domingo, 12 de março de 2023

MATO SECO EM CHAMAS (2022, de Joana Pimenta & Adirley Queirós)

Conjugando aspectos discursivos e elementais de suas obras anteriores e aderindo a uma parceria directiva mui vigorosa com a responsável pela excelente fotografia, Joana Pimenta, o goiano radicado em Brasília Adirley Querós realiza não apenas a sua obra mais autoral como um dos petardos mais revolucionários do cinema contemporâneo. Aqui, ele encara de frente, novamente, a falência política de um país que aceita provisoriamente o discurso de ódio advindo de um representante ignóbil da extrema-direita, optando por uma narrativa que, além de estraçalhar as fronteiras tênues entre ficção e documentário, apresenta-nos a um relato sobre meios-irmãos que amam-se incondicionalmente, a despeito dos sofrimentos enfrentados por suas respectivas mães, no que tange à promiscuidade e a tendência renitente à criminalidade do pai deles. Do elã partidário que advém de "A Cidade é uma Só?" (2011) às emulações distópicas que marcam "Branco Sai, Preto Fica" (2014) e "Era uma Vez Brasília" (2017), lidamos com uma potente alegoria cinematográfica, direcionada contra as mazelas do bolsonarismo... 


De um lado, Léa (Léa Alves da Silva) e Chitara (Joana Darc Furtado) assumem-se como gasolineiras na favela de Sol Nascente, na Ceilândia, na mesma localidade em que Andréia Vieira tenta eleger-se como deputada distrital; do outro, as forças repressivas, que, no fanatismo servil por um presidente que flerta com o neofascismo, instauram um toque de recolher na favela em que acontecem as ações. Um grupo organizado de motoqueiros surge como organismo intersticial, prestando assistência às mulheres, ao perceberem que as taxas que elas cobram pelos derivados de petróleo são muito mais acessíveis que aquelas ofertadas pelos distribuidores institucionais. Entretanto, os efeitos colaterais do crime circundam as personagens, que relatam com nostalgia ressignificada a vivência na cadeia, ao passo em que são recapturadas por práticas ilícitas reincidentes. Notamos que as personagens utilizam os seus nomes verdadeiros, o que é confirmado de maneira surpreendente quando Chitara, no meio de uma cena, comenta que sua irmã fora presa novamente, enquanto estava empolgada por participar de um filme. Onde começa uma distopia e onde termina a outra? Na magnífica direção de arte deste filme, tudo é Brasil! 


A alinearidade da montagem não prejudica o entendimento do espectador, no que diz respeito à compreensão da trama, visto que os diretores prezam pela completa imersão na narrativa periférica, em que a seleção cancional revela-se instrumentalmente brilhante: seja quando a banda Muleka 100 Calcinha executa o tema titular numa festa de boteco, seja quando uma música célebre de Odair José ilustra o desejo de Léa de, algum dia, gerenciar um puteiro. Os enquadramentos antológicos são variegados, com destaque para a comunhão erótica entre mulheres que divertem-se, ao som de uma letra de funk, num ônibus e o instante posterior em que algumas delas são conduzidas à prisão. Idem para a longa duração da seqüência em que Chitara participa de um culto evangélico ou os instantes em que as mulheres trabalham numa olaria ou na companhia petrolífera improvisada, de cariz ostensivamente feminista.  Tudo nesse filme evoca revolução, a fim de enfrentar o treinamento de evocações nazistas, ensaiado no interior de um camburão bélico. Obra-prima em estado ígneo absoluto!



Wesley Pereira de Castro. 
 

sábado, 4 de março de 2023

QUANDO FALTA O AR (2022, de Ana Petta & Helena Petta)


Assistindo-se a este filme com certo distanciamento em relação à época em que os eventos foram retratados - ou seja, num contexto em que já existe uma vacina para a COVID-19 -, percebemos que o documentário em pauta é ainda mais valoroso em seu pendor político, no sentido de que ele posiciona-se frontalmente contra os desmandos perpetrados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. O fato de uma das diretoras ser formada em Medicina reitera o aspecto mais destacável do filme, que é o seu elogio reiterado ao desempenho dos profissionais que compõem o SUS (Sistema Único de Saúde), no Brasil. 


Ainda que não haja intervenção explícita de um narrador onisciente, a montagem do filme possui diversos instantes condutivos, sobretudo nas seqüências protagonizadas pela médica baiana, que, ao atuar num complexo prisional, aproveita a oportunidade para tecer alguns comentários sobre o racismo, manifesto até mesmo no modo como algumas doenças são erradicadas. Em razão de possuir evidente cabedal discursivo, de cunho militante, ela age como se fosse a co-diretora interna de suas participações, de modo que, ao ser mostrada atendendo aos seus pacientes, suas intervenções são reforçadas pela pujança sociológica das canções que ouve - entre elas, "Vida Loka (partes 1 e 2)", do grupo Racionais MC's, e "Strange Fruit", da cantora Billie Holiday. Como tal, suas falas destoam do que é filmado nos demais localidades registradas pelas documentaristas.  


Focalizando o cotidiano de um hospital em São Paulo, os percursos de agentes comunitários em Recife e as dificuldades enfrentadas pelos médicos em regiões ermas de Amazonas e Pará, este filme opta pela comprovação da determinação otimista que é adotada como epígrafe: um trecho do romance "A Peste", de Albert Camus, em que é afirmado que aprende-se no meio dos flagelos que "há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar". De fato, é o que percebemos. Vide a ternura das enfermeiras que sintonizam a canção favorita ["Princesa", de Amado Batista"] de um senhor adoentado,  o reconhecimento dos ensinamentos do xamã de sua tribo, por parte de um médica com ascendência indígena, e o emocionante momento em que uma idosa chama uma médica de "menina", a fim de perguntar se pode comer macaxeira durante a quarentena. É um filme que faz jus à ressignificação de sílabas contida na canção " Mortal Loucura", composta por José Miguel Wisnik a partir de um poema de Gregório de Mattos, que aparece nos créditos finais em bela interpretação de Mônica Salmaso. Levando à frente o importante jargão: "viva o SUS"!



Wesley Pereira de Castro.