domingo, 30 de junho de 2013

OS AMANTES PASSAGEIROS ('Los Amantes Pasajeros') Espanha, 2013. Direção: Pedro Almodóvar.

A demarcação publicitária deste filme enquanto comédia fugaz fez com que muitos dos admiradores contumazes do cineasta Pedro Almodóvar encarassem previamente o mesmo como uma obra menor, como uma produção escapista que ameaçava não ostentar as diversas marcas registradas do genial diretor. De fato, tal pré-julgamento é provido de sentido, visto que este filme é bastante estranho na configuração atual da obra do artista espanhol, que, já tendo se estabelecido como um dos grandes autores cinematográficos da atualidade, realiza um filme que pretende mesclar o refinamento impudico de suas produções recentes com a amoralidade desenfreada de seus primeiros longas-metragens.

O resultado é deveras irregular, mas condizente com o título, pois o adjetivo contido no mesmo – polissêmico em sua utilização, dado que o cenário predominante do filme é o interior de um avião – sintetiza muito bem o efeito que se instala após a sessão, uma tendência ao esquecimento que vai radicalmente contra o que se convencionou esperar de uma obra almodovariana, comumente permeada pela subversão de tabus (principalmente, sexuais) que ainda incomodam bastante a sociedade espanhola – e mundial, como um todo.

 Por mais que a animada seqüência de abertura, musicada por um pasticho da “Für Elise” beethoveniana (interpretada por uma banda de nome Los Destellos), e a presença de vários colaboradores habituais do diretor em pequenos papéis (Antonio Banderas e Penélope Cruz, por exemplo, que aparecem em apenas uma seqüência) dêem a entender que “Os Amantes Passageiros” é uma homenagem ao pendor cômico e histriônico que exalava das obras primevas do cineasta, a quebra (positiva) de ritmo narrativo que se instala quando acompanhamos os dilemas românticos de uma ex-aeromoça (vivida pela belíssima Blanca Suárez) apaixonada por um ator mulherengo (Guillermo Toledo) envolvido com uma pintora com tendências suicidas (Paz Vega) denota a debilidade estrutural do roteiro, particularmente desinteressante quando focado no envolvimento passional que se estabelece entre o matador de aluguel vivido por José María Yazpik e a cafetina sadomasoquista de luxo interpretada por Cecilia Roth (caricata ao extremo).

A atuação de Lola Dueñas, como uma vidente virgem que emula tanto o olhar concomitantemente abobado e mordaz de Carmen Maura nos filmes iniciais do diretor quanto as diatribes femininas que pululam em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), também é afligida por este desinteresse, no sentido de que as situações em que ela se envolve são forçadas e inespontâneas, não obstante as pulsões humorísticas sinceras advindas do momento em que ela segura os pênis de dois homens para prever o futuro ou quando ela, numa crise lúbrica, pensa em utilizar uma lanterna como vibrador improvisado. Tanto os diálogos proferidos pelos três últimos personagens citados quanto a presença em cena de José Luis Torrijo como um banqueiro falido, prestes a ser preso por corrupção, assumem-se como defeitos prolongados deste filme, sem dúvida o menos elaborado de toda a rica produção almodovariana.

 A trinca de atores afetados que vivificam os comissários de bordo é excelente e, por causa deles, as risadas, objetivo central da película, são alcançadas: Javier Cámara destaca-se como o sinceríssimo Joserra, que, além de ter um caso com o piloto bissexual bem interpretado por Antonio de la Torre, envolve-se em diversas confusões por causa de sua inabilidade de mentir; Raúl Arévalo [Ulloa] surge como um contraponto mais cínico, dotado de uma sensualidade dúbia, que desemboca na satisfação felacional com o formoso co-piloto até então heterossexual vivido por Hugo Silva, com quem se entrega a uma demorada transa sob a espuma no desembarque emergencial do final; e Carlos Areces transforma o religioso Fajas num hilário personagem moralista e solitário, repleto de cacoetes femininos e bastante funcional enquanto instância equilibradora das (re)ações determinadas e audaciosas dos outros dois funcionários. Entretanto, a divertida cena em que eles dançam freneticamente ao som de “I’m So Excited” (na versão de The Pointer Sisters) não é tão efusiva quanto se pretendia, e soou tão deslocada quanto o próprio Fajas alega, quando assevera para uma passageira intransigente que eles talvez tenham escolhido mal a canção apresentada enquanto alívio cômico. É uma cena hilária, mas muito aquém do que o próprio Pedro Almodóvar obteve em filmes anteriores, o que é sobremaneira prejudicado pelo abandono, neste filme, da intertextualidade cara ao estilo do diretor, justificada diegeticamente pelo fato de que os passageiros não podem assistir a nenhum filme a bordo por conta do problema técnico que os comissários tentavam manter em sigilo.

 Felizmente, há uma compensação formal nas seqüências em que os personagens falam ao telefone e as vozes de seus interlocutores são reproduzidas num alto-falante, permitindo uma comicidade paradigmática (no que tange à interligação progressiva das subtramas) que tem muito a ver não apenas com o estilo do diretor como com a sua preocupação (antecipada desde a cartela de abertura, que destaca que “este filme é uma fantasia e, por causa disso, não tem nada a ver com eventos reais”) em afastar a comicidade do ‘nonsense’ típico de produções do gênero, visto que, salvo pelos excessos etílico-comportamentais dos tripulantes da aeronave, esta é exibida de um modo que preserva a lisura profissional dos personagens, afinal bastante sérios no desempenho geral de suas funções.

 Tecnicamente, os colaboradores habituais do diretor oferecem ótimos aportes, ainda que destoados do simplismo do enredo: a montagem eficiente de José Salcedo e as variações musicais do compositor Alberto Iglesias são merecedoras de elogios, porém o aspecto mais laudatório deste filme, além das interpretações anteriormente citadas, é a deslumbrante direção fotográfica de José Luis Alcaine, exuberante tanto nos momentos em câmera lenta [quando o telefone celular de uma potencial suicida cai na cesta da bicicleta de uma transeunte ou quando um sensual passageiro de ascendência árabe (Nasser Saleh) é estuprado durante o sono por uma mulher excitada e abre os olhos enquanto ela é penetrada de costas por ele] quanto na providencial utilização excessiva de elementos vermelhos, mesmo quando o cenário praticamente único é permeado pelos tons azulados da empresa aérea retratada no filme (a fictícia Península), sem mencionar o genial enquadramento da tela de celular gotejada de sangue que é segurada por um funcionário desastrado (Coté Soler) quando este publica no Twitter que está justamente a sangrar, depois de ter sofrido um leve acidente.

As piadas envolvendo as pílulas de mescalina que estavam escondidas no ânus de um passageiro recém-casado (Miguel Ángel Silvestre) e a desenvoltura com que se apresentam as ocorrências de homossexualidade são aspectos roteirísticos que confirmam o entusiasmo do pesquisador Denilson Lopes no que diz respeito a uma manifestação afirmativa da experiência ‘gay’, aqui bastante diversa da conotação ‘queer’ que abundava na obra do diretor. Segundo o pesquisador, “o encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas também pode ser uma possibilidade de diálogo e abertura para o mundo, desafio maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado”, o que salvaguarda a condição passageira dos tais encontros no filme, que, no discurso sub-reptício à alegria mostrada no filme, encara a sexualidade com uma destreza bastante peculiar, antenada com a militância homossexual hodierna, subsumida pela lógica do consumo, mas, ainda assim, marcada pela necessidade de discussão dos novos papéis ocupados pelos ‘gays’ na sociedade.

Nesse sentido, o que parece mais prejudicial neste filme é dotado de uma função política minoritária que pode ser hermeneuticamente resgatada em meio à confirmação da decepção estilística antevista pelos empedernidos fãs almodovarianos. Conclui-se que o cineasta não deixou de ser um excelente “autor de cinema” ao resolver privilegiar a diversão em detrimento da reflexão em seu filme menos inspirado, enfim!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

UMA OUTRA TENDÊNCIA DO CINEMA (E/OU DO VÍDEO) SERGIPANO?

Recentemente, a Secretaria do Estado da Cultura do Estado de Sergipe divulgou os nomes dos cinco contemplados por um importante Edital de apoio à produção de curtas-metragens. Dentre os realizadores laureados com o financiamento de R$ 30.000,00 para as suas produções, alguns foram citados num texto publicado no final do ano de 2012, em que supostas tendências estilísticas eram indagadas acerca dos artistas envolvidos, no que tange à consolidação de características comuns à cinematografia sergipana hodierna...

