quinta-feira, 24 de novembro de 2022

AUTODECLARADO (2022, de Maurício Costa)


Ainda mais complexo que o racismo explícito e/ou institucionalizado, o espectro do racismo estrutural instaura-se diuturnamente através de polemismos que desviam o foco orgânico da luta coletiva contra o preconceito. Ao fomentar conflitos envolvendo a controversa figura da pessoa parda - as comparações individuais efetuadas através do colorismo, por exemplo -, o fenômeno do racismo estrutural dificulta a compreensão generalizada acerca da necessidade e urgência das cotas raciais, em concursos públicos e universidades. E este é o tema nodal desde documentário, que traz a questão à tona desde a seqüência inicial, quando apresenta uma reportagem do programa "Fantástico", da TV Globo, na qual investigou-se o caso de um candidato que pintou-se de preto para concorrer às vagas destinadas às pessoas negras... 


Estruturado como se fosse um debate em rede social, este filme mescla depoimentos contundentes com a reconstituição de uma avaliação racial - quase como um julgamento -, na qual as características fenotípicas de uma jovem são analisadas por um grupo de contratadores. Paralelamente, acompanhamos os casos de denúncias de fraudes envolvendo a autodeclaração, além dos relatos pessoais de quem, desde a infância, convive com a chaga do racismo. O diretor, neste sentido, foi muito exitoso na coleta das falas, que vão desde os esclarecimentos contundentes do teólogo militante Frei David até as declarações de sociólogos sobre manifestações contemporâneas de lombrosismo, passando pelas valiosas contribuições da pesquisadora antirracista Winnie Bueno. Além disso, conhecemos um jovem sulista acusado de "não ser nem branco nem preto" e conhecemos os dilemas vivenciados por diversas pessoas, sob o jugo categoricamente indefinido da mestiçagem... 


Dentre os depoimentos com forte apelo emocional, temos: as lembranças de uma jovem de classe média que era discriminada pelos cobradores de ônibus, que estranhavam que ela não descesse numa comunidade aquisitivamente carente; as rememorações íntimas da brasiliense Bárbara Kruczynski, que chegou a ser ofendida por namorados por causa da coloração de seus órgãos sexuais; e as provocações compartilhadas pelo colunista Spartakus Santiago, que, ao referenciar o impacto da canção "Bixa Preta", de Linn da Quebrada, em sua trajetória, reclama que já foi questionado publicamente tanto como negro como enquanto homossexual. 


Não obstante a longa duração do filme (quase duas horas) e a utilização de uma linguagem midiático-televisiva, o ritmo deste documentário é envolvente, de modo que ele consegue ser didático e entretenedor ao mesmo tempo, conduzindo-nos a uma auto-reflexão obrigatória, quando uma situação paraficcional é deixada em aberto, sendo-nos direcionada de maneira interrogativa. As menções recorrentes à lógica binária do "preconceito de marca X preconceito de origem", cotejando o modo como o racismo implementou-se no Brasil e nos Estados Unidos da América, é outro aspecto mui positivo desta obra, que urge por divulgação. Façamo-la, portanto.



Wesley Pereira de Castro. 

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