Um tanto decepcionados com a fluidez palimpséstica de “Volver” (2006) e com os desvios formativo-masturbacionais de “Abraços Partidos” (2009), os fãs longevos de Pedro Almodóvar ainda ansiavam por alguma obra que, de algum modo, fizesse as pazes com a explosividade carnal de seus filmes da década de 1980. Regressar gratuitamente ao estilo revoltoso e pansexual da primeira fase de sua carreira, entretanto, seria um anacronismo estilístico que não se coadunaria ao extremado rigor com o qual este genial cineasta tece a coesão [supra]temática entre cada um de seus filmes.
Neste sentido, é particularmente espantoso o modo como “A Pele que Habito” atende aos clamores dos fãs hipodermicamente insatisfeitos com seus filmes recentes a partir de uma correlação pontual com o impacto que “A Flor do Meu Segredo” instaurou quando foi lançado em 1995: marcando o início da colaboração oficial com o músico Alberto Iglesias – que, desde então, tornou-se partícipe obrigatório de todos os filmes do diretor – esta produção assustou os fãs do cineasta, sendo até mesmo prontamente rejeitado por alguns, visto que estes não perceberam imediatamente o quanto esta obra emocionalmente centrípeta tinha em comum com os arroubos de incontinência erotógena demonstrados em “Ata-me” (1990), “De Salto Alto” (1991) e “Kika” (1993), lançados anteriormente. Analisando-se distanciadamente “A Flor do meu Segredo”, entretanto, pode-se perceber claramente o quanto este filme foi determinante para a atual configuração da obra almodovariana, muitíssimo mais erudita e aparentemente contida em sua sexualidade exasperada. E é a partir deste pressuposto comparativo – mas não somente dele – que as inúmeras qualidades de “A Pele que Habito” começam a despontar...
Tendo seu elenco encabeçado por Antonio Banderas e Marisa Paredes, atores outrora habituais nas películas almodovarianas, “A Pele que Habito” pode muito bem ser resumido como “um filme protagonizado pelos personagens oitentistas do diretor, depois que estes envelheceram após os incrementos maturativos da década de 1990”. Ou seja, os impulsos sexuais desenfreados que não raro redundavam em estupros, típicos da primeira metade da obra de Pedro Almodóvar, são agora travestidos por um discurso renovado (e sutilmente protestante) sobre as configurações diplomáticas da contemporaneidade, em que as exigências e recomendações éticas de uma dada profissão levam menos em consideração as determinações morais (incluindo os âmbitos pecaminoso e criminal das ponderações humanas) do que as suas garantias de financiamento capitalista ou suporte estatal. A temerosa suspensão destas garantias é bem demonstrada pelas recorrentes (e contagiosas) ameaças de suspensão da licença de cirurgião do protagonista, caso este insistisse em prosseguir isoladamente com os experimentos transgenéricos que infringem um código hipócrita de conduta, que não se importa em ignorar a óbvia falsidade de documentos de identidade quando estes se atrelam a uma demonstração espúria da vontade/necessidade de um paciente aquisitivamente rico de realizar uma operação plástica.
Através deste filme, Pedro Almodóvar serve-se mais uma vez de seu caríssimo tema da permissividade amorosa (eventualmente tachada de loucura) para manifestar-se opositivo a uma corrente biopolítica que se serve de engodos para-democráticos para justificar intervenções violentas nas configurações fisiológicas dos indivíduos. E, aqui, abre-se a necessidade de um parágrafo pessoalmente hiper-interpretativo.
Personagens e atores transexuais são comuns no ‘corpus’ almodovariano. Entretanto, ao contrário do que propagandeiam os oportunistas divulgadores de uma sexualidade financiada pelo capitalismo ou pelo Estado, estes quedam angustiados por dores e prazeres que vão muito além de suas graduais metamorfoses físicas, tendo contrapartidas discursivas tão polarizadas quando podem ser o lesbianismo traumático-defensivo que insurge sub-repticiamente em “A Lei do Desejo” (1987) e a defesa do pagamento monetário pela autenticidade manifesta em “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999).
