Num texto em que analisa as implicações ideológicas das paródias brasileiras de clássicos hollywoodianos convertidos em motes para (porno)chanchadas, o pesquisador João Luiz Vieira conclui que, ao assumir um complexo chistoso de inferioridade em relação às superproduções estrangeiras, determinadas obras patenteiam este tipo de filme como sendo “válido, legítimo e autêntico, reconhecendo a eficiência da linguagem de um cinema opressor, [de modo que] o cinema brasileiro, mais uma vez, provoca gargalhadas às suas próprias custas”.
Ao invés de revelar criticamente as estruturas de manipulação espectatorial ou denunciar os mecanismos de uma linguagem cinematográfica que visa à manutenção de práticas de dominação artística, tais filmes consolam-se em imitar pobremente o ilusionismo técnico que deveria ser rechaçado ou, no mínimo, questionado.
Dadas as diferenças contextuais entre os filmes aos quais o autor se refere – produções realizadas nas décadas de 1950 e 1970 – e o subgênero ao qual “Cine Holliúdy” (2012) pertence – algo que alguns críticos contemporâneos apressaram-se em apelidar de “novas chanchadas” – as ressalvas anteriores são igualmente válidas, no sentido de que, em sua pretensão declarada de impor-se contra uma modalidade midiática acachapante (no caso, a televisão), o filme imita justamente a sua linguagem, cometendo, inclusive, a indiscrição de capitular covardemente ao mostrar os personagens repetindo os seus cacoetes espalhafatosos na moldura de um aparelho televisivo durante os créditos finais: ou seja, mais do que “perder a batalha contra a TV” (conforme um letreiro indica), o modelo narrativo de cinema ao qual este filme se vincula reproduz o que de mais rasteiro pode ser identificado nas fórmulas desgastadas deste meio de comunicação de massa. Em seu afã por fazer os espectadores sorrirem, o filme faz com que eles zombem de si mesmos, atolados numa concatenação de chavões popularescos que não oferecem a mínima ameaça ao poder dominante.
Acompanhemos como tal capitulação se estabelece no roteiro: situado historicamente no auge da ditadura militar no Brasil, a década de 1970, “Cine Holliúdy” apresenta antes dos créditos uma cartela que imita os laudos de censura da referida época, indicando que o referido filme possui “cenas de cearensidade explícita”. Segue-se uma breve e bela seqüência de créditos iniciais, em que rolos de película cinematográfica empoeiradas trazem etiquetas contendo a informação de que o enredo é baseado nas memórias do próprio diretor, que dedica o filme a seu pai.
O que poderia redundar num arremedo cômico de filmes nostálgicos e/ou incisivos como “Cinema Paradiso” (1988, de Giuseppe Tornatore) ou “Adeus, Dragon Inn” (2003, de Tsai Ming-Liang) mostra-se como um mal-feito pasticho semi-melodramático, em que a choradeira de Graciosa, a desenxabida esposa do protagonista (vivida por Miriam Freeland), e os desejos de consumo do garotinho Valdisney assumem-se como principais defeitos compositivos, aos quais se somam a vilanização parcial do prefeito corrupto Olegário Elpídio (Roberto Bomtempo) e do garoto esnobe (João Pedro Delgado) que impede que Valdisney assista a um seriado de TV em sua casa.
As suspeitosas inclusões de um suposto comunista perenemente embriagado e de parrudos “agentes da lei” que se mancomunam interesseiramente com o gerente do cinema também se somam neste panorama ideológico entreguista, que culmina no espalhafatoso desfecho onírico, em que Graciosa antevê seu marido sendo entrevistado, em inglês, para um programa televisivo internacional, por conta do lançamento de “O Arrebenta-Pleura”, filme dirigido pelo filho dele e por seu melhor amigo, na rede de cinemas Francisplex. As percepções antecipadas de João Luiz Vieira fazem pleno sentido, portanto, demonstrando o quanto este filme se filia a um projeto que estabelece o seu próprio fracasso discursivo.
