segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (2022, de Fábio Leal)


 Tal qual já se podia perceber em seus curtas-metragens, dois elementos possuem importância central na filmografia de Fábio Leal: a naturalização da nudez (e, por extensão, a comunhão dialogística através dos corpos, metonimizada no instante em que um personagem utiliza a sua abertura uretral para emular uma lembrança infantil) e a importância das transformações do espaço urbano no comportamento dos protagonistas (não sendo casual que ouçamos ruídos de reforma dentro do apartamento onde acontece a maior parte das ações). Antes que conheçamos Francisco (interpretado pelo próprio diretor), vemos a região em que ele habita: há vários azulejos caídos num prédio e, mais à frente, veremos trabalhadores atolados no esgoto. Tanto a solidão do confinamento quanto os enlaces fortuitos advêm de condições externas - neste caso, atreladas à pandemia da Covid-19... 


Caracterizando-se ostensivamente como o que já se convencionou chamar "filme de quarentena", este novo trabalho do cineasta combina as supramencionadas recorrências estilístico-discursivas com uma reflexão muito particular sobre o cotidiano homossexual: não deparamo-nos com interações evidentes entre o protagonista Francisco e seus parentes e a relação com os amigos dá-se primordialmente através do enfado acerca do que é publicado nas redes sociais. Ocorrem, entretanto, três encontros decisivos: no primeiro deles, virtual, Francisco conversa com Ronaldo (Marcus Curvelo), um rapaz com quem conviveu por cerca de dez meses, após um flerte carnavalesco, mas cuja falta de afinidade torna-se cada vez mais evidente, em razão dos cacoetes identitaristas do personagem, que é indefinidamente bissexual; no segundo, após uma série de regras pré-estabelecidas, Francisco aceita receber em sua casa um motoqueiro (Paulo César Freire), desde que ele mantenha-se continuamente higienizado; e, no terceiro, Francisco é intimamente desafiado pelo médico Vinícius (Lucas Drummond), que insiste em testar a sua paranóia anticontaminação. "Não quero sair daqui sem gozar", assevera o belo profissional de saúde, que é refutado por Chico: "pois vai. Eu preciso ficar sozinho"!



Há um quarto encontro no filme, que é justamente o retorno do motorista de aplicativo com quem Francisco ousa passear pelas ruas recifenses, na madrugada, ambos completamente despidos (exceto pelo uso de máscaras faciais), na seqüência antológica que encerra o filme. Simpatizamos bastante com o protagonista, não obstante alguns traços de sua personalidade continuarem obscuros ao término da sessão. Uma dúvida: onde ele consegue dinheiro para se manter? Não o vemos trabalhando, ainda que testemunhemos a sua rotina constate de medicação e os seus posicionamentos políticos embasados numa providencial "dieta de informações" (ele não deseja saber nada sobre as sandices bolsonaristas, por exemplo). O diretor foi muito exitoso ao inserir excertos decisivos do acompanhamento midiático sobre a pandemia, como as notícias de falecimentos nos telejornais ou a revolta da bióloga Natalia Pasternak, ao ser confrontada com a futilidade de uma enquete num programa televisivo. 


O tom do roteiro é assaz humorado, mas também reflexivo, com várias observações contundentes sobre as dificuldades de comunicação na atualidade. Em determinado momento, Ronaldo envia para Francisco uma canção cujos versos renitentes ("tudo está terrível, tudo vai mal") opõem-se frontalmente às mensagens de autoajuda ("vai passar, tudo vai melhorar") que lemos no gancho onde o protagonista guarda as suas máscaras e chaves. Durante os créditos finais, ouvimos a voz de Amelinha: "sou diariamente a dor que me passeia/ a dor que me anseia ser". Isso equivale a uma brilhante extensão poética do que é sentido pelo personagem e compartilhado para os espectadores. O filme, portanto, cumpriu à risca o que é anunciado no título: é um profilático diário de sobrevivência através do afeto! 



Wesley Pereira de Castro. 

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