quinta-feira, 31 de maio de 2012

RAUL - O INÍCIO, O FIM E O MEIO (Brasil, 2011). Direção: Walter Carvalho, Evaldo Mocarzel & Leonardo Gudel.

A descrição da estereotipada entrada em cena do escritor Paulo Coelho, personalidade importantíssima na compreensão reconstitutiva de quem teria sido Raul Santos Seixas, é fundamental para se entender o que este documentário tem, ao mesmo tempo, de mais interessante e de mais problemático: acendendo lentamente um quarteto de velas, não obstante o espaço em que ele está sentado já estar bastante iluminado, o escritor antecipa-se em dizer que o seu antigo colaborador musical é uma lenda e, como tal, “não se conta a história de uma lenda, conta-se a lenda”.

Tal depoimento, tão risível quanto despropositado, é seguido por alguns planos metalingüísticos, em que o escritor perquire a equipe técnica do filme acerca dos locais onde as câmeras estarão posicionadas. O que se detecta com isso: 1 – que o documentário respeitará a liberdade dos entrevistados em falar o que quer que seja sobre o extraordinário personagem biografado; e 2 – apesar de Raul Seixas já ser um chamariz mais do que imponente, o filme quer chamar também a atenção para si, através de recursos pretensamente humorados de linguagem que perigam descambar a qualquer momento para um sensacionalismo dramático, o que, de fato, acontece nas supérfluas seqüências mostradas após a exibição regressiva de fotografias do cantor, desde a sua maturidade até a sua infância.

 Pesando-se ambos os indícios, entretanto, o filme foi bem-sucedido em seu retrato amplo de um dos mais originais artistas brasileiros, ainda que seja peculiar perceber que, em seus 130 minutos de duração, o roteiro do co-diretor Leonardo Gudel oblitera ou aborda superficialmente fases determinantes da carreira multifacetada do músico, como a sua inclusão tangencial na Jovem Guarda ou a composição da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, em 1971. Entretanto, no que diz respeito a uma inteligente correlação entre a vida pessoal [e, principalmente, (para)conjugal] do roqueiro e suas canções mais famosas, o filme revela-se bastante meritório.

 Iniciado coerentemente com algumas reminiscências de parentes e amigos de Raul Seixas sobre os seus primeiros contatos com as músicas e filmes do ídolo Elvis Presley, as bandas de que participou na adolescência e os conselhos masturbatórios que lhe seriam bastante úteis em noites de insônia, “Raul – O Início, o Fim e o Meio” logo revela um de seus primeiros clímaxes emotivos: a leitura de uma carta, através do Skype, em que a sua primeira esposa, Edith Wisner, expressa o seu desinteresse em participar do filme, visto que falar sobre seu ex-marido equivaleria a desenterrar muitas memórias tristes. O sub-enquadramento cibernético no interior da tela (repetido em diversas seqüências posteriores, como, por exemplo, no depoimento filmado de Marcelo Nova sobre a morte do protagonista) cria um incômodo proposital que reflete muito bem o próprio incômodo metonimizado pela mulher, que disfarça com eximiedade a afetação sentimental durante a leitura – em inglês – de sua carta. Em seguida, a bióloga Simone Wisner relata objetivamente o pouco que se lembra do seu pai biológico, já que fora reculturalizada nos EUA quando sua mãe se casou com outro homem. E, sintomaticamente, o distanciamento emocional de ambas as mulheres acerca da personalidade muito passional de Raul Seixas adiciona um elemento conflituoso muito bem-vindo ao documentário, que, até então, nos seduzia com as divertidas historietas de seu amigo de infância Waldir Serrão, inclusive no que diz respeito às condições chistosas da cerimônia de casamento entre Raul e Edith.

 À medida que a narrativa do filme avança no deslindamento das diversas fases de sua carreira e de sua vida pessoal, minimamente entrelaçadas, conforme já dito, somos apresentados às outras esposas e/ou companheiras do cantor, cada uma delas expondo com muita percuciência detalhes cabais de seus relacionamentos. Há um destaque temporal muito justificado para a norte-americana Gloria Vaquer, que o acompanhou no apogeu da fase em que o cantor se filiara, com Paulo Coelho, aos ditames da Sociedade Alternativa inspirada no bruxo Aleister Crowley, que inspira algumas das mais divertidas passagens do filme, a cargo da entrevista com o escritor que vive em Genebra e, numa cena hilária, é perseguido por uma mosca justamente quando comentava sobre algumas das mais inspiradas composições conjuntas com o amigo baiano.