Nos filmes de Pedro Almodóvar, conforme já dito, a supremacia da permissibilidade de qualquer forma de amor é o que dota de coerência interna e externa cada uma das suas obras, caracterizadas por marcas registradas como o predomínio de formas circulares, o sobejo de tonalidades rubras, as idas e vindas no tempo da narrativa e erupções cancionais que surgem na diegese, mas que logo a transcendem, assumindo-se como extensões multiinformativas da mesma, como se pode constatar nas diversas aparições da expressiva cantora Concha Buika. Em “A Pele que Habito”, portanto, para além do título que antecipa vindouras e polêmicas discussões acerca da apologia (ou condenação) da transexualidade efetiva e interventivamente biológica – novamente trazida à tona através do batismo de um dos temas instrumentais do filme como “La Identidade Inaccesible” – há um gritante manifesto em prol da magnificência do papel materno, plenamente reconhecível para quem acompanha a obra do diretor em suas diversas variações estilísticas e indefectivelmente encarnado na figura da empregada Marília (Marisa Paredes, mais uma vez, em estado de graça interpretativa), que, num sobressalto de genialidade vulgar, admite que possui loucura em suas entranhas, a fim de explicar os comportamentos psicóticos de seus dois filhos, um francamente perseguido pela lei [Zeca (Roberto Álamo), traficante de drogas na infância e ladrão de joalheiras na idade adulta] e outro coroado pelo poder e pelo dinheiro (Robert Ledgard, o cirurgião vivido com charme e elegância por Antonio Banderas).
Nesse sentido, há de se aplaudir de pé a impressionante cena final, emocionalmente elíptica em seu estágio máximo, quando Vicente, transformado definitivamente em Vera Cruz (Jan Cornet, na versão masculina; e Elena Anaya, na versão feminina) confessa a sua mãe (Susi Sánchez) quem, de fato, ele/ela é. O resto é um clímax ‘fora-de-campo’ impregnado por sobressaltos pulsionais e afetivos como somente este diretor espanhol é capaz de urdir!
Supondo que toda esta exaltação emotiva não seja suficiente para emoldurar esta suma experiência cinematográfica, convém adicionar mais algumas observações elogiosas a partir de sua composição técnico-formal: as emulações do perturbador e belo trabalho da artista Louise Bourgeois, elogiada nominalmente por Pedro Almodóvar nos créditos finais; as evaginações enredísticas que demonstram o insuspeito domínio hipertextual de Pedro Almodóvar sobre o roteiro que escreveu a partir de um romance de Thierry Jonquet; a montagem geométrica habitual de José Salcedo; a direção fotográfica deslumbrante de José Luís Alcaine; e as canções complementares da já citada Concha Buika, de Chris Garneau e do músico dinamarquês Anders Trentemøller. Porém, a surpreendente introdução de elementos eletrônicos na trilha sonora compota basicamente por instrumentos de corda de Alberto Iglesias leva o espectador a refletir sobre o quanto mensagens, discursos e reflexos formais minuciosamente engendrados mesclam-se neste filme acachapante, que, conforme antecipado, deslumbra qualquer pessoa que, nalgum momento de sua vida espectatorial, demonstrou-se apaixonado por qualquer elemento da cinematografia almodovariana.
Afinal de contas, muito mais do que simplesmente contar uma estória ou assumir uma postura moral sobre um mundo de falsas aceitações sexualistas, o diretor deste filme prova, aqui, que envelhecer e servir-se intimamente das formas expressivas essencialmente contemporâneas não são deméritos ativistas, mas, pelo contrário, progressões autorais de um ‘corpus’ em que a permissividade sempre foi regra, inclusive no que tange ao fundamento constitutivo e (ir)racional da liberdade em seu estímulos desobedientes.
Wesley Pereira de Castro.
Diante da excelência de Almodóvar um ótimo texto e se detivesses num desdobrar sobre questões éticas-morais e políticas seria de uma lindeza e tanto. deste carinha tu entende!
ResponderExcluirEu ME VI NAQUELE FILME, Jadson! Me vi, juro! Tive que defendê-lo, diante de tudo... Escrevi como se estivesse esquizofrênico e me imaginando o que diria num debate com Vanessa... Êtcha filme surpreendente do cabrunco! Ele pondo a própria obra no divã, no alçapão, na vitrine... Gênio, gênio, gênio! (WPC>)
ResponderExcluirTô em transe ainda... Almodóvar é o meu favorito dos favoritos!
ResponderExcluir