terça-feira, 26 de junho de 2012

PROMETHEUS ('Prometheus') EUA, 2012. Direção: Ridley Scott.

A maior parte das críticas entusiasmadas sobre o aguardado retorno do diretor Ridley Scott à ficção científica, gênero de seus dois melhores filmes, destaca positivamente o modo como ele recicla motes tramáticos de suas duas principais obras-primas. Ainda que os devaneios sobre (re)criação da vida oriundos de “Blade Runner, o Caçador de Andróides” (1982) sejam evocados – em especial, através da personagem de Charlize Theron – o diálogo mais efetivo de “Prometheus” (2012) é com “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979), do qual fica parecendo uma preqüência na cena final. A assunção, durante os créditos de encerramento, de que o roteiro de Jon Spaihts e Damon Lindelof contém elementos baseados em extensões alienígenas dos personagens criados por Dan O’Bannon e Ronald Shusett explica muito sobre a concepção rítmica do filme, que, em mais de uma situação, se assemelha ao do clássico protagonizado por Sigourney Weaver.

Tal qual ocorre naquele filme, em “Prometheus”, os tripulantes da nave em que se encontra a personagem de Naomi Rapace vão sendo eliminados um a um, até que ela se torna a única sobrevivente humana. As diferenças entre ambos os filmes, entretanto, são bastante reveladoras de um cansaço estrutural por parte do diretor, que entope este filme mais recente com clichês de sobrevivência física que quase ultrapassam a verossimilhança ditada pelas convenções do gênero. Ou seja, o fato de a doutora Elizabeth Shaw ser submetida aos mais graves perigos e realizar as mais graves descobertas científicas e justamente ela conseguir fugir de personagens mal-intencionados, acidentes maquinais e ataques de criaturas desconhecidas parece forçado na segunda metade da projeção, mas, ainda assim, o filme é um afortunado alento na tendência predominantemente descerebrada que advém dos arrasa-quarteirões contemporâneos.

Tendo como ponto de partida descobertas espeleológicas que mesclam os desenhos recentemente encontrados na caverna Chauvet (no filme, atribuídos a uma caverna escocesa) a mistérios não-decifrados de pinturas rupestres das mais diferentes culturas, que, supostamente, teriam em comum a temática visual de um homem olhando para as estrelas, a doutora Elizabeth Shaw e seu cônjuge Charlie Holloway (Logan Marshall-Green) elaboram a teoria de que a raça humana teria sido criada por “engenheiros” que vivem num planeta distante centenas de quatrilhões de quilômetros em relação à Terra. Um rico empreendedor, interpretado por Guy Pearce, financia uma missão espacial em que dezessete tripulantes, a bordo da nave que intitula o filme, viajariam ao planeta identificado pelo casal de cientistas que elaborou a tese da engenharia extraterrestre para tentar entrar em contato com aqueles que seriam os criadores dos seres humanos e descobrir as suas intenções metafísicas.

Ao encontrarem evidências de que os tais criadores, de fato, existiram no planeta em que pousam, a tripulação da nave descobre que, aparentemente, eles foram extintos e que criaturas desconhecidas e condições atmosféricas árduas podem colocar suas vidas em risco. Conforme mencionado anteriormente, com exceção da doutora Shaw e do andróide interpretado por Michael Fassbender, todos os passageiros são mortos – alguns assassinados, outros sacrificados em prol da sobrevivência do planeta Terra, conforme opta o piloto Janek (Idris Elba), numa cena muito convincente do ponto de vista dramático. Mas, antes de voltar aos enigmas científicos elaborados pelo filme, convém analisar os personagens e/ou tipos que compõem a tripulação de Prometheus.

