No segundo dos três capítulos deste filme, acontece algo muito importante, em termos narrativos: depois de ser acusado de não possuir cultura literária e, portanto, ser incapaz de julgar adequadamente os sentimentos humanos, o assistente vegetariano Jakob (Alexander Herbst) pega emprestado o romance proustiano que sua patroa - por quem é apaixonado - lia e resolve, a partir daí, contar ele próprio a sua história (e a dos outros), imitando o fluxo de consciência do personagem central do hepteto "Em Busca do Tempo Perdido". Deste momento em diante, fica evidente que ele é uma espécie de alter-ego satírico do próprio realizador, ostensivamente erudito. Convertido em "mão invisível", numa situação posterior, alguém pergunta a Jakob como é estar morto. Sua resposta: "bem melhor, pois observo as pessoas com maior atenção, por não estar mais apegado à vida". É uma piada, claro - e também uma autocrítica!
Em verdade, o filme é repleto de chistes desse tipo, incluindo aquele que aparece antes mesmo dos créditos iniciais, quando um grupo de estudos marxiano acha equivocada a associação pretendida pelo autor entre os capitalistas e os vampiros. Há um interesse escuso nesta provocação, de modo que o roteiro não esconde a sua predileção pelas contradições de classe - marca registrada da ainda breve porém chamativa filmografia do diretor. Desde o início, sabemos que a bela e generosa Octavia (Lilith Stangenberg) é, de fato, tanto uma capitalista quanto uma vampira, não sendo casual que, em dado momento, ela demonstre-se frustrada em relação ao amor, pois crê que este sentimento baseia-se na presunção de interesses, o que, paradoxalmente, é o que salva-lhe a vida, quando os moradores da região passam a suspeitar que ela seja uma hematófaga legítima. Há evidências disso, mas uma filmagem ficcional ofertada como documental faz com que um inocente seja punido em seu lugar. As autocríticas do cineasta não param!
No primeiro dos capítulos, somos apresentados ao "cavalheiro sem classe" Ljowushka (Aleksandre Koberidze), que, por estar vestindo o figurino de uma produção eisensteiniana de que participou, é confundido com um barão. Mesmo revelando a Octavia as condições de sua fuga da Rússia - e admitindo que é um proletário -, ele é acolhido por ela, o que faz com que os anseios platônicos de Jakob sejam abandonados. Ex-camponês que converteu-se em refugiado político, este personagem trai os seus próprios ideais de juventude, ao conviver prolongadamente com os pequenos-burgueses que tanto odeia. O desfecho confere melancolia à comédia até então representada, fazendo com que reflitamos sobre as incongruências da contemporaneidade. Mui provocativamente, o diretor serve-se de inúmeros recursos propositalmente anacrônicos (a abertura de uma lata de Coca-Cola, numa mesa de jantar aristocrática em 1928, por exemplo) e de cacoetes estilísticos que já foram demonstrados no curta-metragem "Um Conto de Inverno Proletariado" (2014). Os títulos de seus filmes evidenciam as suas intenções paródicas, demonstrando que ele pesquisou a fundo os livros que cita. Um gênio em formação, talvez?
Wesley Pereira de Castro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário