sábado, 30 de agosto de 2014

MAGIA AO LUAR ('Magic in the Moonlight') EUA, 2014. Direção: Woody Allen.

Numa das seqüências-chave deste filme, em que o casal protagonista tergiversa acerca de suas respectivas atividades, o pernóstico Stanley Crawford (Colin Firth) declara que “um mágico jamais deve repetir seus truques, sob pena de ser capturado durante a elaboração dos mesmos”. Tal declaração soa peculiarmente adequada para o cinema de Woody Allen, visto que um dos problemas que os seus detratores mais costumam detectar em suas obras é a repetição de cacoetes cômicos e/ou existencialistas.

Em mais de um sentido, o recente “Magia ao Luar” (2014) itera situações que já despontaram em tramas como “Simplesmente Alice” (1990), “O Escorpião de Jade” (2001), “Scoop – O Grande Furo” (2006), e “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos” (2010), para ficar apenas em títulos que tematizam a magia e o ocultismo de forma ostensiva, mas a abordagem do diretor neste novo filme beira o agradecimento indulgente. Na verdade, mágicos e charlatães são recorrentes na filmografia alleniana, pois eles são o contraponto mais óbvio de rechaço ao ceticismo de muitos de seus personagens em relação ao sentido da vida, geralmente considerada vã tanto pela ausência de crenças religiosas sólidas (salvo pela tradição judaica impositiva que persegue o autor) quanto pela disposição em aceitar o amor como algo mais que “um sentimento irracional positivo”, conforme apregoa Stanley.

Pensando nesta perspectiva, “Magia ao Luar” resolve muito bem as suas limitações tramáticas e oferece-se como um simpaticíssimo filme de época, que, não obstante o forçado (e desnecessário) final feliz, é bastante sintético acerca dos altos e baixos estético-discursivos no envelhecimento saudável e ativo de seu realizador.

Quiçá o aspecto que mais surpreenda neste filme seja a sua impressionante direção de arte: a despeito da aparente rapidez com que ele foi executado, a reconstituição de época é minuciosa, os figurinos são deslumbrantes e a fotografia de Darius Khondji é esplendorosa. Chega a ser alarmante constatar que os cenários são europeus, tamanha a semelhança com típicas manifestações da pequeno-burguesia nova-iorquina da época (década de 1920), que, não por acaso, migrava continuamente para a França, estimulada por alguns de seus principais mentores intelectuais. Entretanto, um dos aspectos menos elaborados deste filme é justamente um dos mais característicos do estilo do diretor: a utilização da trilha sonora. Por mais adequadas que sejam à riqueza esfuziante e boêmia dos personagens, as “canções alegres” de ‘jazz’ que abundam em “Magia ao Luar” soam deslocadas, não necessariamente concatenadas, a ponto de as cenas mais agradáveis e relevantes serem aquelas que prescindem de trilha sonora, principalmente os monólogos (praticamente rodados como planos-seqüência) perpetrados pelo personagem de Colin Firth. O momento em que ele se dispõe a rezar, a fim de que sua tia se recupere após um acidente automobilístico, é tão epifânico quanto brilhantemente racionalista!

Ainda que se possa reclamar de uma estereotipia (alleniana) excessivamente permissiva na composição do inicialmente autoconfiante Stanley – que carrega em seu bojo os tiques físicos e as crises filosóficas facilmente identificáveis nos trabalhos actanciais do diretor – este alter-ego tardio impressiona pela acuidade de suas declarações pessoais (inclusive a mencionada no parágrafo que inicia este texto), não sendo nada casual que a sua obsessão em desmascarar o charlatanismo de Sophie Baker (majestosamente vivificada por Emma Stone) advenha do fato de que ele é precisamente um prestidigitador. Ou seja, ele assume-se como um indivíduo francamente recalcado, que condena justamente aquilo que leva a cabo e que se acha no direito de duvidar ou desacreditar do que não entende por que muitos acreditam piamente em suas elaboradas técnicas de ‘trompe l’oeil’.

 Noutro instante, Sophie comenta que a sua fome aparentemente insaciável é explicada por uma observação de um amigo psicanalista, que lhe disse que a vontade de comer decorre de uma necessidade subconsciente de suplantar a falta de amor, chiste que é explorado à exaustão (e com maestria) pelo diretor, que atinge assim alguns dos momentos mais efetivamente engraçados de seu filme, antes do ponto de virada romântico que se instala quando o casal resolve se proteger da chuva num observatório espacial. Confessando a Sophie que este era um de seus locais preferidos na infância, Stanley afirma que sempre ficara amedrontado diante da formosura estelar, por mais acachapante que ela seja. Sophie insiste para testemunhar este vislumbre galáctico e, encantada, questiona Stanley acerca do porquê de seu temor. Ele responde laconicamente: “por causa de sua extensão”. Quem acompanha a prolífica obra de Woody Allen, sabe o quanto a irrefreável expansão do universo o assombra desde a infância! (risos)

 Para além da quase onipresença de Colin Firth ao longo da narrativa, deve-se elogiar não apenas o arrebatador desempenho de Emma Stone, mas também a coadjuvação mui digna de Eileen Atkins como a apaixonada tia Vanessa, as interessantes aparições de Marcia Gay Harden como a oportunista mãe de Sophie, as imitações neurastênicas levadas a cabo por Simon McBurney (Howard, melhor amigo de Stanley), a simpatia idosa de Jacki Weaver (Grace) e a irritação proposital desencadeada por Hamish Linklater, que interpreta Brice Catledge, o noivo rico de Sophie, compulsivo tocador de ukulele.

 Se, numa primeira impressão, estes personagens tendem a irritar por causa de seus caprichos classistas, logo os mesmos são habilmente justificados pelo roteiro, que se revela uma ode mui benevolente ao amor, que cumpre o que é prometido por seu título singelo. Tecnicamente, o filme apresenta o mesmo apuro reconstitutivo de “Tiros na Broadway” (1994), sendo a já enaltecida direção de arte bastante adequada às intenções enternecedoras do diretor, que entrega um de seus filmes menos ferinos, levando-se em consideração que, não obstante a suma ironia do protagonista, tudo converge para uma reconciliação afetiva incondicional, na qual o amor é “desmascarado” enquanto ilusão, mas, ainda assim, ele é aceito e bem-quisto, complementando a aceitação das frases jubilosas que relembram citações literárias de Charles Dickens (1812-1870).

O sol brilha com intensidade em praticamente todas as seqüências, as árvores são floridas e os personagens lidam bem-humoradamente com os percalços da vida. Será que, tal qual acontece com o protagonista Stanley, Woody Allen também se tornou um otimista?

 Wesley Pereira de Castro.