terça-feira, 27 de outubro de 2020

FAZ SOL LÁ SIM (2018, de Claufe Rodrigues)

 

Ainda nas seqüências iniciais, quando o documentário apresenta-nos ao município alagoano de Marechal Deodoro, alguns depoimentos chamam a nossa atenção: num deles, um senhor comenta que em cada rua da cidade há pelo menos um músico; noutro, dois atores compartilham uma tradição local. Segundo eles, quando nasce uma criança na redondeza, os pais jogam um pouco de barro na parede. "Se cair, ele será pescador; se ficar grudado, ele será músico". A depender do que é mostrado no filme, muito barro deve ter ficado grudado nas paredes... 


Analisando de maneira bastante divertida os métodos de ensino - e, por extensão, de convivência social - utilizados pelas sociedades filarmônicas da cidade, o documentário estabelece de maneira sensível as diferenças entre cada uma delas: há a que não tem receio de incorporar músicas contemporâneas ao acervo; há a mais tradicional, em que até mesmo os cabelos dos partícipes são supervisionados e quem tiver tatuagem não pode participar; há aquela em que o maestro leva os seus protegidos em casa... Cada qual à sua maneira, essas organizações musicais amparam os jovens nordestinos, que vivem numa das regiões litorâneas mais bonitas do País. O que, infelizmente, não assegura-lhe melhores condições de trabalho ou oportunidades rentáveis: o sonho da maioria deles é ingressar na banda da Polícia Militar, mas pouquíssimos conseguem atingir este objetivo. Os casamentos precoces surgem como provedores de certo alento, para quem não consegue evadir-se da cidade ou progredir musicalmente... 


Num estratagema acertado, o diretor - com formação jornalística e experiência consagrada na emissora GloboNews - concede direito de voz aos mais diversos personagens, desde o maestro que confronta o depoimento de um colega, que alega que não mais haver rivalidade entre os músicos, em sua maioria adolescentes, até o senhor aposentado que afirma não ter enriquecido, mas agradece sorridentemente pela vida que a Música concedeu-lhe, malgrado a sua intensa rotina de trabalho. No terço final, o filme entrevista o fundador da banda de pífanos Esquenta Muié (que, infelizmente, falece durante o processo de finalização do documentário) e o célebre Nelson da Rabeca, que chegou a receber uma estátua, em sua homenagem, numa praça central de Marechal Deodoro. Porém, esta é comumente vandalizada. Por qual motivo? Talvez, porque ele e sua esposa não sejam nascidos naquela cidade e tiveram uma trajetória bastante nômade, "vivendo como ciganos", como ela afirma. O que não diminui a valorização de seus méritos culturais, reconhecidos até mesmo internacionalmente, como ele faz questão de frisar. 



Por causa do currículo profissional do seu realizador, o documentário possui um caráter de reportagem estendida, na maior parte de sua extensão. Mas é sempre agradável de ser visto, ainda que alguns relatos comovam-nos por sua dramaticidade inevitável: a despeito de sua riqueza musical, o município é lancinado por privações governamentais e pelas dificuldades socioeconômicas inerentes à região. Isso explica o porquê de muitos de seus moradores eventualmente confundirem tradição com moralismo excessivo, sendo comuns as censuras ao comportamento das mulheres nas falas captadas. Um ex-militar reclama que, naquela lugar, "as meninas costumam perder-se muito cedo". O simpático marido de uma maestrina, por sua vez, declara que ela é uma excelente jogadora de futebol, mas "não fica bem para uma mulher casada continuar divertindo-se dessa maneira". Não obstante a temática musical ser anunciada desde o seu título espirituoso e poético, "Faz Sol Lá Sim" serve também como radiografia de apanágios históricos do Nordeste. É um registro sincero, portanto - e contagiante! 



Wesley Pereira de Castro. 

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