 Construído à semelhança dos humanos e quase onipresente no filme, o andróide David justifica comparações com o famoso robô cinematográfico HAL-9000 por causa da pane gnosiológica a que é submetido à medida que a trama evolui: apaixonado pelo épico “Lawrence da Arábia” (1962, de David Lean), do qual extrai vários jargões dialogísticos bem utilizados pelo roteiro, David desenvolve uma personalidade cada vez mais assemelhadas à curiosidade humana, investigando o planeta no qual a nave pousa por conta própria, escondendo informações dos demais tripulantes, realizando experiências perigosas que põem em risco a vida dos seres humanos ao seu redor e, afinal, revelando-se programado pelo bastante idoso Peter Weyland, financiador da viagem e pessoalmente interessado em encontrar com os “engenheiros” aludidos na teoria dos cientistas Shaw e Holloway. Um detalhe interessante é que a primeira aparição do personagem de Guy Pearce é precisamente uma projeção holográfica ao som da trilha sonora célebre que Jerry Goldsmith realizou para o filme que Ridley Scott dirigiu em 1979, escancarando os pontos de contato entre ambas as produções.

Os experimentos de David, entretanto, ocasionam a morte de Holloway por contaminação com formas orgânicas desconhecidas, o que impulsiona os desentendimentos entre a imponente e egocêntrica Meredith Vickers, filha não-assumida de Weyland, e os demais tripulantes da nave, que não compartilham da devoção da doutora Shaw à sua crença revezada com o cristianismo herdado do pai, também cientista, morto por contato com o vírus Ebola. E, neste ciclo de questionamentos científicos apenas ensaiados, chamam a atenção tanto a indiscrição crescente de David sobre a decisão da cientista Elizabeth de embasar suas formulações epistêmicas naquilo em que escolheu acreditar quanto a insistência desta última em descobrir os fundamentos exógenos da concepção humana e o motivo que levou os “engenheiros” a quererem destruir o planeta em que vivemos, destruição esta cujas hipóteses são apenas esboçadas pelo filme, tendente a uma nova franquia de continuações, deixando em aberto a explicação para a cena de suicídio extraterrestre que é mostrada em seu belo prólogo.

Numa análise mais geral, pode-se reclamar que “Prometheus” é bem menos existencial do que os louvores superestimados de sua publicidade deixam pressupor: na verdade, o grande mérito do filme é conduzir o suspense científico (e físico) sem abdicar da inteligência, detendo-se muito mais pressupostos interrogativos do que em respostas internas, que nem sempre são satisfatórias diante dos rumos filosóficos que o filme poderia adotar, mas rejeita em prol de cenas de ação extremamente elaboradas e adequadamente musicadas por Marc Streitenfeld.

A fotografia de Dariusz Wolski é muitíssimo boa tanto nas cenas espaciais quanto nas cenas em terra e no interior da nave, e os efeitos visuais, principalmente aqueles relacionados à criatura que estava sendo gerada no ventre da doutora Shaw, são excelentes, mas o filme ficou devendo uma abordagem enredística mais adulta, deixando-se contaminar pelas exigências entretenedoras do fetiche industrial-cultural em terceira dimensão. Mas é deveras satisfatório saber que Ridley Scott está de volta a um gênero que não apenas conhece muito bem como redefiniu por completo na década de 1980. Os fãs e exegetas de “Alien, o Oitavo Passageiro” agradecem!

Wesley Pereira de Castro.

“SHAME” (2011, DE STEVE McQUEEN) E AS CRISES DE CONSCIÊNCIA ADVINDAS DA MORALIZAÇÃO PORNOGRÁFICA

Numa entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo e publicada em 14 de março de 2004, o filósofo Gilles Lipovetsky associa o recrudescimento da pornografia na contemporaneidade a um sentimento de excrescência decorrente da perda dos limites da tradição representada principalmente pela religião e pelo Estado. Segundo o filósofo, o que ele define como hipermodernidade (“uma modernidade que não tem verdadeiramente nenhum modelo concorrente ”) é baseado numa cultura paradoxal que combina, simultaneamente, o excesso e a moderação, a partir de uma hipertrofia dos três principais elementos que constituíram a modernidade, desde o século XVIII.

