segunda-feira, 11 de novembro de 2024

AINDA ESTOU AQUI (2024, de Walter Salles)


Numa cena breve mas sintomática, uma das filhas adultas da protagonista pede dinheiro emprestado à sua mãe, pois viajará por algum tempo. Ela garante que pagará todo o valor, o que é confirmado por Eunice Paiva (Fernanda Torres), que, segurando uma caderneta, lhe diz: "não se preocupe, está tudo anotadinho aqui!". Com isso, fica evidente que as lembranças de família não possuem apenas valor mnemônico, de caráter afetivo. Servem também enquanto cobrança, à guisa de reparação das injustiças sofridas pela protagonista real, que forma-se em Direito, quase aos cinqüenta anos de idade, e torna-se uma aguerrida defensora das comunidades indígenas, numa época em que este assunto era francamente negligenciado - visto que a construção da Rodovia Transamazônica era divulgada como um indicativo de progresso, não como um atestado de devastação ambiental e humana! 



Os motivos para se elogiar esta pessoa, mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva - autor do romance autobiográfico em que o roteiro é baseado - são múltiplos, mas, pelo que vemos no filme, não tão óbvios. Afinal, por mais que ela tenha sido presa sem motivos e sem compreender devidamente as razões para tal, não deixa de ser uma dona de casa privilegiada, que, enquanto lida com a ausência devastadora de seu marido engenheiro e ex-deputado, também precisa resolver questões como a demissão da empregada, a venda do terreno onde pretendia construir a residência dos sonhos, e a mudança para uma cidade longe da praia. As questões de classe, portanto, são sobrepostas às convenções melodramáticas, que muitos divulgam como centrais na obra. 



É interessante que, nos eventos de divulgação, a atriz Fernanda Torres critique quem chama a atenção para os vestidos que ela usa ("ao se falar sobre um filme como este, isso não é relevante", diz ela) e enfatiza que a direção de Walter Salles foi marcada por várias estratégias de subtração: Eunice Paiva não entrega-se ao choro barulhento que se espera dela, nem conversa com os filhos - quando crianças e adolescentes, ao menos - sobre o que aconteceu com seu esposo Rubens (Selton Mello, ótimo). Ao invés disso, ela finge ser tão feliz quanto as pessoas que observa - em câmera lenta, ao som de uma trilha musical merencória - numa sorveteria: é preciso sorrir e seguir em frente... 


Como estamos diante de uma visão filial sobre um entendimento político ocorrido a posteriori, as explicitudes discursivas são evitadas: Rubens e Eunice possuíam, de fato, vários amigos que simpatizavam com o comunismo, mas isso não era tão discutido quanto os militares pensavam. Eles preferiam dançar, em plena sala, canções que eram consideradas "subversivas", apenas por exaltar noções de brasilidade que não anulavam o sensualismo - e que, no filme, aparece como pretexto para vender um eventual álbum com a trilha sonora. E isso ocorre sob a lógica da possibilidade de acesso, em mais de um sentido: quando a jovem Vera (Valentina Herszage) viaja para Londres, por exemplo, sua mãe entrega-lhe um punhado de libras esterlinas, antecipando-se em aconselhar: "ao invés de gastar tudo isso com discos, compre um sapato"!


Cineasta dotado de vastos recursos financeiros e suficientemente reconhecido por público e crítica - graças, sobretudo, ao internacionalmente premiado "Central do Brasil" (1998) -, Walter Salles cerca-se de profissionais tarimbados, a fim de garantir que seu trabalho obtenha todo o primor técnico que o filme precisa, para converter-se no "arroz de festa" da atual temporada de premiações. O desempenho dos atores infantis (e canino) é excelente, de modo que o primeiro terço do filme, em que diálogos simultâneos traduzem o frenesi daquela harmonia familiar, é magistral. Depois da impactante seqüência dos interrogatórios a que Eunice é submetida, o filme muda de tom, como a própria família é obrigada a fazê-lo, frente à ausência de seu patriarca e provedor. Com isso, tanto a família quanto o filme perdem: no desfecho, Eunice é empurrada numa cadeira de rodas, em pungente vivificação silenciosa de Fernanda Montenegro, como se fosse um bibelô jornalístico, a fim de compensar a tortura de ela ser afligida pelo Mal de Alzheimer, que dizima justamente a memória. Ficam as fotografias, os escritos, a certidão de óbito tardia e os livros publicados por Marcelo Rubens Paiva, extremamente merecedores de adaptações cinematográficas. Esta em particular, a despeito de ser muito importante - em âmbito conjuntural pós-eleitoral -, não é das mais emocionantes, infelizmente. Era a intenção?


Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 2 de novembro de 2024

CORINGA: DELÍRIO A DOIS (2024, de Todd Phillips)


O segmento de abertura deste filme - um breve desenho animado, concebido pelo francês Sylvain Chomet, intitulado "Eu e Minha Sombra" - é bastante efetivo ao distanciar este segundo capítulo do anterior: além de resumir a trama, em viés simbólico, ele traz à tona a questão da disassociação de personalidade, fundamental para se curtir o musical ora apresentado, em viés depressivo e sumamente melancólico. Ao invés do pretenso denuncismo social do prévio enredo com o atormentado protagonista, temos agora um potente estudo de personagem, que atingirá em cheio quem já experimentou a solidão que ele tenta desesperadamente sufocar... 

Para que "Coringa: Delírio a Dois" (2024) seja efetivo em seu contato com o público, convém desvencilhá-lo radicalmente do personagem dos quadrinhos: Arthur Fleck (magnificamente interpretado por Joaquin Phoenix, mais uma vez) não é o Coringa arqui-inimigo do Batman, mas um dentre vários Coringas possíveis, a depender das expectativas de quem está frustrado com as condições hodiernas das instituições sociais. E, neste sentido, a patricinha filha de médico e pós-graduada em Psicologia que se apaixona por Arthur - apenas quando maquiado - também não é a infame Arlequina, mas uma delirante imitadora, mais uma fetichista na conjuntura espetaculosa dos julgamentos criminais. 


Em sua exposição inclemente de um manicômio que maltrata impiedosamente os seus internos, o diretor Todd Phillips introduz Arthur Fleck como aprisionado num inferno que só lhe permite algum respiro quando ele adere à insanidade: seja quando ela surge de maneira inevitável, enquanto conseqüência dos maus tratos que experimentou ao longo de toda a vida, e que encontra na Música, e na paixão, algum bálsamo; seja quando ela é manipulada, a fim de obter o apoio de parte indignada da opinião pública, que é chantagista, e só ficará ao lado de Arthur Fleck se ele obedecer à tipificação que eles projetam. Por isso, ainda na fase inicial de sua paixonite, o protagonista percebe que o afeto de sua amada não é tão recíproco ou inabalável quanto ela faz imaginar... 


É a deixa para que elogiemos a ambigüidade compositiva de Lady Gaga, como a alucinada Lee Quinzel, deveras funcional naquilo que a fez ser escalada enquanto coadjuvante: a sua impressionante potência vocal e a fascinante esquisitice de sua beleza. Os números musicais em que ela contracena são deveras efetivos na crítica ao 'showbiz', do qual é ela uma criação acachapante. Por isso, quanto mais a narrativa avança, mais Arthur Fleck canta sozinho, culminando no doloroso instante em que, nos créditos finais, ouvimos ele entoar os versos merencórios de "True Love Will Find You in the End", de Daniel Johnston, depois de ser esfaqueado por um interno (Connor Storrie), chateado porque o mito anárquico erigido no primeiro filme revelou-se um ser humano fraco - porque essencialmente humano -, destroçado por uma paixão que acaba bruscamente. Tem como ser mais sintomático que isso, no que tange à adesão de alguns votantes à extrema-direita?


Inevitavelmente irregular, em suas duas horas e dezoito minutos de duração, "Coringa: Delírio a Dois" conjuga as convenções de um musical neurastênico com o típico filme de tribunal, havendo a aguardada cena em que Arthur Fleck dispensa a advogada (vivida por Catherine Keener) que, por algum motivo, o defendia de maneira abnegada. O dramático interrogatório do personagem Gary Puddles (Leigh Gill) é um dos pontos altos do julgamento - tanto quanto a entrevista com o cínico apresentador de TV vivido por Stevie Coogan -, mas são as cenas de (des)amor que tornam este filme marcante: o instante em que Arthur pede que Lee conduza o ato sexual, já que ele é praticamente virgem; quando ela confessa-se grávida; quando ele deixa-lhe uma mensagem na secretária eletrônica (cantarolando "If You Go Away", versão em inglês para a antológica "Ne Me Quitte Pas", de Jacque Brel); e o diálogo próximo ao final, quando ela o dispensa, na escadaria que ela fingiu ter atravessado na juventude, a fim de conquistar seu objeto idealizado de desejo (o Coringa, não Arthur). Temos, aqui, um filme sumamente incompreendido e, como tal, vitimado pelo mesmo tormento que aflige o seu protagonista! 



Wesley Pereira de Castro.