância, ensinaram-lhe a diferenciar prontamente a Natureza da Graça. Segundo ela, enquanto a primeira acostuma-se a ser vilipendiada, traída e abandonada, a segunda assegura um final feliz e a comunhão dos bons sentimentos àqueles que a seguem. A partir daí, uma coletânea surpreendentemente sintética e minuciosa de cenas típicas do cotidiano familiar (tanto alegres quanto tristes) são despejadas, demonstrando o verdadeiro ‘tour de force’ que os cinco montadores do filme (entre eles, o brasileiro Daniel Rezende) tiveram que executar a fim de porem em prática o subjetivismo narrativo do diretor. Sabemos de antemão que um dos três filhos morre (de forma nunca claramente explicada ao espectador), que o pai vivido por Brad Pitt é austero e um tanto contraditório em suas exigências comportamentais e que a criança através de cujo ponto de vista é narrado o filme questiona o tempo inteiro os fundamentos da existência normativa de Deus. Eis o pretexto para que o cineasta se disponha a uma genial e demorada seqüência sobre os primórdios do Universo, através de uma perspectiva físico-existencial que confronta diretamente tanto aqueles que aceitam apaixonadamente a teoria de “Deus criou o céu a terra”, com diz a Bíblia, quanto aqueles que se baseiam prioritariamente em evidências paleontológicas para afixarem-se aos saberes científicos como sendo assaz válidos, em especial num cotejo com as crenças religiosas.


Oscilando narrativamente entre geo-biogênese, memórias de infância e lamentações e arrependimentos da vida adulta, o roteiro escrito por Terrence Malick perfaz um retrato incisivo e epopéico sobre um tema particularmente caro aos católicos: a incidência do sofrimento até mesmo sobre quem é fielmente temente ao Deus criador, o que só torna muito mais evidente a importância de se interpretar os versículos do livro de Jó, pronunciados por Deus em si, que surgem num letreiro inicial: “Sobre o que repousam as suas bases? Quem colocou nelas a pedra de ângulo, quando juntas cantavam as estrelas da manhã e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?” (38: 6-7).

Quem dispõe, portanto, de um acessório entendimento bíblico, sentir-se-á tentado a interpretar o filme como sendo uma releitura contemporânea do livro de Jó, um servo fiel de Deus, que, em razão de uma disputa de forças superiores à sua reles humanidade, é testado no âmago terreno de sua fé, conhecendo a dor, a perda e o abandono, não obstante ser precisamente aquilo o que o Velho testamento entendia como “um bom homem”. Acompanha-se, a partir de então, o embate cada vez mais ferrenho entre Jack e seu pai, a ponto de o primeiro rezar a Deus para que o segundo morra e, não obtendo resposta sobre as suas preces, clama: “Oh, Deus, porque nós temos que ser bons, se Tu mesmo não és?”. À medida que acentua cada vez mais o desamparo religioso do suposto protagonista infantil de seu filme, Terrence Malick prontamente restitui a narração da mãe como sendo vigorosa e onisciente, defendendo o apelo irrestrito ao perdão, à esperança e ao amor incondicional como sendo ferramentas precisas para se enfrentar a vida com a galhardia que ela exige. E é neste ponto que o para-rossellinismo do cineasta atinge o paroxismo de sua genialidade, qualitativo não apenas por suas qualidades meritórias em si, mas também – e principalmente – por ser audacioso o suficiente para demonstrar-se tão pessoal e idiossincrático num contexto fílmico em que o espetáculo e as superficialidades tramáticas são apregoados como únicas garantias de visibilidade exibitória. Ou seja: parafraseando o dito cristão de que “muitos são os chamados, poucos são os escolhidos”, Terrence Malick realiza aqui uma obra autoral e extraordinária que fala diretamente a qualquer ser, mas que, por isso mesmo, é prontamente rejeitada pela maioria deles, justamente porque o mundo circunvizinho logra crescente êxito no que diz respeito à despersonalização e ao esvaziamento referencial de seus espectadores, entendidos e auto-assumidos como meros consumidores epidermicamente saciados.

Além disso, evitando a prioridade de qualquer um dos dois preditos extremos da polarização entre Natureza e Graça, Terrence Malick faz desembocar um filme transcendental que conclama os espectadores a divagarem entre si sobre muito mais do que os parâmetros técnicos e compositivos dos filmes tradicionais os incitam. “A Árvore da Vida” é, portanto, um filme para ser introjetado não apenas pelos cinco sentidos humanos, mas também por uma motivação sobre-humana que justifica o celebre adágio pascaliano que afirma que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Em mais de um sentido, “A Árvore da Vida” é um filme sobre a idéia que alguns ainda insistem em batizar como Deus – e isto, no contexto hodierno de capitalismo evidente, é uma provocação para a qual pouquíssimos são os que ainda estão preparados para (red)argüirem.


Para concluir, posto que os atributos técnicos do filme foram também convocados à pauta, cabe acrescentar que nenhum crítico sentir-se-á plenamente à vontade para escrever o que quer que seja sobre este filme sem destacar a magnânima direção fotográfica de Emmanuel Lubezki, a encantatória trilha musical de Alexandre Desplat (que, dada a exuberância acachapante das imagens, soa justificadamente pusilânime nalguns momentos) e as ótimas interpretações de todo o elenco (ainda que, aqui, os atores ajam mais como avatares simbólico-metafísicos do que necessariamente como intérpretes de seres vivos com preocupações reais).

E, se o filme hesitou em ser perfeito como ele quase conseguiu, é quase como se tivesse se reservando à doação do direito divino de ser a suma e máxima perfeição, inebriando os espectadores com um sobejo de beleza e dor que, assim amalgamadas, grita de forma altissonante que Arte com inicial maiúscula é algo inequivocamente associado ao senso de ousadia. De coração, portanto, é preciso exclamar “amém!” quando a projeção deste filme se conclui. Por muitíssimo pouco, e quiçá propositalmente, não foi uma obra-prima!

Wesley Pereira de Castro.