A transição narrativa entre a rememoração da convivência com Gloria, com quem Raul Seixas teve uma filha – Scarlet, batizada em homenagem a uma obra de seu bruxo inspirador, e bastante emocionada quando surge em cena – para a mancebia com Tania Menna Barreto tem como elemento positivo a comparação entre as personalidades do introvertido Paulo Coelho e do expansivo Cláudio Roberto, transmutada numa análise qualitativa de ambas as parcerias que é reproduzida pelo filme através de uma briga de galos que, num momento seguinte, é brilhantemente diegetizada, visto que estes galináceos faziam parte de uma criação pessoal na fazenda do segundo compositor. Tal recurso lingüístico, aliás, reaparece de forma ainda mais genial no depoimento de Lena Coutinho, mulher por quem se apaixona depois que se separa de Kika Seixas – com quem também teve uma filha, Vivian – e que justifica os comentários sobre o odor supostamente doce (ou floral) do cantor através da explanação de que isso já poderia ser uma característica externa de seu diabete. Proceder esta fala plena de realismo poético com as espalhafatosas intervenções da produtora Maria Juçá Guimarães – que aparece numa gravação em vídeo esbravejando contra uma platéia insatisfeita e, na entrevista para o filme, mergulha numa piscina com água suja após o seu depoimento – foi um recurso muitíssimo acertado por parte dos diretores do filme, bem como a pitoresca situação em que o guitarrista Jay Vaquer interrompe um relato para demonstrar que carregava uma arma consigo.

Por fim, diante da impregnação positiva de informações historicizadas (ao contrário do que sugerira o afetado Paulo Coelho) sobre quem teria sido o lendário Raul Seixas, o filme demonstra-se equivocado quando inclui participações pouco relevantes de fãs comentando sobre particularidades e conseqüências onomásticas do artista (vide a inexplicável aparição do ator Daniel de Oliveira), quando convoca o pernóstico jornalista Pedro Bial para estabelecer julgamentos imprecisos sobre a trajetória do cantor ou quando desdenha os aspectos pouquíssimo debatidos sobre as já comentadas vinculações do roqueiro com a Jovem Guarda, por exemplo.

Porém, os momentos laudatórios do filme são mais numerosos: a breve porém fundamental aparição de Edy Star rechaçando a propalada (e, afinal, infundada) homofobia do cantor; a análise reverencial de Caetano Veloso acerca da belíssima canção “Ouro de Tolo”; a magnífica interpretação do genial Tom Zé (que demora a surgir num enquadramento que o espera por detrás de uma porta) para sua composição “A Chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI”; a rememoração da mãe do biografado, Maria Eugênia Santos Seixas, sobre o dia em que fora torturado pelo Exército e deportado do País; o reencontro de Raul Seixas e Paulo Coelho, em pleno palco, depois de anos sem se verem; e, principalmente, a relevância concedida à empregada do artista, Dalva Borges, que hesita e não responde duas perguntas cruciais sobre o relacionamento do cantor com o ex-vocalista da banda Camisa de Vênus, Marcelo Nova, na última e mais delicada fase de sua carreira. Infelizmente, Dalva também protagoniza a pior cena do filme, uma constrangedora reconstituição do dia em que ela encontrou o cantor morto em sua cama, num registro apelativo que trai sobremaneira a fidedignidade depoimental de todos os participantes do filme, até mesmo do paraibano Zé Ramalho, que aparece apenas alguns segundos em cena. Com certeza, este é um documentário-chave para qualquer um que declame (ou teime em aceitar) que, de fato, como muitos alegaram durante a projeção, Raul Seixas foi um dos mais extremos artistas contraculturais do Brasil. Impossível não se tornar ainda mais seu fã depois desta apaixonada declaração de amor a sua vida e ao seu legado!

 Wesley Pereira de Castro.

sábado, 5 de maio de 2012

PARAÍSOS ARTIFICIAIS (Brasil, 2012). Direção: Marcos Prado.

Ao final da sessão deste filme, tanto espectadores senso-comunais como aqueles mais intelectualizados entrarão em concordância avaliativa a partir de um mesmo substantivo abstrato: obviedade. Se isto denota alguma falibilidade na condução alinear de seu enredo, que é extremamente previsível tão logo se possa verificar que se tratam dos mesmos personagens em anos distintos, na investigação de sua coerência constitutiva, esta mesma obviedade torna-se um elemento positivo, visto que o filme é muito cuidadoso na exposição reiterada de explicações intradiegéticas que a justificam.

