quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: CARRO REI (2021, de Renata Pinheiro)


Neste filme, a direção fotográfica de Fernando Lockett tem importante função semiológica: quando percebemos que o céu é verde e que as cores da bandeira brasileira contaminam (quase) todos os ambientes, admitimos que estamos no terreno fabular. Os jargões libertários e tecnocráticos que opõem-se nos diálogos acrescentam um aspecto alegórico à trama, que é ostensivamente atravessada por firulas. O que importa no roteiro é a moral da estória, adivinhada desde o início da invasão dos carros, tal qual ocorre em qualquer enredo infantil. A cineasta obtém êxito em seu interesse primário: ela comunica, ela faz com que os espectadores torçam pela sobrevivência do protagonista, o que desemboca na associada conscientização marxista, em viés tão didático quanto simplório. Trata-se de uma fábula, insistimos!


No início, a impressão de realismo apresenta-nos ao garoto Uno (Luciano Pedro Jr.), que nasce dentro de um carro de marca homônima, depois que uma manada de vacas obstrui a estrada. Tem-se aí o primeiro dentre vários embates entre condições rurais e potencialidades urbanas, que encontrarão no tio do protagonista, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), um porta-voz tautológico. Espécie de caricatura engelsiana, este personagem trabalha como mecânico e vocifera declarações muito inspiradas, sobre os instrumentos e ferramentas como extensões do corpo humano. Pouco a pouco, entretanto, ele converte-se num títere robótico e, quanto mais integrado às tecnologias ele se demonstra, mais simiescos tornam-se os seus comportamentos. Eis um paradoxo basilar da contemporaneidade!


Analisando-se o filme de maneira sintagmática, são abundantes os defeitos: as interpretações são pouco expressivas (quase artificiais), a dublagem dos carros é pouco convincente, o roteiro é lacunar e as situações são desenvolvidas de maneira apressada. Mas talvez esses sejam justamente os grandes trunfos do filme, no sentido de que conferem-lhe uma aura quase brechtiana: afinal, parece apregoar que a genialidade advém da idiotia e que, à medida que ela arregimenta-se, os pólos ideológicos contrários se equanimizam...


Múltiplas referências fílmicas são identificadas, bem como menções satíricas a pronunciamentos políticos de extrema-direita. É um filme que assume a celeridade, visto que esta característica tem tudo a ver com o objeto mais recorrente no enredo, os automóveis. A denúncia central diz respeito à linha tênue que detectamos entre as proclamações de justiça social e o marketing assimilacionista. Para tal, a sensualidade surge como grito de alerta, desde a trilha musical dançante de DJ Dolores à calcinha neon da ativista Mercedes (Jules Elting), que carimba um epíteto hebraico de mortandade sobre as estruturas laudatórias do patriarcado. Para além de toda a sua esculhambação intencional, que este filme semeie e frutifique: é urgente, inventivo e muito divertido! 



Wesley Pereira de Castro. 

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