domingo, 9 de maio de 2010

DIREITO DE AMAR ('A Single Man') EUA, 2009. Direção: Tom Ford.

Publicada em 1912, “Morte em Veneza”, a obra-prima literária de Thomas Mann apresenta, entre seus diversos temas, os dilemas estéticos de um artista envelhecido que tenciona enfrentar a proximidade da morte diante do ideal de Beleza, representado na figura de um menino. “Direito de Amar”, esquisita translação dos distribuidores brasileiros para ‘A Single Man’ (que pode ser traduzido tanto como ‘Um Homem Solteiro’ quanto ‘Um Homem Singular’), filme de estréia do consagrado estilista Tom Ford, toma emprestado alguns detalhes do entrecho do supracitado livro, mas, infelizmente, esvazia-os ao cúmulo da despolitização modista, tornando-os tão concomitantemente estéreis e deslumbrantes quanto uma campanha publicitária de uma grife de luxo.

Não se sabe até que ponto os defeitos da narrativa competem ao escritor Christopher Isherwood, visto que o acesso ao livro-base não foi atingido, mas a direção de Tom Ford peca pela afetação exacerbada, hipertrofiada na pretensão que ele demonstra nos créditos iniciais, quando assina também – de forma pomposa para um iniciante – como produtor e roteirista. E, se no clássico literário de Thomas Mann, a implantação dramática da morte enquanto ‘leitmotiv’ é prenhe de funcionalidade metafórica e até mesmo filosófica, em “Direito de Amar” quase temos vergonha do protagonista quando este sucumbe ao falecimento cardíaco de maneira quase risível, depois de vivenciar as epifanias redentoras que são coletadas nas últimas horas do dia que antecede o momento fatal. Mas tentemos deslindar um pouco dos enigmas fajutos que o filme constrói, enigmas estes que impedem que definamos com precisão se gostamos dele ou não...


Na primeira seqüência onírica do filme, uma montagem extremamente picotada e incômoda por suas similaridades epilépticas intercala o idílico banho submarino de um modelo másculo com um pesadelo recorrente do protagonista, em que ele reimagina o momento em que o namorado com quem convivera por 16 anos falece num acidente de carro, ao lado de um de seus dois cachorros. Por mais que o roteiro insista em focar o clima de paranóia bélica que assolava a época em que a trama se passa, a depressão justificada do protagonista é o foco dominante, e esta assume-se como progressivamente isolacionista, salvo pela esquisita perseguição elogiosa de um de seus alunos, que, aparentemente, se sente inspirado pelo vigor com que ele dissemina os valores artísticos do escritor Aldous Huxley. Entretanto, até mesmo o que o filme parece ter de mais bem-intencionado é subsumido pela elaboração hipertrofiada de seus componentes técnicos, o que nos leva a questionar dois dos elementos mais elogiados do filme: sua esplêndida direção de fotografia (assessorada por uma concepção artística mui planejada e concorrida pela edição disrítmica de Joan Sobel) e sua insistente trilha sonora.


Se a progressão dos acordes ‘in crescendo’ compostos por Abel Korzeniowski e Shigeru Umebayashi emulam o que Philip Glass faz de mais relevante e funciona muito melhor isoladamente do que competindo com a dramaticidade das imagens e, por conseguinte, estragando o efeito de identificação que as mesmas desejavam transmitir, a direção fotográfica de Eduard Grau peca igualmente pelo excesso. Por mais que os cenários sejam verossímeis e as composições imagéticas sejam deslumbrantes, os enquadramentos e variações de tonalidade sépia entojam o espectador por remetê-lo à artificialidade minuciosa de uma campanha publicitária, em que os elementos soam moldados e remodelados até que pareçam muito mais luxuosos e estéreis do que realmente o são, em especial no que se refere à beleza física sempre interdita dos efebos com que o protagonista se depara. Neste sentido, o colóquio com o madrilenho Carlos (Jon Kortajarena) é sintomático por vários motivos, em especial, no que diz respeito à configuração do lugar em que eles se encontram, enfeitado por um enorme pôster do filme “Psicose” (1960, de Alfred Hitchcock), em que os imensos olhos assustados de Janet Leigh deixam evidente o esquematismo formal da seqüência, forçando a presunção de algo dramático acontecerá por ali, visto que é no diálogo com este personagem que aparece uma nojenta declaração que parece validar as intenções proto-extáticas do filme: olhando para o céu, o protagonista percebe uma tonalidade cromática diferente no fim da tarde, ao que o espanhol se antecipa e explica: “é por causa da poluição. Isto demonstra que até mesmo que é ruim pode ser bonito se soubermos admirar seus aspectos positivos”. Ok!