No relato de Gilles Lipovetsky, estes três pilares são o indivíduo, o mercado e a dinâmica tecnocientífica, cuja ultrapassagem dos limites conduz “a uma espiral vertiginosa de harmonia e hipercompetição, recato e hiperpornografia”, conforme sintetiza o entrevistador Marcos Flamínio Peres e que explica um contexto em que “existem comportamentos inteiramente excessivos, como a pornografia, em que absolutamente tudo é permitido, embora ao mesmo tempo a vida sexual seja muito moderada”. 

Na entrevista em pauta, os filmes “Ken Park” (2002, de Larry Clark & Edward Lachman) e “Na Captura dos Friedmans” (2003, de Andrew Jarecki) são apontados como exemplos do paradoxo cultural explicada pelo filósofo. Dirigido por um cineasta britânico que chamou a atenção da imprensa em seu longa-metragem de estréia por causa do inteligente uso das privações fisiológicas de um indivíduo como elemento discursivo , “Shame” (2011, de Steve McQueen) é um corolário hodierno do panorama contextual definido pelo filósofo francês. Não obstante ter causado polêmica por causa da nudez dos atores e do controverso tema (a compulsão sexual encarada como um vício), “Shame” é um filme que incomoda e perturba justamente por seu moralismo, em que os componentes técnicos (principalmente, a trilha sonora condutiva de Harry Escott) realçam a pletora de seqüências em que o protagonista sucumbe a impulsos sexuais que não o saciam, mas que, para aquém desse aspecto, são revestidas de uma aura de periculosidade que reitera que “o uso do corpo está subordinado a uma gramática de comportamento sexual ”.

No filme, Michael Fassbender interpreta Brandon, um homem financeiramente bem-sucedido, mas cuja vinculação empregatícia não é suficientemente identificada, que gasta a maior parte de seu tempo ejaculando: no primeiro plano do filme, vemo-lo deitado, inerte, sobre uma cama forrada com lençóis azuis onde há indícios de que ele fizera sexo recentemente. Em seguida, ele é mostrado masturbando-se durante o banho, ato que voltará a repetir no banheiro da empresa em que trabalha, depois que descobre que seu computador fora levado para uma manutenção preventiva. Antes de ir para casa, flerta com algumas mulheres num bar e, enquanto janta, assiste a um filme pornográfico, ignorando os telefonemas repetidos de uma mulher que, em seguida, saberemos se tratar de sua irmã.

Sissy Sullivan, interpretada pela atriz Carey Mulligan, por sua vez, é o contraponto comportamental fraterno de Brandon: enquanto ele reage de forma quase impessoal às tentativas de entrosamento social perpetradas pelas pessoas que estão ao seu redor (patrão, amantes, colegas de trabalho, uma vizinha a quem ajuda a abrir a porta antes de entrar no prédio em que vive, etc.), ela lhe suplica que a deixa ficar alguns dias vivendo em seu apartamento pois está fugindo de uma relação amorosa mal-sucedida, conforme Brandon descobre quando a ouve conversar com alguém ao telefone enquanto ele tenta assistir a um filme pornô antes de dormir.

Enquanto Brandon é organizado e atlético, Sissy é caótica e possui várias cicatrizes no pulso, decorrentes de tentativas frustradas de suicídio, às quais, meio embriagada, ela atribui ao aborrecimento contínuo que experimentara na adolescência, quando perguntada sobre as mesmas pelo patrão de Brandon, interessado em transar com ela depois que se impressiona com a versão melancólica da canção “New York, New York” que Sissy interpreta e que, apesar de emocionado, seu irmão finge não ter prestado atenção. A convivência forçada entre o individualismo de Brandon e a dependência exacerbada de Sissy deflagra violentos desentendimentos entre os dois, acentuados quando ela flagra o irmão se masturbando no banheiro e quando ele a acusa de ter agido de forma promíscua por ter feito sexo com um homem casado, poucos minutos depois de tê-lo conhecido, não por acaso, o patrão de Brandon.

