quinta-feira, 31 de outubro de 2024

MEGALÓPOLIS (2024, de Francis Ford Coppola)


Tal como a feijoada, o sarapatel é uma refeição que, inventada sob o jugo da necessidade (aproveitar o que estava disponível - no caso, vísceras), foi gastronomicamente chancelada, após algum tempo, de maneira que, a depender do restaurante em que é servida, converte-se num prato chique, vendido a altos preços, por conta da delicadeza do processo de cozimento. Em diversos aspectos, "Megalópolis" (2024) é como se fosse um sarapatel cinematográfico: projeto antigo - e dificultado, em diversas instâncias - e sumamente pessoal do realizador Francis Ford Coppola, que está sendo eventualmente incompreendido por público e crítica, mas que periga ser reverenciado como 'cult', em breve. Caso ainda exista cinema, vida inteligente e/ou o próprio mundo habitável, daqui a alguns anos... 


Neste filme grandiloqüente - mas tramaticamente regido a partir da simplicidade da fábula que ele assume ser, desde o crédito titular -, encontramos aspectos que já foram abordados em obras anteriores do diretor. Seja a reflexão sobre as conseqüências trágicas do poder, em contrapartida aos afetos familiares, marcante em "O Poderoso Chefão" (1972); seja o romantismo que não tem receio de ser 'kitsch', característico de "O Fundo do Coração" (1981); seja a opulência redentora de "Drácula de Bram Stoker" (1992). Ao final, a moral da estória é deveras elementar: o amor transforma e salva. Ainda que o sobejo de credulidade na transmissão deste recado soe um tanto duvidoso. 


Explicamos: se não se duvida que o protagonista Cesar Catilina (Adam Driver), um "homem do futuro, mas aprisionado no passado", tenha efetivamente se apaixonado por Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), a pretensa inocência atrelada a esta personagem é prejudicada pela desenxabidez da atriz que a interpreta, de modo que os seus olhares lânguidos são abafados pelos exageros de tudo o que acontece ao redor. Outro aspecto problemático é o comodismo com que se resolvem algumas situações, a fim de garantir um "final feliz", como a morte anticlimática de Wow Platinum (Aubrey Plaza), de maneira incompatível com a sua esperteza de 'femme fatale', e a confissão de Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) acerca da participação no laudo adulterado que responsabilizou Cesar pela morte de sua primeira esposa, sanando num breve diálogo uma rivalidade longeva. Junta-se a isso o desaparecimento súbito de personagens relevantes como o narrador Romaine (Laurence Fishburne) e o "consertador" Nush Berman (Dustin Hoffman).



Quem quiser elencar defeitos neste filme, terá muito a enumerar, mas também desperdiçará a oportunidade de se esbaldar numa "superprodução independente" que eleva ao paroxismo os seus intentos: a montagem é alucinógena, a direção de arte é acachapante, as atuações são exageradas e as homenagens a diretores como Federico Fellini e Jean-Luc Godard são evidentes. Mas Francis Ford Coppola cozinha o seu sarapatel de maneira extremamente autoral, contando com o apoio de atores que entregaram-se por completo ao frenesi exigido nalgumas situações. Neste sentido, a seqüência do casamento entre Crassus (Jon Voight) e Wow Platinum é magistral, confirmando a esfuziante conjunção entre Dinheiro, Jornalismo e 'Sex Appeal'. E ainda que seus personagens não apareçam tanto em cena - ao menos, não tanto quanto o enredo solicita -, Jon Voight e Shia LaBeouf estão extraordinários, o que surpreende por uma questão extrafílmica: o primeiro destes atores é um apoiador contumaz do candidato à presidência Donald Trump, quando o roteiro do filme possui explícito apelo ideológico em contrário. Não apenas antitrumpista, mas antifascista em geral! 



Em seu acerto de contas político e audiovisual, quiçá um testamento, Francis Ford Coppola aproveita para dedicar esta obra tão íntima à sua recém-falecida esposa, Eleanor Coppola [1936-2024], reverenciada nos créditos finais, junto à menção do ano de produção em algarismos romanos: MMXXIV. As metáforas sobre os vícios romanos, deveras similares à configuração hodierna dos EUA, são exploradas de maneira inteligente, e os contrastes entre elementos antigos e contemporâneos é genial, como quando Vesta Sweetwater (Grace VanderWaal) entra em cena para leiloar a sua candura, supostamente adolescente, e um videoclipe 'pop' explode na tela. As emulações subjetivas do olhar alucinado de Cesar são fascinantes, contaminando toda a extensão da projeção, visto que esta confusão sensória surge como efeito colateral do elemento Megalon, que possui propriedades de controle do espaço e, principalmente, do tempo. Não é a obra-prima que acredita ser, mas é um filme que faz jus às maiores expectativas: um fuzuê de imagens, sons e delírios, que pode causar indigestão em alguns, mas deixa outros lambendo os beiços, ao término das duas horas e dezoito minutos de duração, para aproveitar a menção culinária do início. Dá para perceber a qual dos grupos o autor destas linhas pertence, não é?



Wesley Pereira de Castro. 

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