quarta-feira, 21 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: MOSQUITO (2020, de João Nunes Pinto)


     A cartela que, nos créditos finais, anuncia que este filme foi livremente inspirado numa história verdadeira, é quase redundante: são amplamente conhecidas as versões similares de brutalização associada à guerra, que trazem à tona o que os homens têm de pior diante daqueles que deveriam ser reconhecidos como os seus semelhantes. E, não obstante ter como referência a I Guerra Mundial, as imagens de batalha que aparecem neste filme explicitam sobretudo as conseqüências de conflitos interiores... 


    Iniciado em 1917, o roteiro apresenta-nos ao jovem Zacarias, que chega em Moçambique, a fim de defender a nação portuguesa. Enquanto soldados matavam-se na Europa, este garoto, com apenas 17 anos de idade, testemunhará mazelas traumatizantes. Do mesmo modo que o protagonista de "Vá e Veja" (1985, de Elem Klimov), ele envelhecerá mui precocemente, sendo vital para a transposição fílmica deste efeito a completa entrega do jovem João Nunes Monteiro à sua interpretação. Sendo quase dez anos mais velho que ele, traduz em olhares aflitos e abandonados todo o estupor de seu personagem, que tem qualquer vestígio de inocência dilacerado pelas múltiplas guerras que enfrenta. Desde a guerra inicial contra a autoridade paterna, relatada numa carta, que o levou a alistar-se no Exército, até a guerra vilanaz de colonização na África, que maltrata de maneira inclemente pessoas completamente alheias à disputa das grandes potências nacionais. A submissão dos moçambicanos, que carregam os soldados portugueses nas costas durante um desembarque, escandaliza-nos desde o começo: é um filme sobre o Mal, naturalizado por seres humanos que apregoam a equivocada superioridade de uma raça sobre outras. 


    Inicialmente absorto, Zacarias esforça-se para compreender as regras de respeito hierárquico que balizam o relacionamento entre os soldados. É ensinado a tratar os seus servos africanos como inferiores a animais de carga, meras coisas que se movem em benefício do homem branco. Tem a sua virgindade sexual questionada, e é orientado a logo "enfiar a minhoca na terra preta", numa piada de alto teor machista, que revela a falta de caráter dos seus comandantes. Até que ele vê-se abandonado em meio à selva...



     Daí para a frente, o filme obedece a um percurso deveras assemelhado ao de "Aguirre, a Cólera dos Deuses" (1972, de Werner Herzog): Zacarias age com bazófia quanto a tudo com o que se depara, mas logo sucumbirá ao desespero de rezas culpadas, em que pede perdão "por ter pecado em pensamentos, palavras, atos e omissões", conforme foi ensinado, sem necessariamente acreditar. Seus monólogos de autodescoberta contagiam a banda sonora, bem como as frases de efeito proferidas por um ermitão que o resgata: "devemos andar na Música, e não na Matemática. A primeira foi concedida por Deus aos homens, enquanto a segunda foi criada pelos homens para tentar explicar Deus". A convivência forçada que mantém com alguns africanos, após ser capturado por uma tribo composta apenas por mulheres, o obrigará a amadurecer.  Zacarias sobrevive, foge... Até que um novo encontro o induz, mais uma vez, a gabar-se de uma autoridade que não possui. E que não se sustentará nem mesmo com o exercício da força, do poder de matar via empunhamento de uma metralhadora!



    Muitos dos efeitos alucinantes deste filme devem-se à perfeita confluência entre seus elementos técnicos: a magnífica fotografia de Adolpho Veloso, eventualmente embaçada nas laterais, e o esplêndido desenho de som tornam-nos cúmplices dos sentimentos atordoados de Zacarias, que vaga entre o embasbacamento ecológico e o ódio imputado por seu treinamento bélico. A trilha musical utiliza sons eletrônicos que reforçam o caráter transeúnico da imersão do personagem num ambiente sobremaneira inaudito. Até que ele constata, escandalizado, que a guerra para a qual foi convocado acabou...



     No desfecho, o filme é quase tautológico na exposição desumanizadora, que, conforme percebemos, poupou Zacarias, em comparação com outrem. Seu comandante diz que ele não viu o suficiente da brutalidade da guerra e que, por causa disso, seria incapaz de compreender o que os demais soldados enfrentaram, tentando explicar assim a malevolência de seus atos cotidianos, já em contexto "oficial" de paz. Fotografias reais da colonização de Moçambique por Portugal aparecem na tela, situando historicamente os eventos e forçando-nos a admitir que aquilo ainda continua a acontecer... As guerras não acabam: são apenas narrativamente transferidas! 



Wesley Pereira de Castro. 

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