Numa cena bastante elucidativa sobre o tipo de julgamento moral que perpassa o filme, o parceiro sexual de Sissy repreende Brandon por encontrar uma grande quantidade de material pornográfico (contaminado por vírus cibernéticos, acima de tudo) no disco rígido de seu computador, enquanto conversava com seu filho pequeno através do Skype, de modo que as reações de Brandon – até então, aparentemente inemotivo – remetem diretamente ao título do filme, estranhamente não traduzido no mercado exibidor brasileiro, como se fosse uma reprimenda, visto que a palavra vergonha é significativa da dificuldade na vivência social do erotismo, surgida exatamente da contradição desejo (prazer sexual) X proibição ”.

A coadunação discursiva do filme à idéia de que “toda decisão extrema implica a punição de expor o indivíduo a perigos que a insuficiência da técnica de vida escolhida como exclusividade traz consigo ”, acentuada quando conseguimos identificar Sissy e Brandon como pessoas que desempenham papéis conflitantes no mesmo problema da economia libidinal do indivíduo destacada por Sigmund Freud, em que “aquele que for predominantemente erótico dará preferência às relações afetivas com outras pessoas, aquele que for mais narcísico e autossuficiente buscará as satisfações essenciais em seus processos psíquicos interiores ” permite que seja detectada no filme uma técnica de relato que emite julgamentos de valor acerca dos comportamentos dos personagens, técnica esta atrelada a um discurso moralizante.

 O que foi afirmado anteriormente acerca da trilha sonora como elemento que censura os comportamentos dos personagens pode ser percebido com mais vigor na cena em que Brandon penetra numa boate ‘gay’, depois de ter sido espancado pelo namorado de uma mulher que ele cortejou de modo ofensivo, e é abordado sexualmente por outro homem, que se ajoelha diante dele e pratica felação. Durante a seqüência, a trilha sonora adota uma dramaticidade ‘in crescendo’, que se sobrepõe à música eletrônica que está sendo executada na boate, conferindo à mesma, fotografada em vermelho-néon, um aspecto moralista de “descida ao inferno”, num viés que é esteticamente similar ao comumente adotado pelo diretor Gaspar Noé, em especial, no filme “Irreversível ” (2002).

Tal cotejo faz com que seja relevante retomar o texto de Gilles Lipovetsky, que define a sociedade hipermoderna como sendo aquela em que as formas coletivas “são reguladas tendo em vista o indivíduo, sua liberdade, suas escolhas, seus gostos ” e, principalmente, seus projetos. Nesse sentido, a relação de extravasamento entre o individualismo (convertido em hedonismo), a subsunção mercadológica e a dimensão tecnocientífica é patente em diversas cenas do filme, como por exemplo: quando Brandon e uma colega de trabalho intentam um encontro romântico num restaurante, mas são interrompidos o tempo inteiro pelo garçom; quando Sissy aproxima-se de Brandon para pedir um abraço, enquanto ele assiste a um desenho animado na TV, e, de repente, começam a discutir novamente, sendo que toda a seqüência é enquadrada a partir das costas de ambos os atores, enquanto a televisão é mostrada desfocada em segundo plano; a já mencionada interlocução familiar entre o patrão de Brandon e seu filho pequeno através de um sistema de videofone; e o desdém material demonstrado pelo protagonista quando joga fora seu ‘laptop’ em meio às pilhas de revistas e fitas pornográficas depois que se sente culpado ou ameaçado pela presença intrusiva e afetiva de sua irmã.

Ou seja, o modo como os personagens interagem com os aparatos tecnológicos ao redor não apenas confirmam o prognóstico lipovetskiano, ao mesmo tempo em que demonstram novas configurações de como “fatores constitucionais próprios e influências do meio atuam em conjunto na formação do supereu e na origem da consciência moral ”.

Ao final do filme, é operada uma mudança de consciência no protagonista, decorrente justamente da reiteração dos comportamentos autopunitivos de sua irmã, que surge com uma espécie de antagonista. Interessante é que, malgrado o filme ter enfrentando problemas de classificação por causa do excesso de sexo e nudez , que talvez expliquem o porquê de o filme não ter sido indicado a algumas premiações cinematográficas mais conservadoras – não obstante os panegíricos recebidos após a sua bem-sucedida exibição no festival de Cinema de Veneza – validam outra observação levada a cabo por Gilles Lipovetsky, que admite que os produtos midiáticos tornaram-se muito mais radicais em sua exposição da sexualidade e da violência nos últimos anos, mas “ao mesmo tempo, existem normas, como o respeito aos direitos do homem, a saúde e o amor, que não deixaram de existir e que continuam a orientar o comportamento de grupos e indivíduos ”.

 Apesar do desfecho em aberto do filme e comungando exemplarmente com as definições externadas pelo filósofo francês, “Shame” contem em seu título oportuno um elemento que o atrela a uma esfera de repugnância, em que a necessária transgressão da sexualidade distancia-se de uma pretensão sensação de liberdade para chafurdar no isolamento condenatório, de modo que como bem destaca Sigmund Freud, a hostilidade percebida entre os desenvolvimentos individual e cultural no que tange às funções sociais da repressão sexual não é uma mera oposição irreconciliável entre os instintos primordiais de Eros e Tânatos, mas “significa uma disputa na economia da libido, comparável ao conflito pela divisão da libido entre o eu e os objetos, e emite um equilíbrio final no indivíduo ”, que é justamente aquilo que mais dificulta – no sentido cultural do termo – a sua vida.

Quando é perguntado se as mídias ocupam um espaço deixado pela crise de legitimidade da sociedade hipermoderna, Gilles Lipovetsky afirma que “a tradição é a repetição, enquanto a mídia, em tese, retransmite uma informação para fazer mudar ”. Acrescentando que a época atual dificulta a identificação das “leis da história”, o filme “Shame”, cujo roteiro foi escrito pelo próprio diretor Steve McQueen e pela teatróloga Abi Morgan assume um esquematismo enredístico bastante evidente, para além das pretensas renovações formais associadas ao pequeno porém incisivo currículo cinematográfico do diretor. E, nesse sentido, o moralismo punitivo que advém do filme é tanto um sintoma dos tempos hodiernos quanto uma conseqüência a ser reproduzida com propósitos mercadológicos bastante definidos.

Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 24 de junho de 2012

SOMBRAS DA NOITE ('Dark Shadows') EUA, 2012. Direção: Tim Burton.

O lançamento do filme “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003) foi um divisor de águas na carreira do inspirado diretor Tim Burton, por pelo menos dois motivos: primeiro, porque foi a demonstração efetiva de que ele tornaria oficial a colaboração com a atual esposa Helena Bonham Carter, iniciada anteriormente em “Planeta dos Macacos” (2001), último filme em que ele trabalhou com sua antiga namorada Lisa Marie, que costumava aparecer em quase todos os seus filmes; e, segundo, porque dialogava diretamente com um problema pessoal que afligia o cineasta, no caso, o falecimento recente de seu pai. Tendo realizado os piores filmes de sua carreira imediatamente em seguida a esta produção e mergulhando numa sucessão de regravações que desperdiça as soluções criativas adotadas em suas obras-primas [“Edward Mãos de Tesoura” (1990), “Batman – o Retorno” (1992) e “Ed Wood” (1994)], Tim Burton redime-se em “Sombras da Noite”.

 Apesar de também ser uma regravação (no caso, de um seriado de TV homônimo que foi ao ar entre 1966 e 1971 e cujos atores principais fazem uma breve participação na cena do baile), este filme beneficia-se sobremaneira das vantagens de sua transição lingüística (ou seja, da continuidade televisiva para a centralização cinematográfica) e de sua abertura psiquiátrica, ostensividade clínica até então evitada no ‘corpus’ do diretor, por mais evidente que ela já fosse demonstrada ou insinuada em obras como “Vincent” (1982) e o já citado “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”, com o qual interage diretamente, não apenas através de diálogos que destacam as (des)vantagens de ser “um peixe grande num lago pequeno” como também graças às situações que justificam um embate entre as noções confluentes de realismo e sobrenaturalidade. Em outras palavras: além de ser o melhor filme recente de Tim Burton, ele surpreende deveras por sua sinceridade autoral e pela assunção terapêutica.

