A transmutação psicodélica do logotipo da produtora deste filme em seu primeiro minuto de projeção antecipa que, para além das diferenças aparentes de contexto em relação às produções anteriores do diretor Ang Lee, a entrega ao período e contexto históricos abordados será completa. Quando Imelda Staunton surge em cena, porém – de forma inicialmente coadjuvante, mas logo se destacando enquanto foco conflituoso do roteiro – percebemos que as aparências temáticas que permeiam o genial ‘corpus’ cinematográfico deste diretor eclético é apenas enganosa para aqueles que ainda não se atreveram a analisar a sua obra como ela merece: como a insistente tentativa de demonstrar o quão relevantes e determinantes são embates entre filhos rebeldes e pais austeros e/ou ambiciosos, de maneira que, neste filme em particular, é a figura materna quem domina, visto que o representante parental masculino (Henry Goodman) é auto-julgado enquanto moribundo, completamente subsumido à sanha avarenta da mulher que ama há mais de quarenta anos. Ou seja, por mais estapafúrdias que pareçam comparações estilísticas entre os diálogos defensivos da tradição gastronômica em “Comer, Beber, Viver” (1994) com os subtextos ecológicos e anti-partidaristas de “Hulk” (2003) frente a exegeses preguiçosas, há uma linha comum e dominante muito forte em todos os roteiros conduzidos por Ang Lee e, neste filme mais recente em particular, a mesma se destaca pelo modo concomitantemente oportunista e crítico que se manifesta, visto que os eventos narrados no título do filme são decisivos analiticamente, mas, ao mesmo tempo, são apenas um pretexto para que o protagonista Elliot Teichberg (Demetri Martin) perceba o quanto sua mãe é tirânica e monetifágica e assim possa pôr em prática o seu desejo de sair de casa e viajar para a Califórnia. Tal divergência salutar de interesses roteirísticos fica bastante evidente numa conversa entre Elliot e Tisha (Mamie Gummer) próximo do final do filme, em que o segundo comenta que seus dias não vão muito bem por causa de brigas familiares que podem ser irrelevante diante do macro-evento que acontece em seu quintal, mas a primeira contesta: “muito pelo contrário. Talvez estas brigas que tu estás a enfrentar sejam os eventos mais importantes do universo”. Para o diretor Ang Lee, apoiado de perto pelo roteirista habitual James Schamus, realmente o eram – e isso nem de longe é um problema. A grande força do filme está justamente aí, configurando-se em quase uma obra-prima por um conjunto de elementos tão maravilhosamente elaborados que qualquer tentativa de enumeração será pálida diante da extrema relevância política (e artística) deste belíssimo exemplar da arte cinematográfica.
Afinal de contas, em 121 minutos de duração, os sentidos e interesses sub-reptícios do que foi o maior evento ‘hippie’ da História são trazidos à tona de uma forma que não pretende julgar os envolvidos, mal-intencionados ou não, mas sim demonstrar o quanto qualquer ação humana desencadeia reações igualmente humanas extremamente relevantes para o funcionamento do Universo, conforme complementado por Tisha: “o problema está nas perspectivas, que limitam o universo e impedem o contato com o Amor”. Ang Lee concorda plenamente com ela e, como tal, oferece ao seu público uma pungente declaração de amor ao amor em si, ao conceito primário de liberdade e aos significados estritos das revoluções da década de 1960 como há muito não se fazia em Hollywood. Impossível não se sair positivamente chapado do filme!
Vamos a uma tentativa de se encontrar dados técnicos-analíticos que referendem o bem-estar extremado que este filme causa em nossos sentidos: adotando uma reconstituição de época minuciosamente perfeita que se torna egrégia justamente pela sutileza, o diretor Ang Lee diferencia-se de outros mestres cinematográficos hodiernos por não possuir cacoetes estilísticos facilmente reconhecíveis, mas, ao invés disso, optar por soluções estéticas gritantes em sua combinação estratégica com as nuanças do enredo e das ótimas interpretações do elenco. Nesse sentido, quatro grandes seqüências primorosas merecem destaque neste âmbito: a já citada conversa entre Elliot e Tisha sobre o quão relevante para um contexto macrológico são as brigas travadas com sua mãe; uma discussão violenta entre estes mesmos parentes quando o filho questiona sua progenitora acerca de em quais situações “a mãe de Janis Joplin pediria para que ela escondesse uma garrafa de uísque nos bolsos ou a mãe de Jimi Hendrix insistiria para que ele lavasse os cabelos com xampu”; o momento silencioso em que Elliot recebe o telefonema definitivo de um colega que o convida para viajar e ele recusa em virtude da alegada necessidade de ficar ao lado de sua mãe no cuidado do hotel familiar que gerencia; e, obviamente, a iluminada participação dos atores juvenis Paul Dano e Kelli Garner como sendo o casal que intercepta Elliot quando este tenta chegar ao palco onde se realizava o concerto que ajudou a organizar e, num brilhante instante de supremacia lingüística, um ostensivo primeiríssimo plano no rosto de Paul Dano (quiçá, o único do filme) faz com que ele pareça está se dirigindo ao espectador-modelo quando diz a Elliot que ele é “incrivelmente local”. Segundos depois, Elliot estará usando ácido lisérgico pela primeira vez, em outro momento extraordinário de cinema, em que não somente cada detalhe preciso das sensações desencadeadas pelo consumo da referida substância (vide famosos relatos literários de Timothy Leary ou Aldous Huxley) são reproduzidos, como também a direção não cai no apelo fácil de optar por uma câmera subjetiva, fazendo com que o espectador vivencie tudo objetivamente, levando a cabo a identificação primária com a câmera fora tão bem descrita pelo crítico de cinema André Bazin e seus seguidores.
