segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VOU RIFAR MEU CORAÇÃO (Brasil, 2011). Direção: Ana Rieper.

O primeiro entrevistado do filme descreve resumidamente uma desventura com sua esposa e, a fim de metonimizar o que sente ao narrar o fato, traz à tona uma canção interpretada pelo cantor Amado Batista, cuja letra diz o seguinte: “era uma tarde tão triste quando ela partiu/ Na curva daquela estrada, ela, então, sumiu/ Era como folha seca, que vai onde o vento quer/ Me enganei quando dizia tenho uma mulher”.

Tal seqüência, precipitadamente conduzida, dá a tônica do filme: a diretora intentará estabelecer um panorama observacional acerca dos mecanismos de identificação tramática que arregimentam a vendabilidade da chamada “música brega” no Brasil, principalmente na região Nordeste, já que a maior parte do filme foi filmada em cidades sergipanas, alagoanas e pernambucanas.

Ao contrário dos documentários tradicionais, a equipe técnica deste filme não tem preocupação em identificar os depoentes ou as cidades que serviram como cenário (salvo durante os créditos finais), o que cria um desconforto inicial em espectadores dependentes de trâmites informativos para a fruição relacionada ao gênero. Além disso, o escopo escolhido pela diretora, roteirista e produtora Ana Rieper para a análise do fenômeno “brega” transita quase aleatoriamente entre canções que louvam o amor irrefreável e as litanias iracundas pós-traição, o que deixa entrever uma desorganização constitutiva elementar. Seria muito conveniente se esta aparente desorganização fosse um efeito proposital do filme, a fim de justificar o fato de que “toda pessoa apaixonada é ridícula”, conforme assevera o inspiradíssimo Odair José, mas, do jeito como foi apresentada, parece decorrência imprevista do excesso de confiança auto-elogiosa da produção.

Lançado e distribuído na esteira de um culto alternativo a canções que, na época em que foram lançadas, costumavam ser execradas pela crítica, “Vou Rifar Meu Coração” deixa-se deslumbrar pelos depoimentos colhidos e oferece pouco de efetivamente cinematográfico (no sentido formalmente concatenador do termo), sendo, porém, inequivocamente interessante por causa da riqueza popular contida nas histórias de vida coletadas. O plano móvel em que a câmera adentra uma residência humilde para, de repente, focalizar o concerto de Amado Batista que está sendo reproduzido na televisão de última geração ligada numa estante escancara a autoconfiança promocional do filme, francamente desenxabido nas imagens paisagísticas que intercalam os depoimentos. Estes, entretanto, são amplamente permeados por fascínio e identificação: da confissão de uma mulher que alega que, se fosse consumidora renitente de bebidas alcoólicas, só sairia dos bares aos trancos, em decorrência de sua adesão irrefreável aos desígnios da luxúria, à simpatia conformada dos casais que se conheceram em bordéis, passando pelas emocionadas (mas subaproveitadas) declarações do romântico e ex-viciado em cocaína Nelson Ned, a maioria das pessoas entrevistadas neste filme adquirem facilmente a compaixão da platéia, visto que suas reações – eventualmente permeadas por ingênuas contradições – aos truísmos amorosos confirmam mais uma vez um inteligente comentário de Odair José, que alega que “tanto um pedreiro quanto um médico sentem a mesma dor de amor: a diferença é que um vai chorar no cabaré e o outro na varanda de seu apartamento à beira-mar”.

 As duas laudatórias citações a Odair José deixam patente o quão rica foi a sua participação no filme, acrescentando importantíssimos detalhes discursivos, como, por exemplo, quando ele menciona a rejeição inicial por parte das gravadoras à sua intenção de gravar uma música sobre um homem que se apaixona por uma prostituta (“Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”) e as dificuldades taxonômicas na definição de “Música Popular Brasileira”, que encontram uma reverberação mais agressiva nas colocações de Agnaldo Timóteo, que, se incomodam inicialmente por causa da prepotência comparativa, logo conquistam a nossa adesão por causa de sua corajosa confissão de carência homossexual, tão digna de figurar entre as canções bregas quanto qualquer outra forma de amor. Nesse sentido, é muito bonita a seqüência em que dois homens são mostrados se beijando enquanto dançam sozinhos numa casa de espetáculos periférica, ao passo em que a entrevista que a diretora conduz com a travesti Marquise é ridiculamente contaminada por pleonasmos interrogativos. Mesclando, portanto, situações deveras oportunas (toda a seqüência envolvendo o prefeito de Monte Alegre que descreve, sem rodeios, os reveses associados à convivência paramarital com duas mulheres, em duas casas distintas, bem como a exibição de fotos dos casais interseccionados, ao som da antológica “Sonhos”, de Peninha) com momentos absolutamente oportunistas (a entrevista com Elvis Pires e as lamentavelmente parcas declarações do seminal Lindomar Castilho), “Vou Rifar Meu Coração” chama a atenção mais por seu conteúdo dissociável da forma fílmica que por sua elaboração artística propriamente dita.

Afinal de contas, neste quesito, ele é tão subsumido aos estratagemas comerciais quanto alguns dos estabelecimentos focalizados como lugares de convivência (e consumo) dos personagens reais. Noutro contexto apreciativo, isto não seria um problema, mas uma espécie de exortação metalingüística ao entrosamento do filme com seu objeto de estudo. A conjunção simplória de intervenções cotidianas (uma mulher caminhando pelas ruas de uma cidade interiorana e sendo acompanhada de perto por uma câmera, focalizações de pores-do-sol, a participação pouco expressiva do recém-falecido cantor Wando) só denota a pusilanimidade do filme, quando comparado, por exemplo, com a grandiosidade estética de “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, de Karim Aïnouz & Marcelo Gomes), para ficar apenas num exemplo imediato. Ana Rieper talvez até seja bem-intencionada e/ou apaixonada pelo gênero brega, mas, neste filme, o que se destaca sobremaneira é a ambição de capitalizar méritos antropológicos com esta investidura proto-analítica. Infelizmente, ela parece se conformar com a superficialidade erroneamente atrelada ao seu tema.

Wesley Pereira de Castro.

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