terça-feira, 6 de março de 2012

PODER SEM LIMITES ('Chronicle') EUA, 2012. Direção: Josh Trank.

Não obstante o roteiro de Max Landis desperdiçar o interessantíssimo argumento original escrito por ele próprio, “Poder Sem Limites” permanece muito válido e digno de consideração positiva em razão de seus erros sintomáticos. Por mais que a direção esquizofrênica do novato Josh Trank contribua para desperdiçar ainda mais o potencial genericamente contestatório do enredo, sua subsunção titubeante a um clichê narrativo videográfico contemporâneo escancara uma crise conteudística, personalística e – por que não? – político-geracional que, mais uma vez, torna o filme particularmente elogiável.

Logo na primeira seqüência, constata-se a falibilidade (no pior sentido do termo) do estratagema formal das câmeras ostensivamente subjetivas que mesclam-se através da má montagem de Elliot Greenberg: o protagonista Andrew Detmer (Dane DeHaan) seleciona o melhor ângulo de filmagem diante do espelho de seu guarda-roupa, enquanto seu pai bêbado tenta arrombar a porta do quarto. Não se sabe inicialmente o porquê de ambas as atitudes, mas Andrew antecipa-se em avisar que está registrando o péssimo comportamento de seu pai, a fim de quiçá denunciá-lo às autoridades tutelares competentes. Logo em seguida, descobrimos que a mãe deste rapaz é uma doente terminal e que, para além de seu alcoolismo iracundo, seu pai a ama e cuida dela com atenção redobrada, a ponto de se indignar quando descobre que o filho gastou quinhentos dólares num aparelho de filmagem quando poderia estar contribuindo para a compra dos remédios caros de sua genitora.

Fica logo evidente, portanto, o quão superficiais e oportunamente contraditórias são as construções dos personagens centrais deste filme, de modo que não é surpreendente nem tampouco sarcástico depararmo-nos com o primo de Andrew, Matthew Garetty (Alex Russell), deturpando os ensinamentos de Arthur Schopenhauer ou Carl Gustav Jung enquanto ouve uma canção ‘pop’ interpretada pela artista britânica Jessie J. É como se o roteirista nos avisasse o tempo inteiro que não devemos levar os personagens a sério, mas, ao mesmo tempo, uma pertinente citação da alegoria platônica da caverna à beira da misteriosa cratera que dá origem ao poder constante do título nacional nos leva num caminho absolutamente inverso: a elaborada e intencional fomentação da suspeita. Eis que o filme se torna esquematicamente curioso, portanto.


Depois que entram em contato com um suposto meteoro, Andrew, Mathew e um colega em comum, Steve Montgomery (Michael B. Jordan) tornam-se dotados de poderes telecinéticos, mas, ao invés de transformarem-se super-heróis amadores ou qualquer coisa do gênero, utilizam-se humoristicamente destes poderes, empurrando carrinhos de compra em supermercados ou protagonizando espetáculos de malabarismo num evento escolar. A partir desse ponto, o roteiro apresenta o seu aspecto mais original: um dos rapazes, justamente o tímido e deslocado Andrew, constata que o incremento de seus poderes não o torna um aluno mais popular e indigna-se contra os demais, assassinando um deles num surto de fúria e atacando a sua família numa represália colérica subseqüente. Problematicamente (em pelo menos dois sentidos do termo), a direção do filme insiste em registrar estas ações de revolta como se fossem captadas pela câmera de Andrew, o que torna muito esquisita a cena em que ele declama para o visor do aparelho a satisfação pessoal de ter arrancado os dentes frontais de seus arquiinimigos colegiais, numa atitude contrastante com o contexto espectatorial em que as apologias heróicas costumam ser freqüentes...


Conforme se torna óbvio com o desenrolar da trama, nem o diretor nem o roteirista saberão como solucionar a bizarra conjunção de clímaxes de ação que abundam na segunda metade do filme e recorrem a um desfecho apressado e inconvincente, em que Andrew é empalado à distância por seu primo, que, numa cena posterior, declama seu amor por ele diante de uma câmera colocada no topo do monte Everest. O que isso quer dizer no contexto hollywoodiano atual? A impossibilidade de uma resposta previsível a este questionamento é o que torna este filme mais charmosamente defeituoso em sua amoralidade pós-moderna, entendendo-se a mesma como atrelada às pseudo-anomalias capitalistas manifestas nas diversas cenas de assalto protagonizadas por Andrew.

Nesse sentido, a contribuição de imagens de câmeras de vigilância que se somam às inverossímeis captações da câmera manual de Andrew traz à tona outro aspecto personalístico coadjuvante que muito contribui para o interesse analiticamente involuntário relacionado à edição do filme, materializado na blogueira Casey (Ashley Hinshaw), cujas tomadas exibicionistas de câmera são muitas vezes ordenadas em campo-contracampo com as imagens gravadas por Andrew, simulando uma improvável impressão de continuidade linear que torna ainda mais desengonçada a opção estética do diretor em centralizar a sua condução enredística no material captado intradiegeticamente. A evidente dissonância formal daí resultante faz com que, mais uma vez, suspeitemos com muita perspicácia da opção directiva por detrás dessa adesão formal clicherosa.


Para além dos diversos equívocos – propositais ou não – de desenvolvimento roteirístico e evolução directiva, as reviravoltas tramáticas inusitadas, os ótimos efeitos visuais, a boa trilha edição de sons e o elenco mediano porém correto tornam a experiência de assistir a este filme muitíssimo divertida, sobrepondo-se às máculas de formatação sintagmática de modo tão safo quanto incontrolavelmente conflituoso. Enquanto sintoma de adequação a seu tempo, isso faz com que “Poder Sem Limites” destaque-se positivamente em meio à soçobra de franquias descerebradas atuais. Na pior das hipóteses, o modo troncho com que ele nos leva a formular questionamentos essenciais sobre perspectiva cinematográfica deve ser criticamente laureado pela coerência etária. Isto serve de consolo?

Wesley Pereira de Castro.