domingo, 30 de setembro de 2012

INTOCÁVEIS ('Intouchables') França, 2011. Direção: Olivier Nakache & Eric Toledano.

“Boudu Salvo das Águas” (1932, de Jean Renoir) é, sem dúvidas, um paradigma internacional acerca das possibilidades cômicas e analíticas sobre as divergências de classes sociais num contexto contemporâneo. Regravado em 1986 por Paul Mazursky (sob o título “Um Vagabundo na Alta Roda”), a trama deste filme – na verdade, baseada numa peça escrita em 1919 por René Fauchois – sofreu uma drástica atualização, transmutando a criticidade quase anarquista da obra original num humorismo formulaico, que tende muito mais a reiterar as diferenças de classe do que a questioná-las, sob a desculpa falaciosa da tolerância advinda da convivência esporádica entre elas. Esta tendência é bastante recorrente no cinema hollywoodiano, engendrando obras tão diversas quanto “Trocando as Bolas” (1983, de John Landis), “Um Salto Para a Felicidade” (1987, de Garry Marshall) e “Três Trapalhões da Pesada” (1987, de Michael Schultz).

Apesar de ter sido realizado no mesmo país em que René Fauchois nasceu, “Intocáveis” é um filme que, lamentavelmente, está filiado de maneira oportunista ao pior dos projetos tramáticos até então citados, visto que são diversos os pontos de contato formal entre o seu enredo e a sinopse do horrível filme protagonizado por The Fat Boys. O fato de “Intocáveis” ter sido baseado numa história real, entretanto, nos leva a repensar a negatividade desta filiação...

Centrado na amizade desenvolvida entre um tetraplégico branco e milionário (maravilhosamente interpretado por François Cluzet) e um senegalês desbocado e pobre (vivido por Omar Sy, que dota o seu personagem de um humor que não raro beira a vulgaridade), o roteiro escrito pelos próprios diretores é muitíssimo mais efetivo em sua metade final que no desfile de lugares-comuns apresentado no início, tão previsível quanto as produções hollywoodianas assimiladas nos acostumaram a esperar que fosse. Se o contraste entre os hábitos refinados e burguesamente afetados do milionário Philippe e o cotidiano caótico do até então desempregado Driss não chama a atenção pela originalidade, há de se notar que as piadas envolvendo o que se convencionou chamar de “politicamente incorreto” são realmente inspiradas, como o instante em que Driss testa a insensibilidade dos nervos da perna paralisada de seu patrão derramando água fervente sobre ela, o chiste envolvendo o Teleton (maratona televisiva destinada a angariar fundos monetários para pessoas que são afligidas por deficiências físicas e/ou psicológicas) ou quando ele propõe que, a fim de que o tetraplégico eduque melhor a sua filha adolescente, ele a atropele com a sua cadeira de rodas.

Além disso, o conteúdo de tais piadas é essencial para que entendamos o que Philippe quis dizer quando alega que acha positivo que Driss não sinta compaixão dele enquanto assume as funções de seu empregado pessoal. Entretanto, as diversas situações chavonadas envolvendo a profusão libidinosa de Driss, que trata de forma machista quase todas as mulheres que atravessam o seu caminho, ou as blagues relativas à fetichização da arte erudita pecam pela superficialidade de sua elaboração, ainda que pareçam ocasionar gargalhadas da platéia, conforme detectado na cena em que Driss acha absurdamente ridículo assistir de forma respeitosa a um cantor de ópera fantasiado de árvore enquanto canta em alemão.

 A exposição recorrente dos problemas de gueto que circundam o cotidiano pobre da família de Driss, por sua vez, resvalam numa pusilânime adesão ideológica a um “estado de coisas” capitalista mantido pela suposta incapacidade dos moradores de áreas periféricas de reagirem a problemas como o tráfico voluntário de drogas, a procriação desmesurada e a inevitabilidade subempregatícia. O modo como a família e equipe de Philippe aceitam de bom grado algumas atitudes coercitivas de Driss – como interceptar com violência um motorista que estacionou numa área proibida ou intimidar agressivamente um ex-namorado da filha de seu contratador para que ele se desculpe por tê-la xingado de puta – convalida estruturalmente as más condições de vida que Driss insistia em levar, inclusive acostumando-se a depender da previdência estatal para receber dinheiro sem trabalhar. Tudo isso, aliado à subsunção ostensiva do filme aos mais evidentes clichês do gênero, faz com que “Intocáveis” seja muito perigoso socialmente, para além das boas intenções filantrópicas percebidas em seus créditos finais, que anunciam que 5% de toda a renda do filme serão destinados a instituições que cuidam de pacientes tetraplégicos.

Descontados todos os ônus políticos do filme – que, definitivamente, não são poucos – há que se concordar que “Intocáveis” possui um bom ritmo tramático (o que, mais uma vez, é explicado por sua extrema similaridade a diversos produtos congêneres hollywoodianos), conta com ótimas interpretações do elenco secundário [Anne Le Ny (Yvonne) e Audrey Fleurot (Magalie), principalmente], é marcado por uma bela trilha sonora incidental de Ludovico Einaudi (contrabalançada pelo excesso de canções estadunidenses reverenciadas por Driss) e beneficia-se adequadamente de uma perspectiva compartilhada entre os dois protagonistas, que vai além da mera comparação entre cotidianos no quartel final, quando o tema da amizade sobrepõe-se ao das diferenças cômicas de classe.

A partir de então, as brincadeiras com o bigode de Philippe, a percepção funcional da educação artística de Driss e o enfrentamento conjunto de seus problemas de relacionamento e de sociabilidade tornam verossímil e muito emocionante a aparição dos homens reais que inspiraram a trama do filme, Philippe Pozzo di Borgo e Yamin Abdel Sellou, cujos destinos verídicos de companheirismo duradouro são anunciados antes dos créditos finais. Graças a esta imagem documental muito bem assimilada à trama reconstitutiva, “Intocáveis” atenua o desconforto preconceituoso que não é convenientemente disfarçado pela tendência sumamente espirituosa do enredo. É um filme para ser visto e analisado com muito zelo sociológico, pois tende a ser tão perigoso e traiçoeiro quanto a tradição desgastada de humor à qual se coaduna...

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

TED ('Ted') EUA, 2012. Direção: Seth MacFarlane.

Numa passagem emocionante do livro “Ilusões Perdidas”, publicado por Honoré de Balzac em 1843, o protagonista Lucien de Rubempré ouve de alguém preocupado com o seu bem-estar que “a amizade perdoa os erros, os gestos irrefletidos da paixão; mas deve ser implacável com a decisão firme de mercadejar a alma, o intelecto e o pensamento”. Apesar de pertencer a uma tradição dramático-histórica radicalmente distinta do estilo cômico a que este filme está associado, tal citação é pertinente para se entender o quão oportuna é a exortação do relacionamento entre o protagonista John Bennett (Mark Wahlberg) e seu ursinho de pelúcia maconheiro Ted (dublado pelo próprio diretor e roteirista Seth MacFarlane), magicamente tornados “companheiros de trovoadas” desde a infância.

Porém, se no plano moral, o filme parece bem-sucedido em seus objetivos, em seus meandros efetivamente cinematográficos, ele soçobra a passos largos, desdenhando a segunda metade do conselho amistoso utilizado como epígrafe deste texto. Apesar de algumas piadas serem, de fato, violentamente engraçadas em sua forçação de barra irônica, o roteiro do filme é deveras irregular e a direção do filme é opaca, prejudicando sobremaneira o desempenho extensivo das referidas piadas.