Por mais que o interessante protagonista Francisgleydisson (muitíssimo bem interpretado por Edmilson Filho) insista em pronunciar odes à sétima arte, promulgando que “enquanto houver vida, haverá cinema”, o modo desrespeitoso com que ele exibe os seus filmes (desobedecendo a ordem dos rolos, ignorando as exigências internas das obras, narrando à revelia os enredos inventados por ele e atribuídos aos filmes clicherosos ansiados pela platéia) deslegitima as suas declarações apaixonadas, convertendo a sua devoção profissional em mera necessidade aquisitiva. Contra este personagem, além da constituição da referida Graciosa, alinham-se também a péssima montagem de Helgi Thor (execrável tanto no paralelismo entre a chegada da família de Francisgleydisson à cidade de Pacatuba e os anseios cinematográficos dos habitantes locais quanto na simples conjunção arrítmica de seqüências) e a superestimação humorística do dialeto “cearensês”, que não justifica a desnecessária opção por exibir o filme legendado para espectadores brasileiros, perfeitamente capazes de identificar e entender as variações regionais da língua portuguesa, conforme falada no país.
Malgrado os meta-filmes do protagonista serem engraçados em seus excessos de desmantelamento formal (vide o segmento em que pai e filho lutam ‘kung-fu’ com extraterrestres), as lamúrias e situações de convívio familiar que antecedem ou sucedem os mesmos são dispensáveis, seja no momento em que Graciosa convence um guarda de trânsito a não multar o seu marido atrapalhado, nas diversos situações em que ela o repreende por estimular a imaginação fantasiosa de Francisgleydisson Júnior (Joel Gomes, ótimo) ou na sua comemorada habilidade para resolver problemas práticos, como a limpeza de um estabelecimento comercial, a resolução dos trâmites de um aluguel ou até mesmo a escolha da canção favorita de seu esposo, “A Noite Mais Linda do Mundo (A Felicidade)”, composta por Odair José.
Durante quase toda a extensão do filme, há um embate entre cenas escancaradamente chanchadescas (inclusive no que diz respeito à predominância das ‘gags’ isoladas sobre a trama mais geral) e vergonhosas emulações de melodramaticidade rural, como a pobreza do garotinho que sonha em ter uma televisão ou o inconformismo de uma mulher lasciva insatisfeita com o provincianismo de seu namorado deslumbrado. Felizmente, após a inauguração do cinema de Francisgleydisson, o filme toma fôlego e oferece-nos uma hilária constelação de espectadores (estereo)típicos, desde o apostador contumaz até o sujeito que não pára de falar durante a sessão (Haroldo Guimarães, divertidíssimo), sem contar o irritadiço vereador da oposição (Bolachinha) e o cego que insiste em comparecer à exibição do filme e disparar impropérios contra os seus vizinhos (num desempenho espontâneo do cantor Falcão).
As situações ocorridas durante o(s) filme(s) que o projetor exibe são efetivamente engraçadas – correspondendo justamente àquilo que o diretor havia mostrado no curta-metragem [“Cine Holiúdy – O Astista Contra o Caba do Mal” (2004)], a partir do qual este filme se expandiu – não obstante incorrerem na reprodução inquestionada dos preconceitos dos habitantes, que vão de rejeições chulas a tudo o que se assemelha a “baitolagem” (vide a composição do personagem 6 Volts, por Thomaz Aquino) aos estereótipos que integram a platéia barulhenta, como por exemplo uma lésbica masculinizada obcecada por futebol (Karla Karenina), um pastor evangélico charlatão (interpretado pelo próprio Edmilson Filho) e um padre oportunista e mentiroso (Jorge Ritchie).
Por mais elogiável que o filme possa ser enquanto realização independente de um homem que realmente vivenciou aquilo que apresenta no roteiro, no que tange à ênfase subserviente aos ditames popularescos dos exemplares cinematográficos brasileiros contemporâneos, “Cine Holliúdy” pouco difere das produções levadas a cabo pela Globo Filmes. Destarte, mais que perdida, a batalha contra a TV foi abandonada – e, pior, vendida aos derrotados como piada!
Wesley Pereira de Castro.