As reminiscências autobiográficas de caráter romântico são comuns na filmografia desta diretora, de modo que os estratagemas metalingüísticos que desvendam-se com mais intensidade na segunda metade do filme surgem como elemento mui positivo, confundindo as interpretações "fáceis" que poderiam advir da sinopse e das platitudes actanciais dela decorrentes. Na trama, Tim Roth e Vicky Krieps são dois admiradores contumazes do cineasta Ingmar Bergman [1918-2017], que viajam para a ilha onde ele morou e realizou boa parte de seus filmes, a fim de escreverem ambos seus novos roteiros. Como eles reagem de formas diferentes aos clássicos bergmanianos, resolvem instalar-se em ambientes separados, para que possam dedicar-se integralmente às suas novas estórias. Em cada uma delas, o lugar onde estão surge como determinante para as crises relacionais que são instauradas: ele prefere abordar algum tipo de reconciliação através de um 'storyboard' com desenhos sexuais; ela lida com os traumas mal-superados de um romance antigo...
Enquanto tergiversam acerca de suas próprias diferenças comportamentais e profissionais, este casal esforça-se para captar a influência espectral do cineasta sueco, que é fetichizado tanto pelo roteiro quanto pelos capitalizadores de sua herança. Anthony, o marido, é um diretor famoso que está na ilha apresentando um de seus filmes e resolve participar de um "safári Bergman", aprendendo muitas curiosidades sobre a vida particular e as produções de seu ídolo; Chris, a esposa, aceita o convite de um recém-conhecido e passeia por lugares paradisíacos, insuficientemente explorados pelo turismo da região. Gradualmente, este companheiro (Hampus Norderson) aparece como personagem de sua trama metafílmica, interagindo com alguém que pode ser tanto uma versão mais jovem de si mesma quanto um avatar das lembranças juvenis da diretora. No roteiro que Chris escreve, Amy (Mia Wasikowska) viaja para a Ilha de Fårö a fim de participar do casamento de uma amiga, e lá reencontra alguém que amou na juventude, e por quem foi abandonada. A despeito do desconforto inicial, Amy e Joseph (Anders Danielsen Lie) logo entabulam um flerte adúltero, sendo este adjetivo mui enfatizado pelo egocêntrico rapaz. Ela sente-se abandonada outra vez, mas, como é cineasta, utilizará isso como fomento para um enredo posterior. É um filme dentro do filme dentro da vida convertida em roteiro?
Num momento avançado da trama, Chris e o intérprete de Joseph (chamado pelo seu nome verdadeiro) encontram-se na residência onde Ingmar Bergman morou e na qual, minutos antes, Hampus disse que "é um lugar onde é inevitável adormecer". Ao longo da narrativa, o cineasta sueco é convertido num mito onipresente, que é julgado por "ser tão cruel na vida pessoal quanto o era em seus filmes" e cujas obras são avaliadas enciclopedicamente por muitos figurantes e pela guia que conduz os turistas pelos cenários das mesmas. Apesar do imenso chamariz deste sobrenome, é como se a aura bergmaniana, neste filme, fosse muito mais destinada a não-cinéfilos, no sentido de que interessa predominantemente à diretora as obviedades comparativas e imitativas, como diz uma senhoria acerca da cama onde foi realizado "o filme que fez milhões de pessoas se divorciarem". O roteiro é impregnando de pleonasmos emocionais, que são compreensíveis e justificáveis para quem se identifica com eles, mas que, da maneira como são evidenciados, desembocam em dilemas pequeno-burgueses, como a preocupação recorrente de Amy em possuir apenas um vestido elegante, que é tão branco como deveria ser unicamente a vestimenta da noiva. É tudo muito previsível e desgastado no filme, com exceção reservada - em infinitésima escala - ao desfecho, onde um dos filhos legítimos de Ingmar Bergman faz uma figuração. E daí? Ao menos, a diretora é coerente em relação a si mesma!
Wesley Pereira de Castro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário