quinta-feira, 16 de maio de 2024

LOVE LIES BLEEDING - O AMOR SANGRA (2024, de Rose Glass)


Na academia de ginástica em que as protagonistas se conhecem, há diversas frases motivacionais, correspondentes àquelas que, hoje em dia, são propagadas pelos 'coaches'. Uma delas chama a atenção pela contundência em relação à progressiva transformação fisiológica de Jackie (Katy O'Brian): "dor é a fraqueza saindo de seu corpo". De fato, os inúmeros 'close-ups' de suas veias em ebulição servem como prenúncio para a sua gigantificação, no desfecho, algo que, no jargão dos fisiculturistas midiáticos, funciona como um chamamento: "deixem o monstro sair"!


Como a diretora britânica Rose Glass iniciou a sua carreira com um longa-metragem de terror, ela manipula com habilidade as convenções deste gênero: a fotografia em tons rubros possui instantes mui assustadores, sobretudo nos 'flashbacks' e/ou alucinações que invadem o idílio erótico das personagens femininas. Kristen Stewart, acostumada a interpretar personagens emocionalmente carentes, oferta-nos uma personificação intensa em seus ciclos de insegurança, enquanto Katy O'Brian fascina-nos pela postura inversa, ostentando uma crença exacerbada nas possibilidades de modificação de seu próprio corpo, ratificando, mais uma vez, o que ela lê nas paredes da academia... 


Em suas aparições como um criador de besouros que lidera o tráfico local de drogas, Ed Harris está tão bizarro quanto aterrador, e o roteiro (co-escrito pela diretora e por Weronika Tofilska) desenrola um cabedal de situações desastradas, que seriam cômicas se não fossem sobremaneira trágicas. Vide o que ocorre à irmã da personagem Lou, interpretada por Jena Malone, continuamente espancada e traída por seu marido JJ (Dave Franco), mas, ainda assim, obcecada por ele. Os recursos maneiristas da direção possuem muitos pontos em comum com o estilo de Nicolas Winding Refn, tanto quanto a trilha musical, repleta de sintetizadores, de Clint Mansell. A ambientação oitentista é excelente! 


Em certos aspectos, a maneira como quase tudo naquela cidade gira em torno de apenas quatro ou cinco personagens confere uma tônica teatral ao desenrolar dos acontecimentos, mas é algo que não incomoda por completo: afinal, o enredo sabe converter em deflagrador de tesão a tendência renitente dos personagens aos erros e crimes impulsivos, sendo as cenas de violência impressionantes na maneira irascível com que elas irrompem. A dúbia reconciliação que acompanhamos na derradeira seqüência, imageticamente induzida por alucinógenos, corrobora o elã passional da narrativa, que possui um instante tão poético quanto repugnante, que é aquele em que, num delírio, Jackie imagina estar vomitando Lou, num casulo similar aos das larvas de besouros que o pai dela cria. São vários os monstros que vêm à tona neste registro interiorano de caracteres tipicamente estadunidenses. Gratíssima surpresa, faz jus ao seu título! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 15 de maio de 2024

A NATUREZA DO AMOR (2023, de Monia Chokri)


 

Quando adentramos a sessão deste filme, parecemos estar diante de uma versão atualizada de “O Declínio do Império Americano” (1986, de Denys Arcand), uma das produções canadenses mais valorizadas internacionalmente. A estrutura fílmica é bastante similar: um retrato da ‘intelligentsia’ francófona, a partir de seus preconceitos inassumidos e contrastes idealizados. Enquanto, na TV, crianças assistem a um desenho animado antigo, seus pais e os amigos destes discutem a relevância de alguns “valores universais”, com base em argumentos antropológicos e na consideração de que “falar sobre o bem e o mal é algo bastante complicado”. Por vezes, é difícil ouvir a conversa, por causa dos gritos das crianças. Até que uma nova convidada adentra a sala…



Apresentados os créditos de abertura, sabemos que Sophia (Magalie Lépine-Blondeau) e Xavier (Francis-William Rhéaume) formam um casal. Ambos professores universitários, eles parecem combinar até mesmo na simpatia transversal por um ditador do Turcomenistão. Lêem os mesmos livros e possuem diversos amigos em comum. Mas dormem em camas separadas e há uma evidente insegurança por parte de Sophia, que, de repente, começa a ficar enciumada em relação à convidada supracitada.



Numa viagem a um chalé no interior, Sophia é auxiliada pelo empreiteiro Sylvain (Pierre-Yves Cardinal), muito bonito e prestativo, com quem ela compartilha uma lembrança de adolescência, envolvendo a canção “Still Loving You”, da banda alemã Scorpions. Algum tempo depois, ambos dançarão ao som desta canção, com Sophia pendurada nos braços de Sylvain. Ela apaixonar-se-á compulsivamente por ele, mas insiste que, em conversas com parentes e amigos, seu amado pertence a um contexto social radicalmente distinto do dela. Segundo Sophia, ele é um caipira que, mesmo apreciando poesia, flerta com a extrema-direita. Será possível erigir um relacionamento amoroso a partir disso?



Conforme se percebe nesta sinopse estendida, “A Natureza do Amor” dá continuidade aos estigmas socioculturais que seus personagens fingem desgostar. Não obstante a condução da narrativa possuir um direcionamento cômico, ao escarnecer dos pantins de professores universitários (reclamar de um gatilho de ansiedade ao perceber que a lavadora de louças está entulhada, por exemplo), a diretora não disfarça a simpatia exacerbada pela protagonista. No desfecho, sentimo-nos tão desnorteados quanto ela: por mais que estudemos e conheçamos os textos clássicos, precisamos recorrer aos instintos mais elementares para tomar algumas decisões cotidianas. É mais fácil escolher com quem casar quando se leciona sobre as obras platônicas?




Na Universidade, em Montreal, Sophia clarifica os conceitos filosóficos de autores como Arthur Schopenhauer e Bell Hooks acerca do amor. E, neste sentido, a diretora é hábil ao fazer com que intuamos os estados de espírito de Sophia, a partir da maneira como ela conduz as suas aulas. A montagem, na maior parte, é bastante acelerada, marcada por planos e contraplanos rápidos, que metonimizam as reações rápidas dos personagens ao que acontece. E o fotógrafo André Turpin obtém enquadramentos elaborados, em que a disposição dos ambientes reflete o quão distante ou próxima está Sophia, em âmbito emocional. Não é à toa que Xavier lhe presenteia com um grosso livro sobre a “Epistemologia e Estética do Espaço em Gaston Bachelard”!



Se, por um lado, o filme é assertivo e divertido em suas confusões românticas e nas desconfianças de Sophia quanto à “simplicidade” de Sylvain, por outro, ele soa caricatural ao registrar uma crise súbita de ciúmes, por parte de Sylvain, quando este encontra um casaco de Xavier no sofá de Sophia. Como a protagonista é eventualmente histriônica e a diretora adere ostensivamente ao estilo verborrágico, os deslizes tramáticos são justificados pelos comportamentos precipitados dos personagens. Mas é um filme que, mesmo assim, pode incomodar algumas platéias, em razão de suas tendências julgamentais. Vide o que ocorre em discussões familiares – num debate sobre arte contemporânea – ou quando aparece o irmão de Sophia, Olivier (Guillaume Laurin), cujas namoradas são sempre estereotipadas, em suas tendências discursivas…



Terminada a sessão, tanto quanto acontece nos melhores filmes de Denys Arcand, reconhecemos a nós mesmos – e a nossos conhecidos – na fauna intelectualóide que a diretora concebe roteiristicamente. Ela, inclusive, interpreta uma das personagens, a anfitriã Françoise, comumente às voltas com a teimosia de seus filhos e com a apatia de seu marido. Para quem convive em meios acadêmicos (e/ou academicistas), algumas piadas e dilemas funcionam melhor. Mas o grande destaque do filme é mesmo a beleza acachapante do homem por quem Sophia se apaixona: quando ela exclama que ele é lindo, o que acontece em mais de um momento, fazemos o mesmo, mentalmente. Mas será que isso é relacionalmente compensador? Eis o charme do enredo!




Wesley Pereira de Castro.