terça-feira, 26 de junho de 2012

“SHAME” (2011, DE STEVE McQUEEN) E AS CRISES DE CONSCIÊNCIA ADVINDAS DA MORALIZAÇÃO PORNOGRÁFICA

Numa entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo e publicada em 14 de março de 2004, o filósofo Gilles Lipovetsky associa o recrudescimento da pornografia na contemporaneidade a um sentimento de excrescência decorrente da perda dos limites da tradição representada principalmente pela religião e pelo Estado. Segundo o filósofo, o que ele define como hipermodernidade (“uma modernidade que não tem verdadeiramente nenhum modelo concorrente ”) é baseado numa cultura paradoxal que combina, simultaneamente, o excesso e a moderação, a partir de uma hipertrofia dos três principais elementos que constituíram a modernidade, desde o século XVIII.

No relato de Gilles Lipovetsky, estes três pilares são o indivíduo, o mercado e a dinâmica tecnocientífica, cuja ultrapassagem dos limites conduz “a uma espiral vertiginosa de harmonia e hipercompetição, recato e hiperpornografia”, conforme sintetiza o entrevistador Marcos Flamínio Peres e que explica um contexto em que “existem comportamentos inteiramente excessivos, como a pornografia, em que absolutamente tudo é permitido, embora ao mesmo tempo a vida sexual seja muito moderada”. 

Na entrevista em pauta, os filmes “Ken Park” (2002, de Larry Clark & Edward Lachman) e “Na Captura dos Friedmans” (2003, de Andrew Jarecki) são apontados como exemplos do paradoxo cultural explicada pelo filósofo. Dirigido por um cineasta britânico que chamou a atenção da imprensa em seu longa-metragem de estréia por causa do inteligente uso das privações fisiológicas de um indivíduo como elemento discursivo , “Shame” (2011, de Steve McQueen) é um corolário hodierno do panorama contextual definido pelo filósofo francês. Não obstante ter causado polêmica por causa da nudez dos atores e do controverso tema (a compulsão sexual encarada como um vício), “Shame” é um filme que incomoda e perturba justamente por seu moralismo, em que os componentes técnicos (principalmente, a trilha sonora condutiva de Harry Escott) realçam a pletora de seqüências em que o protagonista sucumbe a impulsos sexuais que não o saciam, mas que, para aquém desse aspecto, são revestidas de uma aura de periculosidade que reitera que “o uso do corpo está subordinado a uma gramática de comportamento sexual ”.

No filme, Michael Fassbender interpreta Brandon, um homem financeiramente bem-sucedido, mas cuja vinculação empregatícia não é suficientemente identificada, que gasta a maior parte de seu tempo ejaculando: no primeiro plano do filme, vemo-lo deitado, inerte, sobre uma cama forrada com lençóis azuis onde há indícios de que ele fizera sexo recentemente. Em seguida, ele é mostrado masturbando-se durante o banho, ato que voltará a repetir no banheiro da empresa em que trabalha, depois que descobre que seu computador fora levado para uma manutenção preventiva. Antes de ir para casa, flerta com algumas mulheres num bar e, enquanto janta, assiste a um filme pornográfico, ignorando os telefonemas repetidos de uma mulher que, em seguida, saberemos se tratar de sua irmã.

Sissy Sullivan, interpretada pela atriz Carey Mulligan, por sua vez, é o contraponto comportamental fraterno de Brandon: enquanto ele reage de forma quase impessoal às tentativas de entrosamento social perpetradas pelas pessoas que estão ao seu redor (patrão, amantes, colegas de trabalho, uma vizinha a quem ajuda a abrir a porta antes de entrar no prédio em que vive, etc.), ela lhe suplica que a deixa ficar alguns dias vivendo em seu apartamento pois está fugindo de uma relação amorosa mal-sucedida, conforme Brandon descobre quando a ouve conversar com alguém ao telefone enquanto ele tenta assistir a um filme pornô antes de dormir.

Enquanto Brandon é organizado e atlético, Sissy é caótica e possui várias cicatrizes no pulso, decorrentes de tentativas frustradas de suicídio, às quais, meio embriagada, ela atribui ao aborrecimento contínuo que experimentara na adolescência, quando perguntada sobre as mesmas pelo patrão de Brandon, interessado em transar com ela depois que se impressiona com a versão melancólica da canção “New York, New York” que Sissy interpreta e que, apesar de emocionado, seu irmão finge não ter prestado atenção. A convivência forçada entre o individualismo de Brandon e a dependência exacerbada de Sissy deflagra violentos desentendimentos entre os dois, acentuados quando ela flagra o irmão se masturbando no banheiro e quando ele a acusa de ter agido de forma promíscua por ter feito sexo com um homem casado, poucos minutos depois de tê-lo conhecido, não por acaso, o patrão de Brandon.

Numa cena bastante elucidativa sobre o tipo de julgamento moral que perpassa o filme, o parceiro sexual de Sissy repreende Brandon por encontrar uma grande quantidade de material pornográfico (contaminado por vírus cibernéticos, acima de tudo) no disco rígido de seu computador, enquanto conversava com seu filho pequeno através do Skype, de modo que as reações de Brandon – até então, aparentemente inemotivo – remetem diretamente ao título do filme, estranhamente não traduzido no mercado exibidor brasileiro, como se fosse uma reprimenda, visto que a palavra vergonha é significativa da dificuldade na vivência social do erotismo, surgida exatamente da contradição desejo (prazer sexual) X proibição ”.