 Na noite de 17 de junho de 2013, o lançamento do livro “Existencialismo e Crítica no Cinema: estudo e teoria sobre a Fenomenologia na base de André Bazin e Merleau-Ponty”, do comunicólogo Mauro Luciano de Araújo, trouxe de volta ao cerne das atenções o questionamento anterior: a exibição de três filmes de ascendência sergipana realizados em 2013, como complemento à palestra do autor do livro, possibilitou um breve debate sobre aquilo que diferenciaria a linguagem estritamente videográfica de alguns filmes das pretensões cinematográficas mais amplas de outros. Cabe aqui uma análise das produções vistas, a fim de continuar a discussão:

 • “A Eleição é uma Festa” (2013, de Fábio Rogério): pondo em prática o que o palestrante chamou de “uma continuidade na pesquisa documental”, com verve coutiniana, este filme registra momentos significativos das campanhas políticas de dois candidatos a vereadores sergipanos, ambos tendo obtido menos de duzentos votos, apesar de afirmarem que seriam agraciados com pelo menos um milhar. Um dos candidatos, apelidado Robin, vestia-se como o super-herói em pauta e defendia um projeto político que conciliava a garantia de seriedade e a devida contrapartida humorística em sua propaganda eleitoral televisiva. Acompanhamo-lo dançando nas ruas da capital sergipana, conversando e abraçando transeuntes e alegando que a faceta hodierna da democracia é problemática por cinta de seu sobejo de liberdade declarativa. O outro, Batman, tem menos tempo em cena, e é comumente mostrado falando ao celular (com a máscara semi-levantada, o que cria um efeito visual interessantíssimo), jogando sinuca com potenciais eleitores e deitado num colchão, enquanto ouve os resultados da apuração eleitoral. Ambos são bastante respeitados, em suas limitações discursivas, pelo realizador, que, brilhantemente, os capta em momentos de encantatória intimidade, engendrando enquadramentos magníficos, inclusive um deles em que Robin dança com familiares, com a câmera localizada próxima ao chão, enquanto um cachorro atravessa a festividade exibida na tela. Tecnicamente, portanto, o filme é indefectível, não atingindo a categoria de obra-prima apenas por conta de uma montagem composta por telas negras que entremeiam bruscamente os dois personagens mostrados, sendo ambos vinculados a coligações partidárias opostas, e por causa de uma tentativa de entrevista interna que expõe exageradamente as contradições do depoimento de Robin, configurando uma postura assimétrica em relação à quadratura muito bem conduzida do restante do curta-metragem. Absolutamente extraordinário e digno de elogios e aplausos demorados mesmo assim. A informação de que o filme está concorrendo em diversos festivais nacionais e internacionais só enche de orgulho a possibilidade de uma vinculação dos méritos deste filme a uma tendência documental sergipana, em relação à qual o próprio diretor Fábio Rogério contribuirá com a realização do projeto do filme “Operação Cajueiro, um Carnaval de Torturas”, contemplado com louvor no Edital mencionado no primeiro parágrafo;

 • “Dream Sequence #3” (2013, de Alessandro Santana): embasado num rico arcabouço filmográfico experimental consumido enquanto referência para o realizador, este filme não foi suficientemente exitoso em sua comunicação com o público. Sendo o desbunde e o sarcasmo estratagemas básicos da produção em Super-8 que ele homenageia, o início promissor deste curta-metragem (em que a apresentação de uma orquestra sinfônica era filmada à distância, a partir de um dado ponto da platéia, logo substituída por algumas imagens hollywoodianas de frenesi feminino) dá vazão a um longo plano-seqüência propositalmente desfocado, em que fios elétricos e captações em movimento na janela de um automóvel são sonorosamente superpostos por uma narração demorada de um hipnólogo com voz similar à de José Mojica Marins, que sugere que o espectador relaxe e durma, numa provocação deveras programada às criticas espectatoriais de que o filme seria soporífero. A posteriori, imagens da cidade de Brasília são mostradas, numa perspectiva crítico-irônica que muito se assemelha a uma produção anterior co-dirigida pelo mesmo realizador, comentada aqui. Não obstante tais similaridades indicarem positivamente uma continuidade discursiva da apreensão cuidadosa das referências marginais de que o diretor se vale (vide a cena em que uma barata agonizante parece estar dançando o Hino Nacional Brasileiro ou a marchinha projetada em disco de vinil arranhado que encerra o curta-metragem), o filme soçobra nos objetivos supostamente identificados pela platéia, os quais foram rechaçados pelo realizador, em resposta a um dos espectadores, quando disse que realizou o filme para si mesmo, como algo que ele sente vontade de ver. Os recursos oníricos e o discurso ostensivamente interrompido do filme, cujo título provocativamente anglofílico, servem então para o deleite pessoal do realizador. Ok, então...;