Conhecido e bastante elogiado pela concepção do ótimo seriado televisivo animado “Uma Família da Pesada” (em exibição desde 1999), Seth MacFarlane é indubitavelmente meritório enquanto argumentista e dublador, mas, nesta sua primeira experiência em longa-metragem, não dispôs de autoridade suficiente para conduzir os atores, que, apesar de carismáticos, não apresentam bons desempenhos. A composição caricata do personagem vilanesco de Giovanni Ribisi (o afetado Donny), a vacuidade persecutória do insosso personagem de Joel McHale (Rex, o patrão da namorada do protagonista humano) e a graça desperdiçada da personagem de Jessica Barth (a vulgar atendente de supermercado Tami-Lynn) são demonstrações efetivas da insegurança directiva de Seth MacFarlane, também manifesta em relação aos personagens principais, visto que Mila Kunis parece perdida em cena em diversos momentos (vide o exagero nojoso da cena em que ela precisa coletar as fezes de uma prostituta no chão de seu apartamento) e Mark Wahlberg dá a impressão de estar inadequado em seu papel, não obstante a sua caracterização ser bastante correlata à descrição teórica que sua namorada insiste em fazer dele. A única interpretação bem-sucedida em todo o filme, portanto, sem considerar os artistas que aparecem como si mesmos, é justamente a do desbocado ursinho protagonista...

 Muitíssimo bem vivificado pela própria voz de Seth MacFarlane, o ursinho Ted é tão personalisticamente coerente que, para além das convenções do gênero cômico, sua existência bizarra é facilmente assimilada, em termos de verossimilhança cotidiana. O uso deveras oportuno da gravação sonora de “eu te amo” contida em sua programação original enquanto brinquedo numa cena de despedida é boníssima, bem com o senso de humor emocionalmente integrado à amizade sincera que ele apregoa em relação ao seu proprietário desde a infância. Nesse sentido, o apotegma inicial da narração (“não importa o quão especial tu sejas, depois de algum tempo ninguém vai te dar a mínima!”) também ajuda a naturalizar os comportamentos desordeiros de Ted, que, em quase todas as seqüências em que aparece, está ingerindo maconha ou proferindo ironias contra o cristianismo. Toda a seqüência da festa em que Ted fica sob efeito de cocaína e a hilária seqüência da luta com John, em que ele faz questão de utilizar uma Bíblia Sagrada como arma, demonstram que, se o filme confiasse mais na agilidade nonsense de seu protagonista peludo (como ocorre em relação ao bebê psicótico e ao cachorro falante no seriado animado concebido por Seth MacFarlane), ele seria muitíssimo mais divertido e satírico. O quartel final xaroposo e pretensamente aventureiro da produção, entretanto, atraiçoa o que tínhamos visto até então, tornando-o quase tão anódino (no mau sentido do termo) quanto “Garfield – O Filme” (2004, de Peter Hewitt), personagem inclusive mencionado numa comparação mastológica inolvidável!

Analisando o filme em cotejo com as expectativas que ele desencadeou, o mesmo demonstra-se francamente decepcionante e, quiçá, limado em seu poderio sardônico por exigências produtivas, não obstante a quantidade de vezes em que o nome de Seth MacFarlane é repetido entre as referências técnicas. O excesso de piadas com flatulências e a subsunção a um discurso de readequação capitalista que é legitimado pela instância narrativa (Patrick Stewart, muito bom) quando anuncia os destinos dos personagens na seqüência anterior aos créditos finais demonstram pusilanimidade do filme em relação aos trabalhos prévios do roteirista, mas as seqüências protagonizadas pelo canastrão Sam J. Jones [astro de “Flash Gordon” (1980, de Mike Hodges), filme favorito dos personagens] e pela cantora Norah Jones (que também canta o tema principal do filme, “Everybody Needs a Best Friend”), além das menções e da hilária aparição do ator Tom Skerritt, recuperam provisoriamente a verve satírica e hollywoodianamente influente da produção.

“Ted” é um filme inegavelmente engraçado, mas tem como prerrogativa assimiladamente negativa o fato de achar-se muito mais interferente do que realmente é, quando, como bem demonstra o aguardado reatamento do romance entre John Bennett e sua namorada Lori, ele se aproveita de uma forma supostamente inaceita de humor negro para reiterar a ordem social vigente. O virulento ursinho Ted incomoda, perturba, desconcerta, mas, afinal, é somente por causa dele que tudo continua como antes: não é suficientemente evidente o que isto quer nos dizer enquanto discurso? 

Wesley Pereira de Castro.