 A seqüência em que o personagem Mark (Roney Villela), um senhor bem mais velho que as demais pessoas que encontra numa ‘rave’, apresenta a sua definição para as drogas é fundamental neste sentido. Segundo ele, as drogas (ou, para utilizar uma expressão menos careta, a cargo de Arnaldo Baptista, “expansores da musculatura mental”) “não criam a partir do nada: elas apenas amplificam os anjos e demônios que já estão dentro de nós”, o que nos leva a entendê-las, em nível prático, como paroxismos da obviedade, seja no que tange às motivações predominantes de consumo hodierno (o tédio intencionalmente introduzido pela economia capitalista, por exemplo), seja no que diz respeito às suas conseqüências inevitavelmente desagradáveis (as ‘bad trips’ e overdoses que surgem no filme), sem falar nas complicações vinculadas à ilegalidade de seu tráfico. E tudo isso contribui para que “Paraísos Artificiais” faça jus à pretensão taxonômica de seu título.

Dirigido por um cineasta estreante em ficção e cujo trabalho anterior [o documentário “Estamira” (2004)] fora amplamente divulgado e elogiado, menos por suas opções estéticas intrínsecas que pela desenvoltura inaudita de sua personagem central, “Paraísos Artificiais” conquista a atenção espectatorial mesmo quando elementos do filme parecem empurrá-la para um fastio reativo, cuja trama padece não apenas de originalidade como de inventividade. Escrito por três pessoas (Pablo Padilla, Cristiano Gualda e, entre eles, o próprio diretor) e adaptado de um argumento enredístico estranhamento elaborado por ainda mais escritores, o roteiro deste filme obtém êxito justamente quando assume a referida obviedade e a conduz até um arremedo de final feliz, que é incoeso, porém validado pela simpatia dos personagens. 

Para além das precipitações compositivas do adolescente Felipe (César Cardadeiro), Nathalia Dill (Érika) e Luca Bianchi (Nando) apresentam bons desempenhos, estando ela muito melhor que ele: se ela ostenta pelo menos três configurações personalísticas diferentes, a depender do contexto etário, geográfico e emocional que enfrenta, ele satura a variação mais contemporânea de seu personagem com uma propensão auto-vitimizante que beira a antipatia, mas está muito competente no espaço-tempo fílmico mais antigo, contribuindo bastante para sua difusão empática o uso bem-direcionado de sua acachapante beleza física. E, em meio a eles dois (literalmente, no plano sexual), Lívia de Bueno se destaca pelo carisma e também pela formosura, não obstante sua personagem incorrer em muitos clichês compositivos de propulsão pseudo-ataráxica, o mesmo servindo para o personagem de Bernardo Melo Barreto. No geral, portanto, o trabalho de elenco neste filme é digno de elogios moderados.

No que tange às suas qualidades técnicas, “Paraísos Artificiais” rende-se à mediania pretensamente exuberante do “padrão Globo Filmes de qualidade” em sua fotografia e trilha sonora: se, no segundo caso, os temas musicais de Rodrigo Coelho reconstroem bem o universo ‘techno’ requerido pela trama, no primeiro, o trabalho de Lula Carvalho nos alicia por causa dos contagiantes enquadramentos carnais nas cenas da festa praiana, pela breve focalização de elementos exógenos à estória, mas que são fundamentais para a justificação de alguns estados mentais dos personagens [vide a rápida cena do acidente automobilístico, que faz pensar num estratagema semelhante adotado, de forma muito mais politizada, em “E Sua Mãe Também” (2001, de Alfonso Cuarón)] e por dois planos celestes inspiradíssimos, em que a mostra de estrelas cadentes atravessando um belíssimo céu noturno confere um estatuto moralista à relação especular entre espectadores e personagens, como se gritasse para ambos: “aprendam a olhar para o mundo óbvio lá fora”!   

Analisando o filme genericamente, não há necessariamente uma ruptura entre a submissão ao objeto antropológico documentado do filme anterior de Marcos Prado e esta sua nova faceta ficcional, mas sim uma demonstração reiterada de direção abrandada, no sentido menos voluntário do termo. Em ambos os filmes, é como se o diretor se mantivesse refém de movimentos humanos internos, que são surpreendentes no filme prévio e abundantemente esquematizados, em sua previsibilidade, no filme atual. Mas isto não impede que “Paraísos Artificiais” seja um interessante documento de época, um testemunho da vacuidade estrutural de uma geração que confunde mergulho psicodélico no autoconhecimento com esperança de encontrar em substâncias lisérgicas industrialmente sintetizadas e amplamente comercializadas os supridores vicários de suas lacunas societais. E, se formos analisar o filme pelo prisma político, não resta dúvidas de que ele se encaixa muito bem no status promovido pela Globo Filmes: um retrocesso acelerado, porém disfarçado, pelas ferramentas epidérmicas de sedução audiovisual.


Wesley Pereira de Castro.