Apesar de ter anunciado que não mais dirigirá filmes de terror [seu próximo projeto, após o lançamento de “Sobrenatural: Capítulo 2” (2013), será “Velozes & Furiosos 7”, previsto para ser lançado em 2014], James Wan, desde que conduziu o publicitariamente hiperestimado “Jogos Mortais” (2004) vem se dedicando a este tipo de produto cinematográfico, com exceção feita unicamente a “Sentença de Morte” (2007, ainda não-visto).
Malgrado quase sempre angariar bons resultados nas bilheterias, seus filmes costumavam ser defenestrados criticamente, por causa de suas limitações temáticas e de seu insistente atrelamento aos clichês contemporâneos do gênero horror, freqüentemente relacionados ao abandono da condução das tramas em detrimento de sustos isolados e possibilitados por atributos sonoros tão incômodos quanto altissonantes.
No caso de “Jogos Mortais” – que se tornou uma cinessérie monetariamente profícua e progressivamente piorada – o que mais incomodava, para além de seu mecanicismo genérico [visto que ele apenas deslocava alguns ‘leitmotivs’ do ótimo “Seven – Os Sete Crimes Capitais” (1995, de David Fincher)], era o seu viés moralizante, pois, no decorrer da trama, percebia-se que as intenções sádicas do vilanaz Jigsaw eram motivadas por um discurso senso-comunal de “elogio à vida”, sendo os personagens cruelmente assassinados descritos como indivíduos estultos que desperdiçavam solenemente o egrégio dom da existência. Nos filmes posteriores da cinessérie, esta inversão catequizante torna-se ainda mais exacerbada e contraditória, conforme se pode se perceber nas sinopses dos mesmos.
James Wan, entretanto, preferiu se envolver directivamente noutros projetos, sendo os mais notórios “Gritos Mortais” (2007, título nacional interesseiro para ‘Dead Silent’) e “Sobrenatural” (2010): o primeiro é uma fracassada tentativa de servir-se do pavor engendrado por brinquedos malévolos e o segundo, uma desmazelada reedição do tema da casa mal-assombrada, que começa muito bem, mas se engancha nas armadilhas do horror explícito. Não é um currículo deveras entusiástico, mas, ainda assim, “Invocação do Mal” (2013) passou a ser alvo de uma inaudita recepção elogiosa por parte dos críticos: parecia que o diretor tinha conjugado espertamente elementos dos clássicos “O Exorcista” (1973, de William Friedkin), “A Cidade do Horror/Terror em Amityville” (1979, de Stuart Rosenberg, não-visto) e “Poltergeist – O Fenômeno” (1982, de Tobe Hooper), e obtido êxito a partir de uma obra que tem na hibridez a sua maior originalidade. Dito e feito!
Por mais que o diretor incorra nos mesmos defeitos de seus filmes anteriores e que, nalguns pontos, a trama possua muitas similaridades com o prévio “Sobrenatural”, “Invocação do Mal” é assaz meritório, em mais de um aspecto: a excelente direção de fotografia de John R. Leonetti, elogiável desde a primeira seqüência, quando simula o aspecto de filmagem caseira para um filme utilizado numa palestra sobre infestações sobrenaturais proferida pelos protagonistas Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga, ambos ótimos), demonstra que, neste filme, os enquadramentos não estão apenas a serviço dos espantos somáticos – como infelizmente acomete o desenho de som – preocupando-se sobremaneira tanto com os detalhes reconstitutivos de época (o filme se passa no início da década de 1970) quanto pela concatenação dramática dos eventos familiares que balizam o enredo.
Além de ser um filme de terror – logo, impregnado pela violência advinda de entidades fantasmagóricas – “Invocação do Mal” é também uma espécie de melodrama, em muito favorecido pelo fato de os susomencionados Ed e Lorraine Warren serem personagens reais. Nesse sentido, a opção dos irmãos roteiristas Chad e Carey W. Hayes por alternar o cotidiano do casal Warren, em seu enfrentamento diuturno de avantesmas mal-intencionados, com as dificuldades de realocação doméstica da numerosa família Perron (comandada por um desenxabido Ron Livingston e pela muito expressiva Lili Taylor), assombrada por espíritos atormentados e suicidas, é excepcional, adequadamente distinta do sobejo de produções imitativas lançadas ano após ano pelos produtores hollywoodianos.