O personagem principal do filme, Barnabas Collins (interpretado por Johnny Depp, em sua oitava colaboração com o diretor) acorda transformado em vampiro depois de permanecer enterrado por cento e noventa e seis anos, em razão de uma maldição lançada pela bruxa Angelique Bouchard (interpretada pela francesa Eva Green), que alega estar apaixonada por ele. Barnabas, entretanto, queda-se enamorado pela falecida Josette, que, anos depois, reencarna na babá da família Collins, Victoria (Bella Heathcote). Depois de se alimentar do sangue de alguns empregados que o desenterram por acaso, Barnabas tenta se readaptar à sua família, outrora economicamente próspera, mas agora falida e considera pária pela cidade de Collinwood, que ajudou a fundar. Daí para a frente, o roteiro (escrito por Seth Grahame-Smith, a partir de um argumento adaptado por ele e John August) se perde entre as piadas envolvendo as dificuldades de Barnabas para esconder ou adaptar a sua condição vampiresca em relação aos demais membros de sua família, o relacionamento estranho com a psiquiatra Julia Hoffman (Helena Bonham Carter), os instantes românticos com Victoria e os embates de sexo e ódio com Angelique.

Se a primeira situação rende os mais engraçados momentos do filme, graças à excelente direção de arte e à esplêndida fotografia de Bruno Delbonnel, as outras três desencadeiam elementos que parecem um tanto desarticulados na trama, mas que deixam extravasar problemas pessoais e traços recorrentes da carreira do diretor. No que tange ao relacionamento com a Dra. Hoffman, personagem estranhamente inserida no seio da família Collins, Barnabas ouve um veredicto profissional (“enxergar fantasmas é um modo de enfrentar os transtornos psíquicos de outras épocas da vida”), que deslinda tanto as obsessões temáticas burtonianas quanto os traços de caráter que farão o vampiro se interessar pela meiga Victoria, afligida desde a infância por visões paramediúnicas e internada pela família numa instituição psiquiátrica, onde foi submetida a sessões de eletrochoque. A decisão idealizada por Barnabas de intentar uma transfusão de sangue, a fim de demonstrar que “se um ser humano pode ser transformado num monstro, um monstro também pode ser transformado num ser humano” explica o porquê de ele prestar tanta atenção aos conselhos da desdenhosa adolescente Carolyn (Chloë Grace Moretz) sobre paquera, ao som de uma elogiada canção passional do Black Sabbath, o que justifica a inspiradíssima seqüência em que o roqueiro Alice Cooper aparece representando a si mesmo numa festa, cuja canção executada (“Ballad of Dwight Fry”) tem como estopim literal justamente a ausência paterna [“Mommy where's daddy?/ He's been gone for so long/ Do you think he'll ever come home?”] e serve de trilha sonora para o primeiro beijo entre Victoria e Barnabas. A candura deste beijo nos conduz, por inversão, à confusa e renitente atração sexual exercida por Angelique na (pós-)vida do hematófago. Não obstante insistir que a odeia, Barnabas concentra a sua inimizade numa relação comercial (ambos são mercadores em larga escala de peixes) e eventualmente se permitem fazer sexo, numa cena espalhafatosamente cômica (muito mal-sucedida, por sinal) ao som de uma chavonada canção de Barry White (“You’re the First, The Last, My Everything”), que trai a cativante atmosfera sombria através da qual o filme é conduzido.