Nesta cena, inclusive, acontece o paroxismo do filme, uma estupenda viagem alucinógena em que Elliot imagina-se próximo ao epicentro do Cosmos, em que a pletora de pessoas comungando as mesmas experiências assemelha-se às ondas esotéricas do equilíbrio planetário. O efeito é tão bem-sucedido que, desta cena em diante, será necessário um tempo razoável para que o espectador vivencie novamente a racionalidade, não obstante a sua afetação sensorial profunda garantir a interação devida e pretendida com as situações abordadas nos minutos seguintes de projeção, inclusive no que diz respeito a uma funcional situação humorística que talvez peque pelo apelo fácil, em detrimento das sutilezas até então descritas, quando os pais de Elliot são mostrados dançados freneticamente na chuva depois de terem consumido quatro biscoitos repletos de haxixe.
Junto à equivocada (e factual) cena e que o pai de Elliot expulsa alguns mafiosos chantagistas de sua propriedade à base de golpes com um taco de beisebol, a cena descrita no parágrafo anterior é uma das pouquíssimas que maculam a consideração deste filme enquanto mais uma obra-prima de seu diretor, mas nem de longe a insatisfação rápida que ela causa suplanta a beleza discursiva de todo o processo reconstitutivo do evento titular, que, num cotejo com o excelente documentário “Woodstock: 3 Dias de Paz, Amor e Música” (1970, de Michael Wadleigh), só se torna ainda mais fecundo, no sentido de que o diretor Ang Lee escarafuncha todas as contradições midiaticamente veladas sobre o festival, desnudando as preciosidades compositivas de personagens reais como o calmo idealizador ‘hippie’ que passeia ao lado de vários ‘yuppies’ (gerações juvenis radicalmente opostas que se mostravam infelizmente transitivas no curso econômico da História) ou os fazendeiros que visavam lucrar com o aluguel de suas terras para o evento mas congratulam os jovens por estarem ouvindo mais ‘por favor’ e ‘obrigado’ naqueles três dias do que em toda a duração de suas vidas.
Imaginar o que teria levado o diretor e o roteirista a servirem-se de tais pretextos históricos no contexto globalizadamente anômico do século XXI em que vivem é, portanto, uma assunção coletiva de inteligência e contestação, que, no filme, ganha voz na trupe de teatro que questiona as posições tradicionalmente passivas atreladas a público ou platéia em dados momentos da interação artística. Neste sentido, o uso político e recorrente da nudez pilosa dos atores e os preciosos momentos de questionamento sexual (vide a ótima composição do travesti policialesco magnificamente interpretado por Liev Schreiber, a cena em que mulheres são mostradas queimando sutiãs ou o homossexualismo enrustido e evidente do protagonista) funcionam como estrondosas armas ideológicas contra preconceitos que continuam arraigados mesmo depois de passados 40 anos do contexto etário em que os eventos reais se deram.
Analisando o filme em retrospecto (ou seja, comparando-se o que vem sendo feito em relação a este tipo de abordagem geracional atualmente) é que se percebe o quanto ele é avançado conteudística e formalmente, seja no que diz respeito à continuidade temática insistente dos roteiros escolhidos pelo diretor sobre o já falado questionamento massivo das autoridades parentais, seja no que diz respeito a uma forma polida e tecnicamente irrepreensível, na construção da qual merece menção os nomes do editor Tim Squyres (cujas telas divididas oscilam entre referências/reverências a Brian De Palma e ao próprio Michael Wadleigh), do músico Danny Elfman (quase irreconhecível em sua emulação idílica dos acordes de violão que encantaram um filme anterior do diretor, sob a batuta do argentino Gustavo Santaolalla) e do trabalho impecável de todo o elenco, inclusive dos figurantes que tornaram incrivelmente realistas a interação com detalhes mínimos como as flores e cores que enfeitam cenários e indumentárias, esgotos a céu aberto e máscaras de gás e demais utensílios militares utilizados como ferramentas de protesto durante o festival. Não se pode também esquecer de mencionar o fotógrafo Eric Gaultier, responsável por vários dos momentos de genialidade lingüística supracitados, inclusive pela opção mui acertada de, na cena em que Elliot e o traumatizado Billy (Emile Hirsch) escorregam pela lama, fazer com que a câmera também escorregue verticalmente, acompanhando-os e acompanhando-nos num instante pleno de interação entre equipe técnica, espectador e diegese. E, por mais que, às vezes, a nostalgia e o derrotismo possam ser sentimentos decorrentes da audiência a esta verdadeira preciosidade da Sétima Arte, a grandiloqüente e ousada opção de não mostrar imagens dos concertos famosos que se desenrolaram durante os eventos abordados na trama – e que, nas vozes imortais de Janis Joplin, Bob Dylan, Joan Baez e outros, são ouvidos incidentalmente durante pelo menos metade da projeção – faz com que não nos sintamos culpados ao fazer coro com as ótimas canções de Jefferson Airplane e Richie Havens que acompanham os créditos finais, em seus clamores imortais pelas noções básicas de voluntarismo e liberdade juvenil versus autoridade familiar impositiva. E, como disse um personagem mui relevante: “agora que o festival acabou, temos que voltar a correr atrás do dinheiro”. Com esta frase pungente do livro escrito por Elliot Tiber (o personagem real que protagoniza o entrecho) e Tom Monte em que o filme se baseia, Ang Lee lança uma mensagem peremptória às gerações que hoje o assistem. Quem quiser sobreviver culturalmente, que bem o compreenda!
Wesley Pereira de Castro.
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