Por fim, mas não menos importante, algumas observações sobre os atores e os figurinos que o vestem, visto que, mais do que atuar, eles parecem estar desfilando em cena: Colin Firth surpreende pela discrição com que dota o amargurado George Falconer, bastante crível não somente na perda amorosa que retroalimenta o seu vício em resmungar da necessidade de “chegar até o fim de mais um maldito dia”, mas também no que diz respeito à decepção crescente (e ao senso de inutilidade que daí deriva) que se instala quando percebe o desinteresse das pessoas ao redor – em especial, dos seus alunos – pelos ensinamentos que tenta transmitir e pelos ganhos espirituais que a literatura evoca. Trajes que veste: sóbrios paletós e camisas que não denunciam qualquer traço de exacerbação pederástica acima da medida. A talentosíssima Julianne Moore, por sua vez, está caricata como a apaixonada e solitária Charley, desfilando charme e inocuidade num vestido negro com uma elegante estampa branca em sua fronte. O jovem e encantatório Nicholas Hoult, por sua vez, deambula com graça e notabilidade actancial pelos ambientes, mas seu personagem nunca é perfeitamente apreensível em sua concepção, o que é, de longe, muito mais culpa do diretor e roteirista do que do ator que o interpreta, visto que ele consegue dotar seu papel com comedida autenticidade, mesmo quando o casaco de pele que usa durante metade do filme ousa contrastar com sua psicodelia auto-proclamada. Além deste trio de intérpretes, as breves aparições de Matthew Goode como o finado Jim jamais passam da mediania, o que também pode ser aplicado às suas vestimentas de caráter esportivo corriqueiro.


Ao final do filme, a morte estereotipada e anunciada do protagonista é quase um alento, tamanha a indecência proto-erotizada que a produção requintada deste filme se dispôs a legitimar, em que os vários anúncios de censura branda que antecedem os créditos de abertura deixam patente o vácuo proposital que ele ostentará – vácuo este que só é preenchido por algo que Tom Ford parece entender muito bem: o consumo desenfreado da forma estéril, da beleza ensaiada que enfada, quando, na verdade, deveria provocar alguma reação de enlevo. Num exercício de licença hermenêutica extra-diegética, poderíamos dizer que se George Falconer sobrevivesse ao enfarto e tivesse acesso a este filme, talvez ele não hesitasse em adiantar politicamente o seu suicídio...

Wesley Pereira de Castro.

5 comentários:

  1. campinasSua preocupação em mostrar uma ¨linguística acadêmica¨, e achar defeitos, está lhe dando uma pseudo perspectiva. Transcenda...

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  2. Eu não achei os defeitos no filme... Eles que me acharam!

    Quanto ao academicismo, ah, quem me dera... Tu não sabes o que eu enfrento por falar cotidianamente deste jeito na Universidade (risos)

    Quanto à transcendência, estou tenatndo, JURO!

    WPC>

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  3. Sabe, fiquei com essa impressão até mesmo por conta do diretor vir do mundo da moda que é ditado pela beleza física perfeita e juventude eterna, algumas cenas achei realmente forçadas e a atuação do Firth e da Moore creio que foi + por conta das personagens, mas aí tenho que ler o livro e até rever o filme para responder a essa questão, visto que os dois são excelentes atores. Concordei em boa parte do que disse, percebi que não ficou mto satisfeito, bem por ter sido o primeiro filme do Ford, relevei algumas coisas e no total o filme me agradou. Agora não mude o seu estilo deixe transcender aquilo que verdadeiramente vc é.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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