 • “Paisagens” (2013, de Mauro Luciano): amigo e colega de Alessandro Santana há vários anos, o diretor, que também é o autor do livro cujo lançamento propiciou a exibição de tais filmes, compartilha com o mesmo vários traços estilísticos, os quais, em resposta à pergunta de um dado membro da platéia, mencionada no parágrafo anterior, estariam muito mais vinculados a uma “estética da videoarte, da videoinstalação” que a uma tendência cinematográfica sergipana propriamente dita, o que explica o rótulo de ‘Made in Brazil’ contido no derradeiro crédito do filme, que se serve de imagens filmadas em cidades baianas, em praias sergipanas e até mesmo no Vaticano! Dedicado a uma graciosa mulher, com quem o realizador desenvolve uma relação afetiva, o filme é lancinado por um corte radical em sua duração: na primeira metade, as diversas paisagens marítimas e arbóreas filmadas servem a uma espécie de exaltação natural que corroboram a mitologia da geologia imagética atribuída a um filme do canadense Michael Snow [“A Região Central” (1971)], ainda não visto pelo autor desse texto. A segunda metade do filme, entretanto, que inverte o percurso das grandes navegações européias dos séculos XV e XVI e parte de Abrolhos e Porto Seguro, na Bahia (Estado natal do realizador) para a Europa, encerrando com uma cínica citação do Conde de Lautréamont, contida em “Os Cantos de Maldoror” (1869): “Ó ser humano! Eis-te agora, nu como um verme, diante do meu gládio de diamante! Abandona teu método; passou o tempo de te fingires orgulhoso; lanço sobre ti minha oração, em atitude prosternada. Alguém observa os mínimos movimentos de tua vida criminosa; estás envolvido pelas malhas sutis da tua perspicácia encarniçada”. O que quis o diretor com isso? Talvez não tenha ficado claro, nem tampouco cabe ao realizador explicar (e, por extensão, retirar a magia e o mistério das descobertas dialogísticas proporcionados pela platéia) as nuanças minuciosas de seu discurso, o que, do jeito como foi mostrado, soou presunçoso, “uma idéia fora do lugar” (para utilizar uma provocativa expressão de Roberto Schwarz), algo que, na tela, foi bem ilustrado pela fotografia idílico-clorofilática e pela trilha sonora que emenda Elizeth Cardoso solfejando “Manhã de Carnaval” e uma peça suave de Frédéric Chopin. Muito bonito, claro, mas conteudisticamente duvidoso (ou melhor, propositalmente paradoxal, conhecendo-se a inteligência e o senso de humor do realizador).

 Ao fim, palestra e debate serviram para alimentar ainda mais a interrogação que percorre os diversos artigos sobre a emergência tendenciosa de um certo cinema sergipano, que, para aproveitar a deixa paródica contida nesta expressão, advinda de um célebre e polêmico artigo do então crítico François Truffaut (1932-1984) contra a subestimação de alguns roteiristas de seu país em relação à inteligência política de seu público, se perguntava publicamente: “qual é, então, o valor de um cinema antiburguês feito por burgueses e para burgueses?”. As tentativas autorais de consolidação cinematográfica (e videográfica) no Estado brasileiro cuja capital é Aracaju levam à frente esta interrogação e, eventualmente, oferecem alguns oportunos pontos de exclamação frente à mesma. Que os projetos vindouros completem a trama já iniciada. Por ora, o debate requer mais participantes. Mas os méritos (e deméritos) de alguns pioneiros saltam aos olhos. Cabe a cada classe ou grupo ou segmento ou espectador solitário escolher aqueles que melhor lhes representam...

 Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

DEPOIS DA TERRA ('After Earth') EUA, 2013. Diretor: M. Night Shyamalan.

