A opção do diretor Sam Raimi – em colaboração com os roteiristas Mitchell Kapner e David Lindsay-Abaire – por não regravar o clássico “O Mágico de Oz” (1939, de Victor Fleming), mas, ao invés disso, basear-se na célebre série literária de L. Frank Baum e erigir uma preqüência do filme original, em que ficamos conhecendo os eventos que levaram o charlatão Oscar Diggs a ser conhecido como a grande personalidade que intitula um dos filmes mais famosos de Hollywood, foi bastante acertada.
Para além da irritabilidade ideológica adotada no enredo (digna de ser investigada com mais cuidado num parágrafo posterior), esta trama demonstra-se sagaz e meritória por pelo menos dois aspectos, ambos relacionados ao fato de que os personagens não assassinam os seus antagonistas: um diegético, explicado pela lei interna que impede os habitantes de Oz de matarem seus semelhantes, ainda que malévolos; e outro narrativo, que, a fim de manter a contigüidade com o filme de 1939, tornava obrigatório que as bruxas más permanecessem vivas ao final da história. Estes detalhes por si só não asseguram a qualidade elevada deste filme em relação a inúmeros produtos hodiernos congêneres, mas evidencia a possibilidade de um enfrentamento diferenciado na tendência aparentemente inevitável de incremento bélico nas historietas infantis convertidas em superproduções cinematográficas em que a exuberância visual (e, principalmente, digital) é mais importante que o produto fílmico em sua forma geral, reduzido a um mero avatar de efeitos visuais. “Oz: Mágico e Poderoso”, até mesmo pela imponência titular do ser humano que o protagoniza, percorre outras vias enredísticas, não obstante também incorrer em preocupantes mecanismos de legitimação simbólica do poderio político estadunidense ao redor do mundo.
Magistralmente interpretado por James Franco, o personagem principal deste filme peca por uma composição rasteira e imediatista de sua transformação positiva de caráter. Por mais que o ótimo ator seja exitoso em transmitir com franzires de sobrancelhas e sorrisos sarcásticos o oportunismo e as mentiras de seu personagem (mentiras estas que são redefinidas por ele como “os paralelepípedos da estrada da grandiosidade”), enquanto entidade actancial ele não é suficientemente convincente, sendo o maior prejudicado pela edificação moral forçosamente associada à principal produtora do filme, a Disney Pictures.
Não obstante este problema deveras evidente, as concessões vinculadas à configuração genérica infantil do entrecho não impedem que o roteiro seja inteligentemente espirituoso na constituição dos personagens secundários, destacando-se o maravilhoso macaco alado Finley (muito bem dublado por Zach Braff, que também está eficientíssimo e muito divertido como Frank, o assistente humano do mágico Oscar), a aparentemente frágil Bonequinha de Porcelana (dublada por Joey King, que antes aparece como uma paraplégica) e a futura bruxa má Theodora (Mila Kunis, a mais tipificada dentre os atores citados até então). Os chistes que interpelam os feitos heróicos do protagonista dotam o filme de uma sensibilidade dramatúrgica que não se reduz aos esquemas narrativos tradicionais dos contos de fada, vide a cena em que Finley imita sonoramente um bovino para que Glinda (Michelle Williams, encantadora) possa ser distraída a fim de que Oscar roube a sua varinha de condão, antes de descobrir que, na verdade, ela é a bruxa boa da trama.
Obviamente, o principal chamariz do filme é a sua esplendorosa direção de arte, majestosamente captada pela fotografia de Peter Deming, mas o filme não se torna refém de seus atributos técnicos, contando com interpretações secundárias competentes (a caracterização de Rachel Weisz como a bruxa má Evanora, por exemplo), uma eficiente trilha sonora de Danny Elfman (que compõe em belo tema musical recorrente, mas que se torna um tanto desgastado em razão do excesso de acompanhamento incidental) e uma condução directiva destacável, que possibilita-nos reconhecer alguns traços comuns ao estilo paródico de Sam Raimi, principalmente durante os perigos que Oscar enfrenta no ciclone que antecede a sua chegada à Terra de Oz. Aliás, a seqüência em preto-e-branco que antecipa o fulgor cromático do reino encantado onde vivem bruxas, anões e símios voadores é magistral em seu enquadramento quadrangular que homenageia os filmes antigos, malgrado alguns elementos pirotécnicos ultrapassarem propositalmente os limites enegrecidos do quadro, adiantando a impressionante extensão de tela que constataremos em seguida.
As situações que nos apresentam ao caráter lascivo de Oscar (seu charlatanismo, suas paqueras freqüentes e seus delírios de grandeza) são bastante pertinentes na delineação de seus intentos mágicos, tanto no que diz respeito a preferências objetais elementares (o instante em que ele cola uma figura caída numa máquina primitiva de projeção imagética, que prenuncia o seu auxílio interventor ao encontrar a Boneca de Porcelana desmembrada) quanto a ideais profissionais, não sendo nada casual que ele prefira o cinetoscópio edisoniano ao cinematógrafo lumiereano (apesar de este último ser muito mais propenso à prestidigitação que o instrumentalismo do primeiro) e que, aos poucos, percebamos que ele abandona as ilusões de bondade em prol da persecução da grandiosidade em detrimento das ilusões de grandiosidade em prol da consecução de sua bondade inequívoca. Ainda que estes aspectos sejam previamente anunciados e identificados, quando os mesmos são redimidos ideologicamente na forma de um subtexto que apresenta o Cinema como ferramenta adequada para convencer os espectadores a tomarem partido diante de uma guerra, o filme escancara o seu viés legitimador da política armamentista do país que o concebeu artisticamente.
Por mais que a sobrevinda conclusão moral do filme seja a de que as pessoas já possuem aquilo que mais buscam (o que já estava contido no original flemminguiano, aliás), de modo que o poderoso e profético Mágico de Oz apenas concederá aos seus pedintes as conseqüências desta percepção (confessando a Bailey que é seu amigo, oferecendo à Boneca de Porcelana um sucedâneo familiar que já era percebido como tal, concedendo um sorriso plástico ao emburrado assecla interpretado pelo diminuto Tony Cox, etc.), a cena em que o pé de Glinda pisa por acidente na alavanca que projeta amplificadamente o beijo que ela troca com Oscar assume-se como um grande elogio à continuidade do financiamento evasivo das produções hollywoodianas. A interrupção provisória da cena de dança dos Munchkins, a já mencionada conversão forçada de Oscar ao altruísmo inato e a péssima canção (“Almost Home”) que Mariah Carey interpreta durante os créditos finais são aspectos que corroboram este elogio, enobrecendo os elementos espetaculosos do filme, que, segundo o que se pode deduzir, não apenas providenciam diversão mas também engrandecem o público pagante enquanto potencialmente pertencente a uma nação unificada que, assim continuando, está apta a enfrentar com galhardia quaisquer perigos e/ou oponentes que se apresentem contrários ao seu projeto nacional.
Se, por um lado, “Oz: Mágico e Poderoso” é bastante superior, em forma e conteúdo, a franquias pseudo-medievalistas ou super-heroícas contemporâneas, por outro, ele sucumbe aos mesmos valores doutrinários e anglo-colonizadores que as balizam. Isso não o torna desmerecedor do reconhecimento consciencioso de suas virtudes, mas é um filme que precisa ser visto com cautela, posto que, (in)felizmente, não quer ser lembrado apenas por seus méritos cinematográficos: é ótimo, mas, ao mesmo tempo, perigoso por nos enganar tanto quanto ludibria os seus personagens, na preservação da alegada garantia do bem-estar comunal.
Wesley Pereira de Castro.
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