quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

TATUAGEM (Brasil, 2013). Direção: Hilton Lacerda.

Ter roteirizado alguns dos novos clássicos do cinema brasileiro, como “Baile Perfumado” (1996, de Paulo Caldas & Lírio Ferreira) e “Amarelo Manga” (2002, de Cláudio Assis), tornou Hilton Lacerda uma espécie de pivô sustentacular da bem-sucedida safra pernambucana hodierna, sem dúvida uma das mais autorais dentre as produções lançadas desde a década de 1980. Provando ser capaz de variar estilisticamente [vide a sobriedade amadurecida de “Baixio das Bestas” (2006, de Cláudio Assis), por exemplo], tal roteirista teve uma experiência irregular como realizador no malfadado documentário “Cartola – Música Para os Olhos” (2006, co-dirigido por Lírio Ferreira) e demonstrou sinais de desgaste e/ou cansaço nas tramas de “Árido Movie” (2005, de Lírio Ferreira) e “Febre do Rato” (2011, de Cláudio Assis), que, apesar de seus diversos méritos, são filmes que pecam pela indefinição de foco narrativo, numa prerrogativa tramática que destoa negativamente em relação aos ótimos filmes-painel anteriormente mencionados.

Em “Tatuagem” (2013), primeiro longa-metragem unicamente dirigido por Hilton Lacerda, o desgaste supracitado aparece de forma ainda mais evidente, sendo magnificamente compensado nas situações desencadeadas num palco teatral, mas, infelizmente, prejudicando a cadência narrativa geral, audaciosamente situada numa época conturbada da ditadura militar, o final da década de 1970.

Protagonizado por um Irandhir Santos em interpretação automática – o que não é tão demeritório quanto soa, visto que ele é um excelente e versátil ator – “Tatuagem” tem em seu viés romântico um ponto fraco, visto que, por mais simpático que seja o casal homossexual composto pelo protagonista Clécio e o recruta Arlindo, apelidado Fininha (Jesuíta Barbosa), as suas divergências ideológicas altissonantes são suprimidas pelas contínuas reclamações do primeiro em relação ao comportamento supostamente birrento do travesti Paulete (Rodrigo Garcia, na melhor e mais arrebatadora incorporação actancial do filme), o que traz à tona algumas irritantes contradições personalísticas do reclamante.

Ou seja: por mais libertário que Clécio se pretenda, o modo como ele se demonstra ciumento após a primeira escapadela orgiática de Fininha evidencia que ele só apregoa o deboche quando está no palco, o que se confirma nas reiteradas imprecações contra o propalado traficante de drogas com quem Paulete se envolve, ignorando oportunamente as conseqüências das obrigações de Arlindo em relação ao Serviço Militar. O mesmo pode ser dito acerca de suas asseverações sobre a sociabilização do filho pré-adolescente Tuca (Deyvid Queiroz de Morais), sendo ele muito mais iracundo que a mãe do mesmo, Deusa (interpretada dignamente por Sylvia Prado). Aliás, por falar neste garoto, ele protagoniza uma das cenas mais desprovidas de funcionalidade (no que tange à pretendida organicidade discursiva do filme), quando o menino, após ser convidado a subir na garupa de uma caminhonete, tem seu rosto focalizado em ‘close-up’, numa espécie de êxtase eólico...

 As situações desencadeadas no quartel – incluindo o beijo agressivo que Fininha troca com um colega recruta (Ariclenes Barroso) – e o modo um tanto precipitado com que o diretor apresenta situações repressivas, como a censura contra o espetáculo do grupo Chão de Estrelas e a invasão derradeira da casa de eventos (em que o amante militar interdito é mostrado mais uma vez, em destaque) são mais alguns dos maus momentos do filme, que não deve ser recriminado pela reconstituição de época, afinal exitosa. Por outro lado, os ainda pouco elogiados números teatrais merecem ser novamente aplaudidos, visto que eles são esfuziantes, tanto nas repetidas execuções da excepcional “Polka do Cu” (ponto alto da magnífica trilha sonora de DJ Dolores) quanto na apaixonada interpretação de “Esse Cara” (canção composta por Chico Buarque e Caetano Veloso) que antecipa a declaração apaixonada de Arlindo em relação a Clécio.

Pena que o envolvimento afetivo entre os dois personagens soe por demais afoito, incondizente com os conflitos psicológicos/morais que Fininha enfrentava, insuficientemente justificados na patética cena em que a sua tia cega acusa-o de ser descendente de comunistas quando ele é tido como ateu ao declarar que não acredita na noção de pecado ou quando ele confessa que tinha um envolvimento sexual com o sargento que lhe lotara como funcionário do consultório odontológico no quartel. Por mais envolvente que seja a entrega de Jesuíta Barbosa ao seu papel, a confecção do mesmo não faz jus à sua graciosidade, resgatada no desfecho dialogístico do filme, quando o seu título revela-se brilhante: ao invés de ser apenas uma declaração de amor cravada na carne, a tatuagem que Fininha dedica a Clécio transforma-se num estigma que o impede de conseguir emprego, o que pode ser estendido para todos os integrantes da trupe Chão de Estrelas, que tatuam na alma a devoção pelo teatro e pela contestação dos valores repressivos.

Comparando especificamente este filme com um roteiro anterior de Hilton Lacerda, o já mencionado “Febre do Rato”, percebe-se alguns problemas recorrentes, principalmente no que diz respeito à dificuldade em tornar crível a recepção excessivamente empolgada do público frente aos rompantes poéticos dos personagens, o que se torna mais gritante nas aparições exacerbadas do artista Joubert (Sílvio Restiffe), responsável pelo pretensioso metafilme “Ficção e Filosofia”, exibido nostalgicamente após a dissolução do grupo.

Ao contrário de uma solução tão esquemática para validar as pulsões licenciosas do grupo, bastava reconstituir a leveza do excelente momento em que Clécio e Paulete conversam na praia, quando este segundo recusa-se, por nojo, a ingerir uma sobremesa gelada improvisada, antes de flertar com dois musculosos desportistas, que reagem positivamente aos desejos sexuais da dupla de amigos. Aliás, nesta mesma seqüência já se podia perceber as limitações “democráticas” de Clécio, quando, num diálogo em que explica os significados das palavras epifania e práxis, o líder da trupe define esta última como sendo “foder, ao invés de apenas bater punheta”.

Noutras palavras: malgrado ser artisticamente hipnotizante (vide a maravilhosa direção fotográfica de Ivo Lopes Araújo), os transes revoltosos em “Tatuagem” são regulados pelos interesses de um líder que confunde as próprias insaciações com desígnios libertários nacionais. Não se nega que haja bastantes intersecções neste sentido, mas louvar o cu apenas porque “todo mundo tem um” é enviesar o discurso combativo, quando o que está predominantemente em voga é a necessidade de extravasar...

Wesley Pereira de Castro.