 Tecnicamente irrepreensível (inclusive no que diz respeito à recorrente contribuição musical de Danny Elfman e à deslocada canção “Go All the Way”, interpretada do grupo The Killers), contando com parte do elenco em estado de graça (vide as participações de Christopher Lee, muso do diretor, como um velho pescador hipnotizado pelo vampiro, e de Michelle Pfeiffer, deslumbrante como a matriarca Elizabeth Collins Stoddard) e agraciado por um senso de humor magistral e minucioso (vide a hilária seqüência em que Barnabas lamenta a sua existência solitária enquanto se deita sobre um teclado mecânico, que, de repente, começa a funcionar e executar uma canção brega e chistosa), “Sombras da Noite” corrige tudo o que parecia duplamente problemático em “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”, tanto em nível diegético quanto discursivo, resolvendo o conflito – muito bem metonimizado na descrição empolgada de Barnabas acerca do estilo gótico de sua residência como sendo “uma perfeita combinação entre a elegância européia e o empreendedorismo norte-americano” – anteriormente manifesto entre o enredo realista e as irrupções fantásticas através da concomitância entre ambos, como também se permite emular diversos filmes anteriores, em especial, “Os Fantasmas se Divertem” (1988), com o qual se filia tanto no que diz respeito à convivência de pessoas de duas épocas distintas vivendo numa mesma casa, no que tange à cena em que uma figura talhada no corrimão da escada se torna uma assustadora entidade ofidioforme, e na exortação à convivência possível entre pessoas consideradas diferentes dos demais mas aceitas em sua singularidade por aqueles que os amam, no caso, a família.

Numa interpretação mais geral, este filme e as demais produções recentes equivocadas de Tim Burton são centrados na diferenciação entre amor e idéia fixa (afinal de contas, “uma maldição despejada em alguém não revela ódio, mas sim devoção”), que, fora das telas, corresponde à figura da forçosamente peculiar Helena Bonham Carter, infelizmente não tão naturalmente bizarra quanto o acachapante universo do diretor, e que, no interior do filme, é tanto simbolicamente assassinada quanto ressuscitada no derradeiro momento, na cena prévia aos créditos finais que homenageia os clímaxes interrompidos ao final de cada episódio da telessérie criada e produzida por Dan Curtis, homenageado com carinho pelo diretor nesta produção tão imanentemente qualitativa quanto sintomática acerca das crises psicológicas compartilhadas pelo diretor ao longo de cada um de seus filmes.

Wesley Pereira de Castro.

sábado, 16 de junho de 2012

COMO BEM DISSE O POETA, “MORRE O HOMEM, FICA A FAMA!”: HOMENAGEM ECONÔMICO-POLÍTICA A CARLOS REICHENBACH

Na tarde do dia 14 de junho de 2012, quinta-feira em que completou 67 anos de idade, o cineasta gaúcho Carlos Reichenbach, conhecido por sua notável contribuição autoral aos filmes do chamado Cinema Marginal e da Boca do Lixo paulistana, faleceu em decorrência de uma parada cardíaca. No dia seguinte, uma nota de pesar atribuída à Ministra da Cultura Ana de Hollanda, desencadeou reações de protesto por parte dos amigos e amigos do cineasta, do sentido de que a mesma referia-se às fases áureas da carreira do diretor autoral como deméritos, incorrendo inclusive num erro gramatical vergonhoso, ao destacar que Carlos Reichenbach fora “taxado” de cineasta marginal e associado à ainda muito incompreendida Boca do Lixo, mas, “no entanto, apaixonado pelo cinema em si, foi autor de obras-primas como ‘Anjos do Arrabalde’ e ‘Alma Corsária’, entre outras” . A promulgação ministerial de tais preconceitos estéticos torna obrigatória a defesa deste artista incansável da cultura brasileira, responsável por verdadeiras proezas no que tange ao financiamento de seus filmes, depois que o governo de Fernando Collor de Mello extinguiu a Embrafilme, em 16 de março de 1990, através da malfadada Medida Provisória nº 151.

