domingo, 8 de novembro de 2020

MEMÓRIAS DO MEU CORPO (2018, de Garin Nugroho)


 

Inspirado nas lembranças do coreógrafo Rianto, este filme possui o aspecto de superprodução indonésia. Como tal, incorre na pudicícia daquilo que é excessivamente comercializado, tornando apenas indicial algo que é latejante: apesar de o biografado ser um extraordinário dançarino, são poucas as cenas de dança; não obstante a palavra “corpo” substituir os pronomes pessoais nos diálogos, a nudez é retratada de maneira temerosa. A sexualidade é quase tântrica, de modo que, entre as promessas do início e a canção executada no desfecho, há muita supressão. Esse é um dos temas do filme!




No afã por demonstrar o cabedal de traumas que maculam um corpo ao longo da existência humana, o roteiro serve-se da metáfora recorrente do buraco com brilhantismo, seja enquanto receptáculo da vida (no que tange à contemplação induzida de uma vagina, ainda na infância), seja enquanto externação de um dom (a capacidade de antever quando uma galinha porá ovos, a partir da inserção dos dedos na cloaca do animal), passando pelas diversas feridas que Juno sofre, voluntariamente ou não, por causa das agulhas que manuseia…




Os instantes em que o verdadeiro Rianto comenta os fatos são ótimos em sua pujança cênica, e os dois intérpretes de seu alter-ego Juno são magistrais, mas há algo de inconvincente ou reiterativo na assimetria devocional (e platônica) ao boxeador por quem ele se apaixona. Ao final, o corpo é a única casa, conforme afirma o dançarino. E ele pode levar-nos a qualquer lugar. Sobressai-se, portanto, a beleza do percurso.



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

UM ASSUNTO MEIO DELICADO (2016, de Marcelo Ikeda).


     À página 135 do livro "Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil", organizado por Paulo Henrique Silva, aparece a seguinte afirmação: "como realizador, [Marcelo] Ikeda tem uma produção expressiva". Segue-se uma lista de realizações, onde não consta o filme resenhado nestas linhas. Apesar de publicado em 2019, o texto de Ailton Monteiro e Diego Benevides sobre "Crítica de Cinema no Ceará: a apreciação como prática coletiva" obliterou intencionalmente este curta-metragem realizado em 2016. E não foi por desatenção. Há muitos aspectos na difusão deste filme em particular que exigiram a sua retração exibitória. Quais seriam estes? Talvez o próprio título explique... 



    Nos créditos finais, há uma pista valiosa: em meio aos agradecimentos da produção, uma advertência, "nenhum animal irracional foi maltratado durante as filmagens". O embate entre aluno avaliado e professores avaliadores, que ocorre num momento-chave do filme, demonstra a veracidade deste aviso: muitos egos foram machucados aqui! E a cautela do realizador quanto à apresentação deste ótimo produto de catarse coletiva deixa claro que quem se sentiu atacado pelo enredo reagiu com violência. Ignorando, inclusive, quem maltratou antes e com maior intensidade. Talvez isso seja uma questão extrafílmica. Portanto, voltemos ao que o filme apresenta, por si mesmo, em seus dezoito minutos de duração.



    Logo no início, o desconforto de um personagem, Evan (Evan Teixeira), que precisa confessar algo para sua mãe. Deveras nervoso quanto à possível reação incompreensiva dela, ele ensaia persistentemente a melhor maneira de encetar o diálogo. De supetão, percebemos vários temas caros a um curta-metragem anterior do realizador, "Carta de um Jovem Suicida" (2008). A recorrência denotaria uma obsessão pessoal com algo ainda não devidamente assumido? Logo perceberemos que não apenas isso: num recurso genial de adesão à metalinguagem, o filme trava. E o "assunto meio delicado" do início sai da esfera íntima e adentra o campo acadêmico, a discussão intelectual. O que é privado é também público, quando convertido em Arte!




    Numa encenação genial, em que o próprio diretor, junto a dois outros professores, atua como si mesmo, aquilo que até então víamos como drama é julgado enquanto atividade universitária. O que parecia defeituoso internamente (o abuso de certa teatralidade, por parte dos atores) é questionado como defeito técnico, pela banca avaliativa. Seria um chiste, uma autocrítica, uma provocação e/ou tudo isso ao mesmo tempo? É irrelevante responder. Marcelo Ikeda - roteirista, diretor, professor e personagem - convida-nos a sentir, a lembrar de situações semelhantes, em que estivemos envoltos numa esfera de reprovação, apenas porque insistíamos em desabafar algo. Eis um tema que parece abarcar toda a filmografia ikediana: a urgência salvaguardadora do desabafo!




    Por mais que Evan, o aluno, tente defender-se, há toda uma conjuntura de "experiência" que o desautoriza, em termos de imaturidade (por mais que essa seja trazida à tona, enquanto depoimento autoral, por ele próprio). Num diálogo posterior com um amigo, a chaga da rejeição/incompreensão revela contradições ainda mais delicadas: depois que esbraveja contra a europeização afetada de seus detratores, Evan reclama que, ao invés de estrear no Festival de Tiradentes, seu filme deveria ser exibido em Locarno. Quem o julgaria por ter ambição? Quem se identifica com seu elã colérico? Na derradeira seqüência, no escuro, a leitura de um maravilhoso poema de Sara Síntique. Tal qual o supracitado curta-metragem anterior, "Um Assunto Meio Delicado" revela-se um filme de amor, um grito em defesa da necessidade de declarar aquilo que arde por dentro. Um trabalho de mestre, portanto: parabéns por tamanha (auto)consciência e sensibilidade, Marcelo Ikeda! 




Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

NOTÍCIA DE JORNAL: Mostra divulga premiados da 44ª edição



 PRÊMIO DA CRÍTICA

"A imprensa especializada que cobre o evento e tradicionalmente confere o Prêmio da Crítica, também participou da premiação elegendo Glauber, Claro como o melhor filme brasileiro e Mosquito como o melhor entre os estrangeiros.


 

Dirigido por César Meneghetti, o longa Glauber, Claro foi escolhido "por apresentar um original exercício estilístico, em que revela a forma visceral com que Glauber Rocha filmava à base de improvisações e muito inspirado no cinema político".


 

Já o moçambicano Mosquito, de João Nunes Pinto, leva o prêmio "pela maneira pulsante e criativa como retrata um período histórico ao borrar as barreiras entre o real e o imaginário, construindo uma obra antibelicista ao mesmo tempo em que critica o papel colonizador de seu país". 


 

Júri - Prêmio da Crítica: Ailton Monteiro, Barbara Demerov, Barbara Santos, Bruno Carmelo, Inácio Araújo, Isabel Wittmann, Jorge Cruz, Leonardo Sanches, Luiz Carlos Merten, Luiz Joaquim, Luiz Zanin, Marcelo Muller, Márcio Sallem, Maria do Rosário Caetano, Matheus Mans, Nayara Reynaud, Neusa Barbosa, Robledo Milani, Rodrigo de Oliveira, Ubiratan Brasil, Úrsula Passos, Wesley Pereira de Castro".

terça-feira, 3 de novembro de 2020

* Mostra SP 2020: O LIVRO DOS PRAZERES (2020, de Marcela Lordy)


     A fim de ser justo em relação aos méritos femininos deste filme, convém esquecer, por alguns instantes, que ele é a adaptação daquela que talvez seja a obra-prima da escritora Clarice Lispector [1920-1977]. Entretanto, o seu maior chamariz é justamente ser derivado de "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", publicado em 1969. Nos créditos finais, a diretora resolve parcialmente o problema: trata-se de uma "adaptação livre", sendo justificadas as translações contemporâneas e classistas do enredo. Funciona? Sim e não. Como a vida, às vezes... 



    Não obstante o sumo existencialismo da obra original, o roteiro deste filme demora a assumir a sua verve melancólica. Como tal, a protagonista vivida por Simone Spoladore também demora a angariar empatia por parte do espectador: no início, seus valores pequeno-burgueses e sua inconstância comportamental (leia-se: sexual) são signos insuficientes de seus devaneios e desamparo. A montagem um tanto incoesa realça esta aparência: os momentos que mostram Lorelei em sala de aula não se coadunam muito bem com o restante de seu cotidiano. E a péssima composição dos personagens masculinos prejudica bastante a pretensa sinestesia do filme: é difícil dispor-se a sentir o que a protagonista sente quando ela envolve-se voluntariamente com homens tão desenxabidos. Javier Drolas, por exemplo, fica refém das barreiras idiomáticas: está inexpressivo! A toxicidade de seu Ulisses tem pouco a ver com a docente inspiração original... 



       Como a ênfase publicitária do filme está em sua feminilidade, enfatizemos estes aspectos: depois que o irmão da protagonista (mal-interpretado por Felipe Rocha) sai de cena, redimensionamos o despertencimento familiar de Lóri, que não se sente rica nem amada. A vida é, para ela, um automatismo, que desemboca na sexualidade desenfreada, obviamente. Que não satisfaz. Após a transa um tanto automática com o atraente colega Carlos (Gabriel Stauffer), a personagem vomita compulsivamente. E, se ele é um ótimo consertador de pias, não a escuta, não preocupa-se com o que ela sente. Culpa dele? Culpa dela? Culpa do filme? Culpa da sociedade machista, obviamente. 



    Da metade do filme em diante, a trilha musical de Edson Secco torna-se mais evidente, a fim de promover maior imersão emocional por parte do espectador. Os diálogos advindos do livro passam a ser literais, ainda que proferidos em contextos distintos. O inusitado (e inconvincente) final feliz que o diga! Entretanto, a diretora é consciente da fragilidade - e dificuldade - da adaptação, de maneira que preferiu seguir um rumo narrativo mui pessoal, o que é deveras lícito. As cenas derradeiras, por exemplo, estendem-se, até os créditos de encerramento. Os dois pontos, à guisa de provocadora (in)conclusão, são reiterados, utilizados de maneira ostensiva, ocupando toda a tela. É um filme esforçado, portanto: encontrará alento em parte disposta de seu público. Ainda que o resultado geral seja irregular, pela abordagem audaciosa, a diretora e roteirista é merecedora de aplausos!



Wesley Pereira de Castro.