quarta-feira, 14 de julho de 2021

Ecrã: DESAPRENDER A DORMIR (2021, de Gustavo Vinagre)


 A metalinguagem e a autoexposição são recorrentes na filmografia de Gustavo Vinagre, um dos cineastas mais criativos do cinema brasileiro contemporâneo. Se, em seus curtas-metragens, as fronteiras entre situações do cotidiano e imersão poética (e/ou pornográfica) são abolidas, em seus longas-metragens documentais, a predominância das entrevistas entretenedoras convida o espectador à reprodução elegíaca do que é narrado enquanto conjunto de depoimentos sobrevivenciais, geralmente atravessados pela noção de transcendentalidade. Neste filme mais recente, a ficção é ostensiva: o diretor aparece como ator, mas seu personagem chama-se Flávio; seu companheiro Caetano Gotardo assume a alcunha de José. O primeiro é um editor de vídeos de sexo explícito que dorme mal e, progressivamente, perde o tesão; o segundo é um astrofísico que também dorme mal, mas parece cada vez mais excitado. Os diálogos entre eles exporão uma situação de crise: como resolvê-la? Ou melhor: para que resolvê-la?



Entremeando os flagrantes do convívio deste casal, acompanhamos as intervenções de dois hipnólogos concorrentes: um francês e presunçoso; outro brasileiro e antenado. Este segundo, apelidado Hypnos (Carlos Escher), apregoa que "o povo livre é o povo que dorme plenamente". Ressurge diversas vezes ao longo da projeção, funcionando como uma espécie de consciência estendida dos personagens - ou induzida pelos problemas experimentados por eles. Defende a necessidade de "comer, no lugar de nutrir-se; conversar, no lugar de informar-se; dormir, ao invés de recarregar as baterias. Porque dormir é muito mais". Desde o início, portanto, o filme assume o seu viés terapêutico, sobremaneira associado ao contexto de quarentena pandêmica em que foi realizado, algo eminentemente depressivo, em razão da supressão dos encontros. Não por acaso, amigos e colaboradores habituais do realizador (Júlia Katharine, Marcelo Diorio) contribuem com falas que refletem seus estados atormentados de espírito. É inevitável, portanto, que sejamos imediatamente arrebatados pela tentação do acolhimento procedimental. O filme, porém, opera em chaves muito mais subversivas... 



Como o personagem Flávio é visivelmente afetado pela overdose de imagens sexuais que edita, passa a enxergar a si mesmo nas cenas eróticas ou, num contexto extremo, manipula imageticamente as transas que acontecem diante de si. Como se estivesse num consciente estágio onírico, em que perceber que está sonhando não o impede de levar o sonho à frente, mais ou menos como acontece na troca de experiências relatada à mesa por Flávio e José, numa seqüência em que percebemos uma animosidade afetiva entre ambos. Afinal, um deles parece sempre interromper o outro, ao passo que as bananas amadureceram demais... 


Pouco a pouco, um agente externo penetra na residência no casal, confluindo para o anseio emancipatório que fica em aberto no desfecho: é feito um convite para que também adiramos às rimas sensuais do poema sobre 'fist fucking' escrito por Flávio. De maneira cronenberguiana, ânus surgem em lugares inauditos, confirmando uma sensação expansiva que tem muito a ver com a Teoria da Projeção defendida por José, que alega que a simples imaginação converte algo em real. Grava em seu telefone celular áudios com sinopses de filmes antigos que evocam viagens para Marte. Vangloria-se de um excelente testemunho: "a semente da realidade começa como um sonho, na ficção"... Isso serve para o filme em si, que difere dos trabalhos anteriores de seu realizador, mas que contém as suas obsessões e traços de genialidade. É uma obra tipicamente hodierna, adequada a um contexto empregatício que obriga-nos a dormir e descansar cada vez menos! 



Dentre os elementos técnicos benfazejos do filme, destaca-se a exuberante direção de fotografia de Rafael Rudolf, que também comparece em cena, de maneira trifásica e erotógena. A trilha musical é suave, emulando canções de ninar. O roteiro requer mais de uma entrega actancial, a fim de que sejam deslindados os múltiplos elementos psicanalíticos, que imiscuem-se em diálogos sobre a importância patenteada de "arejar os dildos" ou na própria sigla titular (DaD), que emula o apelido anglofílico para "pai", figura presente no relato de sonho longevo trazido à tona por Flávio. Talvez o maior problema do filme esteja na sensação disrítmica que ocorre quando a tela é inteiramente ocupada pelos depoimentos dos pacientes voluntários de Hypnos, cujo comportamento midiático torna inverossímil a crença científica que José passa a dedicar-lhe em determinado momento da trama. Além disso, no terço final, quando não mais conseguem dormir efetivamente - nem ficarem acordados, de fato - os dois protagonistas convertem-se em protótipos desvirtuados de suas pulsões desejantes, a despeito das ofertas amplamente carnais do filme. Chegamos a esquecer que eles seriam eles (em sentido identitário), mais ou menos como ocorre num vídeo pornô, de tão mecânicas e incontroladas que passam a ser as suas ações. Seria isso proposital, um acento guattari-deleuzeano, mais uma denúncia do automatismo advindo da insônia (política)? Responder talvez seja menos importante que sentir: Gustavo Vinagre reinventa-se nos paroxismos de sua própria concupiscência. Muitíssimo obrigado por isso! 


Wesley Pereira de Castro. 

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