Apesar de o primeiro filme [“Praying With Anger” (1992), ainda não visto] do diretor indiano radicado nos EUA M. Night Shyamalan ser pouco conhecido, a sensibilidade que ele demonstrou em “Olhos Abertos” (1998) chamou a atenção de parte da crítica, fazendo com que o filme fosse levemente cultuado alguns anos depois. Seu filme seguinte, “O Sexto Sentido” (1999), catapultou-o para a fama, em razão do genial final-surpresa, que escamoteava o simplismo de algumas passagens do entrecho, levando-o inclusive a ser indicado para os prêmios Oscar de Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original.

Daí por diante, cada um de seus filmes passou a ser acompanhado com redobrada atenção: a inusitadíssima abordagem do tema dos super-heróis cotidianos em “Corpo Fechado” (2000) arrebanhou inúmeros fãs; os arroubos sociológicos e religiosos deveras oportunos de “Sinais” (2002) foram recebidos com entusiasmo; e a obra-prima “A Vila” (2004) teve seus méritos reconhecidos por alguns, mas foi acolhido com desconfiança pelos adeptos dos filmes de terror, tamanha a quantidade de inovações exorbitantes que o diretor impingiu, provocativamente, no que parecia ser um exemplar típico do gênero. Após isto, ele se repetiu conceitualmente em “A Dama na Água” (2006) e se mostrou formulaicamente desgastado no interessante mas incompreendido “Fim dos Tempos” (2008), tendo, em seguida, demonstrado uma preocupante falência criativa no horroroso “O Último Mestre do Ar” (2010), deleteriamente infantilizado.

Em virtude desta trajetória tão peculiar, as expectativas depositadas sobre o mais recente lançamento do diretor – sem dúvida, um dos mais autorais surgidos em Hollywood nos últimos anos – eram amplificadas, menos por causa das possibilidades qualitativas do mesmo (o fato de o argumento original ter sido escrito pelo astro Will Smith era bastante duvidoso) que pelo receio de serem confirmadas as suspeitas de que o diretor chafurdara na mediocridade cara a muitos realizadores de arrasa-quarteirões norte-americanos. Felizmente, não foi o que aconteceu: apesar do sobejo de concessões hollywoodianas, M. Night Shyamalan conseguiu trazer à tona um filme surpreendentemente pessoal, irregular em seu conjunto, mas profundamente entretenedor e inventivo.


 Não obstante o filme ser prejudicado pelos arroubos condutivos precipitados da trilha sonora de James Newton Howard (colaborador habitual do diretor, aqui menos inspirado) e pela parca competência do adolescente Jaden Smith, que não faz jus à extrema responsabilidade actancial que ficou a seu cargo, o filme equilibra muito bem as marcas registradas de Alfred Hitchcock e Steven Spielberg, influências confessas do realizador. Do primeiro, o diretor demonstrou ter compreendido proficuamente as intuições teoréticas referentes à condução do olhar, existindo no filme diversas passagens e ângulos inusuais de câmera que confirmam esta compreensão, em especial, da noção de que a identificação primária do espectador é em relação à câmera, e não em relação ao olhar do protagonista do filme. É por esse motivo que, quando se dirige ao filho Kitai, o personagem de Will Smith exige que ele olhe diretamente nos olhos de seu interlocutor. Mais à frente, sempre que ambos os personagens pronunciam algo de forte relevância moral ou pragmática no decorrer do enredo, os seus intérpretes encaram diretamente o espectador, mesmo que este contato ocular seja permitido somente a partir de enquadramentos tecnológicos intradiegéticos.

Além disso, algumas cenas são contrabalançadas por uma perspectiva externa aos dois personagens centrais, destacando-se o momento em que Kitai analisa as condições danosas da nave que acabara de cair numa versão futurista e selvagem do planeta Terra e acompanhamos as suas ações por detrás de uma cortina plástica que abre e se fecha diversas vezes e o instante em que ele é arrastado por algum ser vivo quando está inconsciente por conta do frio atmosférico, para, somente em seguida, descobrirmos que seu salvador fora a ave de rapina que aparentemente o perseguia para matá-lo em represália à destruição do seu ninho. Do segundo diretor influente, M. Night Shyamalan serviu-se da basilar apologia ao conceito de família, porém retrabalhado num viés bastante particular.

