quarta-feira, 2 de junho de 2010

QUINCAS BERRO D'ÁGUA(Brasil, 2010). Direção: Sérgio Machado

Um dos comentários mais generalizados sobre este filme é o de que o ator Paulo José insistiu em estar presente em todas as situações em que seu personagem morto estaria em cena, salvo duas situações de perigo em que, obviamente, seria necessária a utilização de um boneco, a fim de preservar a integridade física do ator. Tal atitude revela que este dedicado intérprete estava preocupado com um detalhe essencial do roteiro: o de que a perspectiva condutiva dominante acerca do mesmo seria justamente a do cadáver, algo que, infelizmente, nem sempre pôde ser respeitado pelo diretor e roteirista Sérgio Machado, que comete um dos pecados mais recorrentes nos filmes da Globo Filmes locados em cidades nordestinas: convidar atores do sudeste brasileiro para vivificarem pessoas que falam com sotaques demasiado carregados, o que, para além dos méritos actanciais dos profissionais envolvidos, descaracterizam a configuração local dos personagens, conforme acontece aqui com Mariana Ximenes, que desempenha um papel importante – venhamos e convenhamos, em contraponto reflexivo com o protagonista – mas tem sua presença hipertrofiada pelos produtores, que vêem na mesma um chamariz publicitário que o filme poderia muito bem dispensar, tamanho o entrosamento peculiar que atores menos conhecidos como Irandhir Santos e Frank Menezes demonstram em relação ao público, envolvendo prioritariamente o carisma carnavalesco dos baianos constantes do elenco.

Em outras palavras: o filme funciona bastante quando Paulo José está comentando sua própria trajetória de vida ou proferindo julgamentos morais nas cenas em que não está presente (visto que sua condição de morto protagonista valida a onisciência narrativa), mas as situações protagonizadas pelos demais coadjuvantes, muito numerosos – sejam na residência de Vanda, seja no terreiro da mãe Ana – falham pela precariedade concatenadora, o que não se constata, por sua vez, no bordel de Manuela, tamanha a argúcia de Marieta Severo como a espanhola que comanda o recinto e que, quando tenta se matar tomando vários comprimidos de magnésia (sem que soubesse a composição química dos mesmos), passa uma tarde inteira no banheiro, crise diarréica esta que rende um dos vários ditados populares consagrados em diálogos do filme; “cada um chora por onde sente mais saudade”. Surge aqui, outro aspecto importante na análise do filme: o modo como o mesmo se vale de dizeres característicos do povo baiano (e nordestino como um todo), o que nos leva a prestar ainda mais atenção na configuração pretensamente localista do filme.


Se o diretor Sérgio Machado goza de um bom currículo prévio enquanto diretor de um documentário sobre Mário Peixoto (ainda não-visto), alguns bons episódios da série de TV a cabo “Alice” e o sincero longa-metragem “Cidade Baixa” (2005), neste novo filme ele não parece desfrutar de liberdade criativa suficiente para explorar as nuanças soteropolitanas que tão bem conhece e que chamaram a atenção dos críticos em suas obras anteriores. Por um lado, a ótima direção de fotografia de Toca Seabra valoriza plenamente pontos turísticos como o Elevador Lacerda, sem que o mesmo pareça “artigo de exportação” ao ser percebido/destacado em meio à cuidadosa reconstituição de época, e, por outro lado, este mesmo primor técnico-reconstitutivo é desviado de nossa atenção em virtude da pletora de personagens, que se somam de forma tão alvoroçada que algumas sub-tramas ficam mal-construídas, para além das advertências sinópticas do narrador Quincas (vide os exemplos da temida e maternal prostituta que ele amparou antes de ser presa e do cafajeste mal-humorado que cria briga no cabaré de Manuela quando esbarra em alguém no balcão).