Se, de fato, o roteiro é bem-sucedido na maneira precisa como constrói os seus personagens, ele peca (inclusive no sentido religioso do termo) por confundir-se com propaganda escancarada da Igreja Católica, visto que os desígnios de fé e os dotes paranormais que possibilitam que o casal Warren – devidamente apoiado (e quiçá sustentado) pelos padres locais – esteja apto a lidar com os seus antagonistas espectrais não correspondem ao que é promulgado pela doutrina redentora da referida igreja, sendo as menções à Santíssima Trindade (a adesão mística entre as manifestações paterna, filial e espiritual de Deus, segundo as Escrituras Sagradas) utilizadas como meros estratagemas oportunistas de eliminação profissional de infestações fantasmáticas. Assim sendo, crucifixos, recipientes com água benta e orações em latim são utilizadas desleixadamente e de forma fetichizada, ignorando-se a preparação intencional e benevolente de seus manipuladores, exceto pela reiteração da declaração feita por Ed a Lorraine, em sua noite de núpcias, depois de deixar patente a vontade de transar com ela repetidas vezes: “Deus não nos reuniu por acaso. Temos uma missão a cumprir no mundo!”.
A reiteração xaroposa desta assunção missionária, bem como os ‘flashbacks’ de alegria praiana irrestrita da família Perron, incomodam o espectador por conta da rejeição do estilo realista de apresentação dos fatos até então adotado, que, do meio para o final, soa tão dialogisticamente melindroso quanto o de uma telenovela. Mas nada que comprometa o ótimo trabalho do elenco, incluindo o infantil (Kyla Deaver, intérprete da pequena April, é encantadoramente eloqüente).
Em relação à organização de seus componentes técnicos, vale reafirmar a maturação de James Wan como realizador, valendo-se de uma maravilhosa direção de arte e da sustentação hábil da trilha musical de Joseph Bishara, que, apesar de um ou outro excesso (vide a cena em que um acorde estrondoso ecoa quando uma lâmpada estoura na primeira vez em que Carolyn Perron desce sozinha ao porão de sua casa), dialoga funcionalmente com os instantes brilhantemente silenciosos do filme e com as canções escolhidas para serem executadas em momentos mais descontraídos (destacando-se a opção por utilizar a recente “In The Room Where You Sleep”, do grupo Dead Man’s Bones, que, apesar do anacronismo, combina muito bem com o clima tétrico da trama).
As cenas envolvendo a cadela Sadie (Dusty, na vida real), posteriormente encontrada morta num momento de bastante tensão familiar, a tentativa de plano-seqüência no momento em que a família arruma a mobília na casa nova e o assustador clímax do exorcismo de Carolyn demonstram o quanto James Wan evoluiu em relação aos seus filmes precedentes, adquirindo uma percepção orgânica do terror (vide a sutileza da cena que antecede os créditos finais, quando um brinquedo supostamente invocador de espíritos começa a funcionar repentinamente e, quando pára, nada acontece, exceto a irrupção de uma grave nota musical), que, se assim pode ser definido, não é apenas por causa da exorbitância de efeitos sonoros e visuais, mas em função da persistência do mal nos terrenos de convivência humana, muito bem sintetizada na comparação com o desconforto que aflige alguém que pisa num chiclete: “quanto mais assustada fica uma pessoa, mais as assombrações a perseguem”.
Neste sentido, o conluio este tipo de trama e os fitos institucionalmente religiosos é bem-vindo, mas não de forma apelativa e propagandística como foi posto em prática aqui, já que a explicação pretensamente científica para a impregnação de avejões nos relatos verídicos da bruxa Bathsheba e da boneca Annabelle é repleta de necedades sentimentalóides. Mesmo defeituoso em razão da perversão proposital de seu entrecho, “Invocação do Mal” merece aplausos (e sustos) por sua engenhosidade!
Wesley Pereira de Castro.
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