 Se, nos filmes shyamalanianos anteriores, as famílias desfeitas e/ou assimétricas eram constantes [pensemos no avô falecido de “Olhos Abertos”, na mãe solteira de “O Sexo Sentido”, na esposa falecida de forma súbita e traumática em “Sinais” ou nos parentes afligidos pela violência urbana em “A Vila”, para ficar em apenas alguns exemplos], em “Depois da Terra”, esta obsessão temática do diretor (e também de seu mentor directivo) é transmutada num dos maiores clichês do cinema estadunidense: a redenção do pai que se afasta de casa por causa de compromissos empregatícios.

Num lance impressionante de genialidade reprodutiva, o diretor bifurca esta ausência em dois meandros: o literal, visto que o general Cypher Raige está comumente viajando pelo espaço para proteger a raça humana que agora habita o planeta Nova Prime; e o simbólico (porém ainda mais literal), quando Cypher deixa de auxiliar o filho quando a comunicação cibernética entre eles é interrompida, em razão de um acidente sofrido por Kitai. Num pronunciamento perceptivo que se presta a mais de um sentido, o personagem quase desfalecido de Will Smith exclama, numa gravação destinada à esposa Faia (Sophie Okonedo) que perdeu o contato com o filho, algo que, tal qual ela reclamara mais de uma vez, fora constatado desde o primeiro encontro familiar mostrado no filme, quando os diálogos entre pai e filho dão-se mais pelo âmbito da autoridade militar que pela afetividade parental propriamente dita.

 Por conta disso, apesar de o roteiro parecer redundante em sua legitimação de um discurso tipicamente recorrente no cinema mais trivial de Hollywood, as intenções demonstradas por M. Night Shyamalan são concernentes a uma exponenciação do que já estava presente em seus filmes anteriores. O mesmo poderia ser dito, aliás, para o ‘flashback’ inserido de forma brilhante em que Senshi, a filha falecida de Cypher (vivida por Zoë Kravitz) insiste para que o pai assopre, à distância e através da tela de um computador, as velas de seu bolo de aniversário, dizendo que, se ele realmente quiser, ele é capaz disso. Novamente trabalhando com signos hitchcockianos, esta cena, para além de sua emulação da felicidade familiar de outrora, serve para situar o espectador na adesão voluntária às convenções do gênero ficção científica, ao qual este filme se enquadra, malgrado incorrer em clímaxes de ação e num sobejo de efeitos especiais que são estranhos à sutileza estilística do diretor, que precisou se submeter aos mesmos para conseguir ter seu filme lançado, visto que os produtores duvidavam do potencial de bilheteria de seus filmes desde o declínio de criatividade insinuado no inventário do primeiro parágrafo. Conforme se percebe nas entrelinhas analíticas deste filme, a inscrição “um filme de M. Night Shyamalan” nos créditos é perfeitamente digna de merecimento e aplausos!

 Por fim, já se tendo destacado os dois maiores problemas estruturais do filme, convém acrescentar que, se atuação de Will Smith não é de todo eficiente, ao menos ele corporifica com firmeza a galhardia de seu personagem. A direção fotográfica de Peter Suschitzky é maravilhosa e estupefaciente, inebriando-nos tanto na exposição das belezas naturais (ou melhor, reconstituídas) do planeta Terra mostrado na tela, onde não há mais humanos, quanto pelo meticuloso atrelamento aos demais membros da equipe para engendrar as soluções ousadas pretendidas pelo diretor em sua condução narrativa diferenciada, a partir de um roteiro que ele escreveu em colaboração com o idealizador de jogos eletrônicos Gary Whitta. Neste, a dialética entre a desobediência requerida enquanto iniciativa sobrevivencial e o rigor disciplinar exigido para quem está afiliado à conduta militar (a qual, no caso de Kitai, é problematizada desde o início, quando ele reprova numa progressão de patente) é bem explorada, abrindo possibilidades hermenêuticas que ultrapassam a previsibilidade funcional deste estratagema enredístico, visto que era óbvio que, nalgum momento, o estouvado Kitai precisaria desafiar as ordens de seu pai se quisesse salvá-lo, não obstante o filme versar justamente sobre o respeito inequívoco prestado às ordens do mesmo, afinal obedecidas quando a voz do pai não mais podia ser ouvida pelo filho.