Entretanto, não se pode reclamar que a adaptação enredística engendrada pelo próprio diretor Sérgio Machado seja ruim. Pelo contrário, ele conseguiu tornar a trama suficientemente concisa para quem ainda não tenha lido a obra literária original de Jorge Amado, não obstante focar superficialmente aquele que poderia ser o ponto nodal da trama: a conversão do simplório e entediado funcionário público Joaquim Soares da Cunha no boêmio bem-dotado Quincas Berro ‘d’água. Os ‘flashbacks’ que eventualmente pontuam a trama são sempre bem-sucedidos, seja naquele em que o protagonista teme que sua filha torne-se uma cópia moral da sua flatulenta esposa, a quem ele tacha de jararaca num momento de fúria, seja quando ele é mostrado pendurando-se numa estátua e cantarolando músicas chulas, ainda na fase exordial de sua conversão à bebedeira festiva.


Em relação ao discurso moral potencialmente dramático que toma de assalto alguns trechos do filme, os mesmos foram bem-inseridos na narrativa, ainda que pareçam um tanto óbvios em sua redenção final, em que os personagens avessos à literatura do protagonista sejam mostrados acordando de práticas sexuais que, de outra forma, não seriam condizentes com seus cotidianos modorrentos e hipócritas, criticados veementemente pelo sarcástico humor de Quincas Berro d’Água, que, mesmo morto, insiste em comentar as situações ao seu redor, alegando que “não há nada demais em morrer, exceto pelo fato que há uma picada na bunda que não se consegue mais coçar”. Nesse sentido, merece um renovado elogio a insistência de Paulo José em abdicar do uso de dublês, o que valida o convencimento redentor da seqüência final, após a tempestade do mar, quando ele é finalmente sepultado “ao lado de Iemanjá”, e visa diretamente ao espectador, em sua exortação extrema de aproveitamento da vida e da morte.

Além do elenco competente e coeso (que, se não está de todo bom, é menos por deficiências actanciais do que pela imposição de estrelas reconhecíveis da televisão por parte dos produtores do filme) e do bom roteiro adaptado e compreensivamente descompassado em sua transferência de um ponto de vista mais indolente sobre a vida boêmia do falecido protagonista à sua filha quiçá também libertina em potencial, a equipe técnica do filme merece também encômios pro causa da excelente trilha sonora, que mescla os temas originais de Beto Soares a canções notáveis da era de ouro do rádio no Brasil.

Pode-se reclamar que o filme está muito mais preocupado com a disseminação popularesca de valores risórios, em que a estereotipização de modos de fala tipicamente nordestinos e as extravagâncias naturais de personagens da fauna urbana noturna como travestis, prostitutas e delegados pederastas é utilizada de forma mais comercial do que necessariamente espontânea, as gargalhadas empolgadas das pessoas – inclusive nordestinas – parecem consolidar por extensão apreciativa as opções rigorosamente planejadas para reações atreladas aos preconceitos espectatoriais, de maneira que é assaz compreensível e defensável a insistência de que o filme está bem acima da média de filmes brasileiros comerciais lançados nos últimos anos, não obstante seu roteiro está muito aquém de esboçar adequadamente os valores populares defendidos no entrecho e no livro original que lhe deu origem.


Inclusive, este embate de interesses pode ser metaforicamente ampliado a partir de uma seqüência-chave do filme, quando um dos amigos do falecido, encasquetado de que é poeta, insiste em ler um poema que escrevera para sua amada, diante do caixão. Ao perceber a insatisfação receptiva por parte de alguns dos presentes, comenta: “sei que não é um poema de qualidade superior, mas é melhor uma poesia ruim do que merda nenhuma”. Quem se vê obrigado a sucumbir à inevitabilidade crescente das concessões qualitativas da Indústria Cultural, pode se conformar com isso e fazer de conta que não ouve a imediata contestação do falecido protagonista: “ouvido de morto não é penico”. O de alguns vivos, pelo jeito, é...

Wesley Pereira de Castro.

2 comentários:

  1. Oi Wesley,

    Tõ louca para assisti este filme, me fez lembrar meu pai que era um colecionador dos livros de Jorge Amado, esse em especial "Quincas Berro D'Agua" que virou filme e teve a participação brilhantemente de Paulo José (recém operado de Alzheimer) segundo a crítica, ficou na minha memória...

    Bjsss

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  2. Olá, Wesley.
    Eu mandei um e-mail para o seu endereço com domínio @ufs.com sobre o blog. Espero que possa ver. E parabéns pelas resenhas. Um abraço.

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