segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
DO COMEÇO AO FIM (Brasil, 2009). Direção: Aluizio Abranches.
O somatório de falsas polêmicas e expectativas equivocadas que rondou a feitura deste filme fez com que muitos espectadores ignorassem a mediocridade entretenedora disfarçada de estilo modernoso que o diretor Aluizio Abranches aplicou em filmes como “Um Copo de Cólera” (1999) e “As Três Marias” (2002) e cressem que a trama do mesmo se conformasse com o clima de romance proibido sugerido aprioristicamente. Em virtude da disseminação excessiva de matérias, abaixo-assinados, ‘trailers’, protestos, pseudo-elogios não-vistos e anseios por virtuosismo ‘gay’ envolvendo esta obra, cujo roteiro foi escrito pelo próprio diretor, era grande a ansiedade acerca de como o enredo construiria a relação homossexual incestuosa entre os dois filhos abastados de uma médica divorciada e casada com um homem mais novo que, quando se manifesta sarcasticamente sobre o ‘impeachment’ do ex-presidente Fernando Collor, é acusada por seu segundo marido de estar se comportando de uma maneira diferente de como ela se porta no cotidiano. Esta acusação, entretanto, é providencial por dois motivos: primeiro, por que escancara a artificialidade da péssima ‘mise-en-scène’ do cineasta Aluizio Abranches, que conduz o filme como se fosse a sobreposição dos capítulos finais de telenovelas que privilegiam a manipulação dos interesses escapistas do público; segundo, porque faz com que percebamos a personagem de Julia Lemmertz como sendo aquela que carrega o ponto de vista determinante do roteiro, aquela que está presente mesmo quando morre, visto que dissemina suas idiossincrasias classistas na diegese de forma tão eficiente que esta se confunde com a própria narrativa, poluída por uma trilha sonora pavorosa (numa execrável derrocada de André Abujamra enquanto músico contido) e pela gradação de redomas morais sobre o roteiro.
Ou seja, há uma redoma geral de classe, em que os hábitos privilegiados das famílias ricas dos dois irmãos permitem que um deles diga que “a felicidade está associada à não-obrigação de escrever a História”, que é volteada por uma redoma comportamental (justificada pela explicação metafórica inicial de que um dos irmãos demorou para abrir os olhos quando nasceu e assim conheceu o livre-arbítrio) que desencadeia uma redoma sentimental, esta sim positiva em suas pretensões motivacionais, mas infelizmente confundidas pelo mau desenrolar do roteiro e pela insistência do público em adequar o que era sabido do entrecho aos seus afãs conteudísticos. As situações envolvendo os irmãos adultos provam que o filme poderia ser bem melhor do que é, mas perdeu a chance de fazê-lo ao difundir as conjunções entre câmera lenta e abraço familiar mais nojosas do cinema mundial.
Um aspecto interessante neste filme é que, ao contrário do que acontece com produções semelhantes, ele não sucumbe às concessões tradicionais da censura temática e, ao invés disso, chafurda no tradicionalismo ‘per si’, emulando uma estrutura de família pós-nuclear há muito desacreditada. A insuportável interpretação do histriônico Gabriel Kaufmann, que antecipa os temores estapafúrdios e precipitados dos pais dos meninos quanto à sexualização evidente da relação de extrema proximidade corporal entre eles, é o elemento técnico que, somado à trilha sonora, mais destrói os bons intentos do filme, que, de outra forma, seria um poderoso documento audiovisual sobre o isolacionismo voluntário das pessoas que amam outrem num contexto de completo desligamento da realidade. Nesse sentido, a segunda metade do filme merece elogios pela tentativa de naturalizar a inverossimilhança relacional dos personagens, que em nenhum momento são tachados de homossexuais, para ficar num exemplo menos escandaloso de tolerância social frente ao bizarro e contínuo alisamento público dos protagonistas. A cena em que Thomás (Rafael Cardoso, muito bom) é comunicado por seu treinador que terá que viajar até a Rússia para aperfeiçoar seu treinamento para as Olimpíadas é talvez a cena mais esquisita do filme, no sentido de que este treinador não manifesta qualquer surpresa diante das confissões de ciúme proferidas por Francisco (João Gabriel Vasconcellos), esquisitice esta que também se manifesta no súbito e malfadado relacionamento sexual entre Francisco e uma ofegante freqüentadora de boates.
A canastrice de Fábio Assunção enquanto ator, a já citada (e nunca suficiente desprezada) trilha sonora, a direção de fotografia sub-novelesca, as modorrentas situações envolvendo crianças mimadas e a forçação de barra detectada no comentário descrito sobre a situação política do Brasil à era em que os personagens viviam são os defeitos mais evidentes do filme, mas nem mesmo estes obliteram a pujança defensiva da sensual seqüência em que os dois irmãos masturbam-se quando se observam através de uma conversação por computador. Aliás, a narração inicial do personagem de Rafael Cardoso sob os posicionamentos de sua primeira infância, confirmados ‘a posteriori’ quando este alega se lembrar de seu fechamento proposital de olhos aos 6 anos de idade, tem muito a ver com a atitude pensada da mãe do mesmo em não fazer nada para adiantar um ato contrário e explica o porquê de o espectro dela manifestar-se quando os dois banham-se na praia como se fossem um casal longevo (o que, diga de passagem, eles realmente eram).
Por outro lado, não há nenhuma explicação plausível para a coligação factual entre o funeral de Julieta e a primeira comunhão sexual mostrada entre os dois irmãos, que se despem lentamente, um frente ao outro, quando o padrasto viúvo do irmão mais velho elipticamente deixa a casa em que eles vivem. Salvo pelo oportunismo vendável da beleza física dos atores adultos, esta cena beira a militância homoerótica canhestra, que, se incomoda pela má qualidade clicherosa, chama a atenção pelo requinte fetichista desconectado da realidade.
Analisando a conjunção de fracassos que atende pelo título precipitado de “Do Começo ao Fim”, este filme merece defesa crítica por estar sendo julgado pelos defeitos errados e por estar sendo difamado justamente por investir numa amostragem bastante pitoresca do amor escalonado que surge como sintoma voluntariamente a-histórico da era que vem sendo definida como hipermodernidade por alguns teóricos, que, como o filósofo francês Gilles Lipovetsky, apregoam a esquizofrenia advinda das práticas midiáticas que cultuam em igual medida o excesso e a moderação, “um hedonismo que significa que não se precisa renunciar a prazeres do tempo da infância”, em que a aparência da permissividade está associada à fomentação do conservadorismo. Só mesmo isto para explicar que um filme apologético ao incesto seja tão tacanho no que diz respeito aos valores familiares e que dois homens nus beijando-se ao som de canções de Paulinho Moska ou Caetano Veloso pareçam tão exorbitantemente assépticos em sua sexualidade supostamente irrefreada.
O filme é ruim, isto é consenso, mas não é de todo infeliz insistir que, enquanto proposta sub-reptícia de overdose amorosa, o desfecho ambíguo até que é bastante acertado...
Wesley Pereira de Castro.