Por falar em audição, os sentidos básicos do ser humano são evocados explicitamente num aconselhamento de Cypher, que orienta Kitai a prestar mais atenção às condições de sua situação presente, a fim de que, assim, o medo enquanto projeção do futuro seja dirimido (visto que, na lógica do filme, é uma escolha) e ele possa se tornar imune aos ataques da assustadora raça de monstros alienígenas batizada como ursa. Relembrando o quanto “A Vila” e as obras mais famosas do diretor são pontuais na explanação das funções sociais (e governamentais) do medo, tal conselho paterno é dotado de uma significância em muito superior ao mero componente narrativo que visa a designar a formação do caráter íntegro de Kitai, que, numa das últimas cenas, opta por trabalhar ao lado da mãe.

 Lidando habilmente com as exigências hodiernas do mercado cinematográfico, M. Night Shyamalan conseguiu, neste filme subestimado e a principio trivial, contrabandear com habilidade os seus traços marcantes de personalidade artística, provando que ainda é um dos mais geniais diretores em atividade nos Estados Unidos da América. Por isso, os ostensivos defeitos do filme são quase irrelevantes frente à necessidade do diretor em ser fiel àquilo em que acredita e deseja expressar através de seus filmes...

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

FAROESTE CABOCLO (Brasil, 2013). Direção: René Sampaio.

Na história da Matemática, o conceito de zero aparece em pelo menos três situações distintas: num sentido mais geral, diz respeito à representação numérica cardinal da ausência de elementos em um conjunto; na geometria, corresponde à intersecção dos eixos das abscissas e das ordenadas, indicando o ponto central numa reta, em que os números se tornam positivos ou negativos quando se distanciam deste ponto, que é, portanto, a origem do sistema cartesiano; enquanto sinônimo de raiz numa equação polinomial, equivale a todo número complexo cuja substituição algébrica obtenha zero como resposta, o que explica a noção de “zero da função”.

 Descontadas as simplificações intentadas na abordagem destas definições, zero é um conceito matemático que se aplica muito bem numa análise extensiva dos méritos cinematográficos de “Faroeste Caboclo”: no sentido cardinal, diz respeito à nota que ele merece, caso a sua avaliação qualitativa precise ser numerada; enquanto origem de um sistema, representa a completa nulidade vinculada ao filme em seu aspecto narrativo, tamanha a quantidade de artifícios contraproducentes que negam a validade emocional de qualquer componente elementar do mesmo; e, enquanto raiz de uma determinada função, assume um infinitésimo de complexidade, visto que se coaduna à higiene demográfica genocida, já que instala defensivamente uma sanha honorífico-assassina que, do modo como foi apresentada e apregoada, não se encontra na extraordinária canção que deu origem ao entrecho.

 Inicialmente roteirizado por Paulo Lins, mas finalizado por Marcos Bernstein e Victor Atherino, este filme gaba-se de converter em imagens e sons a saga narrada pela banda Legião Urbana na canção homônima que corresponde à sétima faixa do disco “Que País É Este”, lançado em 1987. Tendo pouco mais de nove minutos de duração, a canção é uma brilhante descrição das desventuras de um anti-herói nordestino e negro, que, após uma adolescência de delitos e contingências, torna-se um traficante de drogas na cidade de Brasília e, em razão dos desencontros típicos da vida criminal, vê-se traído, aprisionado e, por fim, morto num duelo trágico, onde o seu opositor e a mulher que ama também são chacinados.

No filme, tudo que se mostrava como reivindicatório ou marginal (no sentido político do termo) na canção é desfigurado numa historieta pífia, repleta de comiseração espúria e circundada desde o início por uma lógica interna deletéria que consolida o acerto armado de contas como legítimo. Longe de ser exigida rigorosa fidelidade à canção que inspirou o enredo (liberdades poético-narrativas são esperadas até mesmo em biografias de personalidades reais, que dirá numa translação musical), o que mais incomoda negativamente neste roteiro é a radical inversão de valores morais, relacionais e motivacionais do personagem muitíssimo bem-construído pelo compositor Renato Russo. Além de fatos essenciais da arregimentação de caráter do protagonista serem suprimidos ou modificados, a inverosimilhança actancial é a tônica onipresente no filme, culpa menos do elenco que tenta ser eficiente apesar de tudo que da péssima direção, da montagem execrável e dos demais componentes técnicos que se perdem na obsessão por parecerem demasiadamente estilosos.

