quinta-feira, 22 de julho de 2021

Ecrã: SAXÍFRAGAS, QUATRO NOITES BRANCAS (2021, de Nicolas Klotz & Élisabeth Perceval)


Por algum motivo, este filme está sendo divulgado como documentário em diversos festivais: talvez, porque a alcunha de "experimental" não seja suficiente para abarcar as intenções de seu percuciente itinerário de erros; ou porque o que ele traz à tona em suas citações urdidas seja ainda bastante contemporâneo. Afinal, é um filme que aborda a Peste que dizimou a população européia durante a Idade Média. É um filme que analisa as conseqüências do terror radioativo em pessoas comuns. É um filme que ousa apregoar que "não existe revolução sem artistas". É um filme que pergunta-nos, diretamente: "é infinitamente inútil ser bom?". 


As possibilidades de resposta a este último questionamento surgem nas frases e imagens superpostas de vampiros contemporâneos, que deambulam por vielas esvaziadas, sob a luz diáfana da madrugada. A fotografia é predominante cáqui, num tom amarelo-esverdeado que parece associar os dias hodiernos ao aspecto de doença, às características sociais diagnosticadas por Émile Durkheim [1858-1917]. Anomia e suicídio são mencionados, bem como as agressões perpetradas por fascistas, inclusive quando testemunhadas por animais famintos. Num texto derradeiro, comenta-se o ditado popular de que "o cachorro é o melhor amigo do homem", numa reflexão renitente sobre as intersecções entre amor e fidelidade. Lembremos que os cachorros obedecem: sentindo fome, eles alimentam-se de cadáveres humanos ou chegam mesmo a matar os párias apontados por seus donos. O filme é sobre isso, a servidão malévola, num cotejo com "a beleza da feiúra": é um documentário, portanto? 


A trilha musical de Ulysse Klotz - que é filho dos diretores - é sobremaneira lúgubre, taciturna, recheada de elementos góticos. O filme é impregnado de tristeza e lamentos, mas também destinado ao clamor combatente, que torna-se ainda mais evidente quando o negativo infravermelho apresenta-nos a uma reunião de ativistas que deliberam sobre a importância da revolta juvenil, com base nos exemplos percebidos na França, em maio de 1968. Trechos de discursos de Giovanni Bocaccio, Marguerite Duras, Allen Ginsberg, Pier Paolo Pasolini e do porta-voz zapatista Subcomandante Marcos, entre outros, escorrem pelas bocas e olhos tristes dos personagens. Às vezes, percebemos um sorriso, nos interstícios das dores quiçá afogadas em doses reiteradas de bebidas alcoólicas. Brilhante testemunho do ano em que o filme foi produzido: se não chega a ser um documentário em si, funciona como tal, na acepção godardiana do termo. Estamos diante de um panorama poético e político acerca do ano 2021, sob a égide de uma pandemia letal e da ascensão da extrema-direita ao poder em múltiplos países: eis o que é documentado, afinal!



Wesley Pereira de Castro. 

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