A coadunação discursiva do filme à idéia de que “toda decisão extrema implica a punição de expor o indivíduo a perigos que a insuficiência da técnica de vida escolhida como exclusividade traz consigo ”, acentuada quando conseguimos identificar Sissy e Brandon como pessoas que desempenham papéis conflitantes no mesmo problema da economia libidinal do indivíduo destacada por Sigmund Freud, em que “aquele que for predominantemente erótico dará preferência às relações afetivas com outras pessoas, aquele que for mais narcísico e autossuficiente buscará as satisfações essenciais em seus processos psíquicos interiores ” permite que seja detectada no filme uma técnica de relato que emite julgamentos de valor acerca dos comportamentos dos personagens, técnica esta atrelada a um discurso moralizante.

 O que foi afirmado anteriormente acerca da trilha sonora como elemento que censura os comportamentos dos personagens pode ser percebido com mais vigor na cena em que Brandon penetra numa boate ‘gay’, depois de ter sido espancado pelo namorado de uma mulher que ele cortejou de modo ofensivo, e é abordado sexualmente por outro homem, que se ajoelha diante dele e pratica felação. Durante a seqüência, a trilha sonora adota uma dramaticidade ‘in crescendo’, que se sobrepõe à música eletrônica que está sendo executada na boate, conferindo à mesma, fotografada em vermelho-néon, um aspecto moralista de “descida ao inferno”, num viés que é esteticamente similar ao comumente adotado pelo diretor Gaspar Noé, em especial, no filme “Irreversível ” (2002).

Tal cotejo faz com que seja relevante retomar o texto de Gilles Lipovetsky, que define a sociedade hipermoderna como sendo aquela em que as formas coletivas “são reguladas tendo em vista o indivíduo, sua liberdade, suas escolhas, seus gostos ” e, principalmente, seus projetos. Nesse sentido, a relação de extravasamento entre o individualismo (convertido em hedonismo), a subsunção mercadológica e a dimensão tecnocientífica é patente em diversas cenas do filme, como por exemplo: quando Brandon e uma colega de trabalho intentam um encontro romântico num restaurante, mas são interrompidos o tempo inteiro pelo garçom; quando Sissy aproxima-se de Brandon para pedir um abraço, enquanto ele assiste a um desenho animado na TV, e, de repente, começam a discutir novamente, sendo que toda a seqüência é enquadrada a partir das costas de ambos os atores, enquanto a televisão é mostrada desfocada em segundo plano; a já mencionada interlocução familiar entre o patrão de Brandon e seu filho pequeno através de um sistema de videofone; e o desdém material demonstrado pelo protagonista quando joga fora seu ‘laptop’ em meio às pilhas de revistas e fitas pornográficas depois que se sente culpado ou ameaçado pela presença intrusiva e afetiva de sua irmã.

Ou seja, o modo como os personagens interagem com os aparatos tecnológicos ao redor não apenas confirmam o prognóstico lipovetskiano, ao mesmo tempo em que demonstram novas configurações de como “fatores constitucionais próprios e influências do meio atuam em conjunto na formação do supereu e na origem da consciência moral ”.

Ao final do filme, é operada uma mudança de consciência no protagonista, decorrente justamente da reiteração dos comportamentos autopunitivos de sua irmã, que surge com uma espécie de antagonista. Interessante é que, malgrado o filme ter enfrentando problemas de classificação por causa do excesso de sexo e nudez , que talvez expliquem o porquê de o filme não ter sido indicado a algumas premiações cinematográficas mais conservadoras – não obstante os panegíricos recebidos após a sua bem-sucedida exibição no festival de Cinema de Veneza – validam outra observação levada a cabo por Gilles Lipovetsky, que admite que os produtos midiáticos tornaram-se muito mais radicais em sua exposição da sexualidade e da violência nos últimos anos, mas “ao mesmo tempo, existem normas, como o respeito aos direitos do homem, a saúde e o amor, que não deixaram de existir e que continuam a orientar o comportamento de grupos e indivíduos ”.

 Apesar do desfecho em aberto do filme e comungando exemplarmente com as definições externadas pelo filósofo francês, “Shame” contem em seu título oportuno um elemento que o atrela a uma esfera de repugnância, em que a necessária transgressão da sexualidade distancia-se de uma pretensão sensação de liberdade para chafurdar no isolamento condenatório, de modo que como bem destaca Sigmund Freud, a hostilidade percebida entre os desenvolvimentos individual e cultural no que tange às funções sociais da repressão sexual não é uma mera oposição irreconciliável entre os instintos primordiais de Eros e Tânatos, mas “significa uma disputa na economia da libido, comparável ao conflito pela divisão da libido entre o eu e os objetos, e emite um equilíbrio final no indivíduo ”, que é justamente aquilo que mais dificulta – no sentido cultural do termo – a sua vida.

Quando é perguntado se as mídias ocupam um espaço deixado pela crise de legitimidade da sociedade hipermoderna, Gilles Lipovetsky afirma que “a tradição é a repetição, enquanto a mídia, em tese, retransmite uma informação para fazer mudar ”. Acrescentando que a época atual dificulta a identificação das “leis da história”, o filme “Shame”, cujo roteiro foi escrito pelo próprio diretor Steve McQueen e pela teatróloga Abi Morgan assume um esquematismo enredístico bastante evidente, para além das pretensas renovações formais associadas ao pequeno porém incisivo currículo cinematográfico do diretor. E, nesse sentido, o moralismo punitivo que advém do filme é tanto um sintoma dos tempos hodiernos quanto uma conseqüência a ser reproduzida com propósitos mercadológicos bastante definidos.

Wesley Pereira de Castro. 

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