Afastado do cinema há alguns anos [seu último filme fora o premiado e ainda não-visto “No Meio da Rua” (2006)], muito se especulou acerca deste retorno de Antônio Carlos da Fontoura à direção. Consagrado por conta de seu retrato cru da marginalidade carioca em “A Rainha Diaba” (1974) e pelo erotismo ousado de “Espelho de Carne” (1984, a ser conferido em sua integralidade), muito se indagava acerca de uma injunção moralmente asséptica na biografia do cantor e compositor Renato Manfredini Júnior (1960-1996), conhecido nacionalmente como Renato Russo.
A primeira aparição de Thiago Mendonça como o personagem deixa patente o cuidado do ator em reproduzir com a maior similaridade possível os tiques e afetações do célebre vocalista da banda Legião Urbana. Se não se pode atribuir ao seu desempenho um adjetivo inferior a “ótimo” (e é evidente que o ator estava ciente de toda a responsabilidade de sua personificação e dos julgamentos que enfrentaria numa comparação com o artista representado), a recriação do contexto em que seus dotes musicais são evidenciados peca pelo didatismo comercial, no pior sentido da expressão: em mais de um momento, os diálogos assemelham-se a “caça-frases” de passagens famosas de letras posteriores do cantor, misturando versos de canções como “Eduardo e Mônica” e “Tédio (com um T Bem Grande Pra Você)” às divagações existenciais classistas do personagem principal, criando um efeito desconfortável para o espectador que conhece a fundo a trajetória do artista.
Ou seja, por mais interessante que seja o deslindamento dos fatos da juventude de um dos compositores mais importantes do País, as contradições produtivas inevitáveis à concepção deste enredo (vigiado de perto pelas pessoas que conheceram Renato Russo nesta idade e que ainda estão vivas – sua mãe Carminha à frente) explicam o tom enviesado de algumas cenas que se pretendiam emocionantes, boa parte delas relacionada às pulsões homossexuais “não fisiológicas” do biografado.
A personagem Aninha (vivida pela iridescente Laila Zaid), melhor amiga do protagonista, era um dos fatores que mais perturbavam a crítica antes do lançamento do filme, por conta da assumida conciliação biográfica de várias garotas que circundaram o cantor na adolescência, mas ela engendra motivacionalmente os instantes mais singelos do filme, como, por exemplo, quando Renato lhe dedica a letra de “Ainda é Cedo” num concerto organizado para apresentar a sua nova banda, a Legião Urbana, ao jornalista cultural Hermano Vianna (vivido por Leonardo Villas Braga).
A informação contida nos créditos de que “este filme é uma adaptação livre de eventos e personagens reais” talvez proteja o roteiro de Marcos Bernstein de ataques mais inveterados, afinal justificados pelo chamariz publicitário embasado numa fidedignidade composicional, a ponto de fazer com que Thiago Mendonça (de fato, muito parecido com o personagem real) cantasse – muito bem, aliás – quase todas as canções do Renato Russo que aparecem no filme. Neste sentido, vale acrescentar que o roteiro é eficiente em sua apresentação factual, mas, obviamente, se deslumbra nalguns aspectos (a composição do personagem sul-africano Petrus, vivido por Sérgio Dalcin, por exemplo) e exagera e/ou se equivoca noutros (com destaque para a reação depressiva de Renato à notícia da morte de John Lennon e para a sua errância melancólica depois que rompe com os companheiros do Aborto Elétrico pela primeira vez). A temida assepsia comportamental que irrompia no ‘trailer’ não é tão incômoda (o protagonista quase enceta um romance com outro rapaz, aliás), mas as dificuldades atreladas aos questionamentos morais, sociais e políticos que Renato Russo apregoava em Brasília foram mal exploradas.
Não obstante a eficiente pesquisa sobre a cena musical brasiliense do período – bastante interconectada, conforme o personagem de Renato Russo enfatiza na ótima cena em que oferece ao repórter Hermano um “mapa da promiscuidade dos músicos locais” – as intervenções dos familiares do protagonista eram xaroposas ao extremo, seja as cobranças automáticas de seu pai (horrivelmente interpretado por Marcos Breda) seja a assistência titubeante de sua mãe (apaticamente vivificada por Sandra Corveloni), passando pela ingenuidade irritante de sua irmã Carmem Teresa (Bianca Comparato).
No elenco, portanto, as contribuições mais interessantes aos ótimos desempenhos de Thiago Mendonça e Lara Zaid estão nas figuras de Bruno Torres (Fê Lemos) e Daniel Passi (Flávio, paixão platônica do protagonista), que interpretam os irmãos que eram membros da banda Aborto Elétrico e que, futuramente, integrarão o grupo Capital Inicial, cujo líder, o cantor Dinho Outro Preto, é brevemente mostrado no filme através de um ator jovem (Ibsen Perucci) com muita semelhança física em relação a ele, ainda que, enquanto cantor, a versão intrafílmica para “Música Urbana” fique bastante aquém do original.
Por mais delicado que seja admitir isso, dada a conjugação desagradável de fatores que torna “Somos Tão Jovens” um filme muito mais oportunista em sua exploração da figura do ídolo do ‘rock’ biografado que um tributo respeitoso à sua importância inquestionável no panorama musical brasileiro (visto que a Legião Urbana ainda é uma influência quase onipresente nos cursos que visam ao ensino do violão, além de ser uma banda bastante ouvida por adolescentes que nasceram após a morte do seu vocalista), este filme não é ruim.
O recorte temporal adotado no roteiro foi bastante bem-sucedido em sua reconstituição de aspectos menos conhecidos da vida pessoal de Renato Russo (que, felizmente, é retratado como um rapaz rico presunçoso e desarranjado, como parecia ser), por mais que soe novelesco em seus momentos mais pretensamente ‘punks’, como aquele em que o personagem principal troca a trilha sonora ‘disco’ de uma festa por uma fita cassete com suas músicas barulhentas londrinas favoritas do período.
A direção de Antônio Carlos da Fontoura se conforma à subserviência narrativa típica das cinebiografias [mais ou menos como fez no chistoso “Uma Aventura do Zico” (1998)] e, no máximo, opta por desgastados movimentos de câmera frenética nas cenas musicais, distanciando-se bastante do frescor demonstrado em suas obras anteriores.
Soando deveras anódino para os fãs longevos de Renato Russo e oferecendo uma empolgação comedida para as gerações que ainda estão descobrindo as consistentes variações temático-emocionais ao longo de sua carreira, o filme ao menos é funcional em seu detalhamento elementar ficcional, como, por exemplo, ao relacionar o pendor intelectual do cantor às leituras forçadas que fez quando se recuperava, confinado em sua cama, da cirurgia de quadril a que teve que se submeter depois que descobre que padece de epifisiólise quando sofre uma queda de bicicleta. Oficialmente, este é um aspecto negativo do roteiro em sua demarcação ideológica (Renato declara-se entediado de tanto ler e, apesar de se confessar um cinéfilo admirador de Jean-Luc Godard e Joseph Losey, não fala sobre cinema quando está fora de sua banheira), mas involuntariamente sincero em sua exposição dos interesses produtivos aos quais a história do filme (com H minúsculo, malgrado as pertinentes citações à ditadura militar) se subordina. A relação publicitária com o vindouro lançamento de “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio) que o diga!
Wesley Pereira de Castro.
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