As agruras e peripécias do cineasta, ao lado de sua fiel colaboradora, a produtora Sara Silveira, com quem fundou a Dezenove Som e Imagens, são, em mais de um sentido, assuntos que interessam aos pesquisadores em Economia Política da Comunicação e da Cultura que se preocupam com o desenvolvimento do cinema brasileiro. Politicamente influenciado pelo pensamento marxista – e, mais precisamente pelo momento em que “o tema do desejo se confunde com a questão política ” – Carlos Reichenbach, para além da assumida recorrência autobiográfica de seus roteiros, praticava em cada um de seus filmes um tipo de ativismo político que, coadunado com o Cinema Marginal, a fase autoral que sucedeu imediatamente o Cinema Novo, “lidava com a dúvida, não via saída nenhuma, o desfecho era sempre uma estrada vazia ”.

 Responsável por “Alma Corsária” (1993), um dos filmes mais premiados da reestruturação do cinema brasileiro na primeira metade da década de 1990, este diretor acreditava que a retomada do mercado só é possível a partir de parcerias estatais, o que é confirmado por sua produtora Sara Silveira, que acrescenta que “o Estado é obrigado a dar dinheiro para a cultura, (...) porque o cinema brasileiro não tem condição de se autogerir, ou seja de fazer filme, ter bilheteria, (...) o dinheiro voltar. Isso se chama indústria. No cinema brasileiro não existe indústria. Existe ainda um cinema artesanal ”. Carlos Reichenbach, entretanto, lidava muito bem com as soluções “armengadas”, em razão de ter se filiado, desde a sua estréia, ainda na Escola Superior de Cinema São Luís, em São Paulo, a um manifesto que promulga a necessidade de realizar filmes péssimos, para, a partir daí, chegar ao ótimo, a um cinema instintivo e formado pela vida. Não obstante ter sido beneficiado pela Lei do Audiovisual – datada de 1993 e voltada para a produção considerada independente, ou seja, não vinculada às grandes cadeias televisivas do Brasil – o cineasta possuía críticas extensas à mesma, no sentido de que ela suscitava o aparecimento de profissionais oportunistas que, apesar de não possuírem conhecimentos ou interesses estritamente cinematográficos, mas sim predominantemente comerciais, conseguiam financiar obras menos preocupadas com o incremento discursivo-estético do que com a rentabilidade decorrente da dedução do imposto de renda dos investimentos dos contribuintes sobre elas.

Nas palavras do próprio diretor, a Lei do Audiovisual foi desenvolvida com o intuito de estimular a dramaturgia nacional a partir da cumplicidade com a iniciativa privada, “para oxigenar a produção que estava agonizante e não para privilegiar o filme institucional mercenário, sem identidade, assinatura e vergonha na cara ”. Definitivamente, Carlos Reichenbach não consentia com o entreguismo generalizado que abunda nas produções realizadas sob a égide da Globo Filmes.

 Por fim, não há como laurear adequadamente a memória deste genial cineasta sem mencionar analiticamente alguns de seus filmes: mesmo que se tenha visto apenas um punhado de suas produções, as mesmas são bastante elucidativas de um discurso muito coerente e mnemonicamente apaixonado, que repercute tanto o embate autocrítico entre sexualidade e política [conforme visto na obra-prima “O Império do Desejo (1981), em que um ‘hippie’ tupiniquim questiona “onde termina o libertário e onde começa o promíscuo”] quanto as menções diretas à ditadura militar [vide “Alma Corsária” (1993) e “Dois Córregos” (1999)], passando pela surpreendente ampliação referencial no curta-metragem documental/experimental “Equilíbrio & Graça” (2002) e pelas rigorosas pesquisas levadas a cabo na composição das personagens proletárias de “Garotas do ABC” (2003) e “Falsa Loura” (2007).

Se, por um lado, Carlos Reichenbach demonstra com louvor o provérbio cantado por Ataulfo Alves que consta no título deste artigo, por outro, ele corresponde a um modelo exemplar do tipo de promulgação dialética que defende que “a crítica se nutre da Arte e a Arte da vida” , a partir da associação que um dos cineastas mais admirados pelo próprio diretor faz a partir de sua alegação de que “o Polytyko é, antes de tudo, um intelectual” . Carlos Reichenbach era – e mesmo morto, continua sendo – tudo isso: artista, político, intelectual, marginal e gênio!

Wesley Pereira de Castro.