 Se Fabrício Boliveira e Ísis Valverde não são oficialmente responsáveis pela vacuidade de suas interpretações – visto que eles até que tentam se entregar aos seus personagens, mas os mesmos são absolutamente inconsistentes – Marcos Paulo, Felipe Abib, Antônio Calloni e César Troncoso estão absolutamente caricaturais como o pai de Maria Lúcia, o bandido Jeremias, o policial corrupto Marco Aurélio e o traficante peruano Pablo, respectivamente. Por mais desprovidos de algo parecido com alma fílmica que os personagens sejam, a situação fica ainda mais agravante diante da edição frenética (no pior sentido do termo) e desnorteadora de Márcio Hashimoto, que, no afã por imitar os assistentes dos imitadores de Quentin Tarantino, transforma a conjunção de imagens e sons desta obra numa verdadeira demonstração do que é disritmia, hipertrofiando a mínima duração dos planos e desperdiçando-se em seqüências desprovidas de interesse emocional como as dilaceradas cenas de sexo entre João e Maria Lúcia ou o momento em que esta última ensina o primeiro a dirigir um automóvel.

No que tange ao conluio com a trilha sonora, o resultado só não é exageradamente catastrófico nos instantes em que canções clássicas da referida banda Legião Urbana e da Plebe Rude, também brasiliense, são executadas em festas juvenis, a fim de aproveitar a relevância histórica da efervescência cultural roqueira que estava acontecendo na cidade na transição da década de 1970 para 1980. Porém, não apenas as composições originais de Philippe Seabra (membro da citada Plebe Rude) são ruins em sua emulação insistente dos acordes da canção original, como a introdução de “These Boots Ser Made for Walkin’”, cantada por Nancy Sinatra, na situação em que João de Santo Cristo é mostrado iniciando a sua plantação de maconha é absolutamente inexplicável em termos estruturais, o mesmo quase podendo ser dito sobre “Dancing With Myself”, do Billy Idol, ao menos justificada pela execução diegetizada.

A pretendida diferenciação dos comportamentos de Maria Lúcia e seu pai através das músicas que ambos escutavam (“Ever Fallen in Love?”, do The Buzzcocks, no primeiro caso, e um jazz refinado no segundo) denota um cuidado quase pré-escolar por parte dos responsáveis pelo filme em relação à já mencionada precária construção dos personagens, o que se evidencia também na relação pretendida entre a letra da canção anglofílica que Maria Lúcia ouvia quando o criminoso protagonista invade o seu quarto e a faz se apaixonar por ele ou no modo idiotizado como Jeremias tenta resgatar os sacos de cocaína que João de Santo Cristo estoura na seqüência final.

 Não obstante seu estímulo subdiscursivo à cólera vingativa e as soluções balísticas autojusticeiras, “Faroeste Caboclo” não é sequer exitoso em instigar involuntariamente a revolta em espectadores mais conscientizados ou apaixonados pela integridade reclamante da canção original, de modo que, ao final da sessão, tudo se esvai como os péssimos ‘flashbacks’ que pontuam alguns momentos da narrativa, vergonhosamente infecundos em sua tencionada associação mnemopulsional. A direção de fotografia de Gustavo Hadba parece atuar à revelia do restante do filme, exibindo planos à contraluz ou rigorosamente divididos e focalizados (vide o momento em que João de Santo Cristo e Maria Lúcia são refletidos no capô de um carro ou quando o casal faz sexo ao mesmo tempo em que o pai da moça lê um livro, sendo ambos mostrados em janelas contíguas), mas disfuncionais em sua concatenação formal, tamanha a nocividade da montagem hiperativa ainda não suficientemente denegrida nesse texto.

Definitivamente, “Faroeste Caboclo”, o filme, é uma aplicação abominável da noção dos zeros matemáticos no cinema, aqui correspondentes à nugacidade, à letalidade propagandística e à traição ostensiva de uma verdadeira obra-prima do repertório musical brasileiro. Dizer qualquer coisa a mais seria legar ao filme uma (des)importância que sequer ele merece, erca!

 Wesley Pereira de Castro.