domingo, 20 de junho de 2010

O ESCRITOR FANTASMA ('The Ghost Writer' - Alemanha/França/Inglaterra, 2010) Direção: Roman Polasnki

Num dos primeiros encontros que trava com o personagem real que ajudará a autobiografar, o protagonista afirma que, em sua narração, este deve destacar os fatos mais românticos de sua vida, visto que “os leitores se identificam com situações que evocam o coração”. Ao se pensar na biografia do diretor Roman Polanski, esta dramaticidade pretendida não tem como ficar em segundo plano: perseguido pelos nazistas durante a infância, testemunha do assassinato público de sua esposa grávida em 1969, acusado de pedofilia no final da década de 1970 e preso na Suíça em 2009 por este mesmo crime do passado, a vida pessoal do diretor polonês é sempre permeada pela polêmica e pela necessidade de fuga, o que explica os temas recorrentes do confinamento ostensivo e da claustrofobia instituída em sua obra absolutamente autoral.

Cada um de seus filmes, seja ele de qualquer gênero ou produzido em qualquer época, traz no bojo um protagonista perseguido pela culpa, não necessariamente comprovada, que, como tal, precisa executar medidas extremas para declarar sua inocência ou permanecer íntegro diante de situações-limite. No filme ora analisado, muito superior em qualidade e autenticidade ao longa-metragem anterior do diretor [“Oliver Twist” (2005)], o que mais surpreende é como o roteiro, escrito pelo próprio diretor e por Robert Harris (autor do livro que deu origem ao filme), mescla com sagacidade denuncista elementos que já foram trabalhados em obras como “O Inquilino” (1976), “Busca Frenética” (1988) e “O Último Portal” (1999), a fim de metaforizar emoções persecutórias que têm a ver com o mal-estar público do cineasta. Nesse sentido, as opressões xenofóbicas tangenciais, o perene desconforto advindo da constatação de que não se pode mais confiar em ninguém e as ambíguas exigências profissionais da carreira de escritor são circunstâncias fílmicas que só dignificam esta obra, asfixiante ao extremo, que deposita no espectador uma impressão de desconforto pretendido tão eficaz quanto aquela que pulula nas obras-primas literárias escritas pelo tcheco Franz Kafka. Comparando-se, portanto, os componentes tramáticos do filme com as fortes divergências hermenêuticas envolvendo o julgamento do diretor acerca do crime que cometera há mais de 30 anos, não tem como não se perguntar: diante dos interesses oportunistas de políticos corruptos e influentes, ainda é possível depositar confiança nas representações estatais de poder?


No plano directivo, Roman Polanski é digno de elogios pela agilidade que instaura no ritmo frenético do filme, de maneira que, se por vezes ele parece mais extenso do que os 128 minutos de sua duração, isso se dá justamente pelo efeito bem-sucedido de dilatação temporal decorrente da sensação de perseguição que acomete o protagonista durante toda a sua estada na ilha em que se passa o enredo, sensação esta que manifesta-se tanto no coincidente disparar de alarmes na cena em que o protagonista tenta descobrir a senha que protege o conteúdo de um arquivo de computador quanto na observação dos automóveis à espreita quando ele se locomove de um local para outro, passando também pelos estranhos contatos que ele trava com a população local, como os empregados chineses da residência de seu patrão britânico, a atendente solitária do hotel em que se instala e o velhinho (magnificamente interpretado pelo lendário Eli Wallach) que lhe confessa as incongruências de um assassinato encoberto sabe-se lá por quem.

O único desvio rítmico digno de destaque no filme diz respeito justamente ao final, que parece um tanto precipitado, tamanha a cautela com que foram construídos os eventos prévios à sua execução. Algo soa forçado na bazófia vingativa do protagonista quando este escreve um bilhete para Ruth Lang (Olivia Williams, muito mais imponente do que de costume), anunciando que descobrira um importante acróstico preparado por seu antecessor empregatício, e logo é atropelado quando tentava fugir com o manuscrito original das memórias do ex-primeiro-ministro inglês, a fim de descobrir novos mistérios escondidos em códigos de escrita naquelas páginas. Talvez o filme não precisasse desta cena de impacto fácil para se manter significativo em seu potencial de suspense, como efetivamente já o fazia até então. Mas, venhamos e convenhamos, até este é um mal menor.


No plano técnico, merecem destaque a extraordinária trilha sonora de Alexandre Desplat, que pontua muito bem o estado contínuo de aflição do protagonista, e a direção de fotografia eficiente do colaborador habitual dos filmes recentes do cineasta, Pawel Edelman. Encabeçando o elenco, Ewan McGregor oferece uma atuação contida muito condizente com os anseios de discrição do personagem, enquanto Pierce Brosnan desempenha o seu papel com perdoável estardalhaço, Kim Cattrall o faz com firmeza engenhosidade de coadjuvante e Tom Wilkinson impõe-se nos poucos minutos em que contracena como o enigmático professor universitário Paul Emmett. Algumas das cenas mais intrigantes do filme, porém, dão-se entre o protagonista e Olivia Williams(que interpreta a esposa do ex-primeiro-ministro), personagens que fazem sexo num contexto atribulado e muito tenso, depois de travarem um contundente diálogo em que, quando ele pergunta a ela porque a mesma nunca foi uma candidata política de verdade, ela retruca, imponentemente: “e tu, por que nunca foste um escritor de verdade?”. A ele, só resta apenas emitir uma interjeição de descontentamento impotente e permitir que a mesma divida a cama com ele.


Analisando-se o filme como portador de mensagens subliminares em relação às insatisfações do diretor e de seus fãs ao modo como são conduzidos os inquéritos de acusação contra ele, pode-se dizer que o mesmo é deveras exitoso em seus intentos. Não somente “O Escritor Fantasma” diverte bastante enquanto ‘thriller’ e enquanto filme político, como o mesmo pode ser interpretado por vários vieses para quem conhece a fundo as idiossincrasias e obsessões temáticas do seu realizador, que, conforme visto, sabe lidar muito bem, no plano artístico, com a tragicidade ostensiva de sua vida real. As divergências de princípios morais entre o protagonista e seus empregadores numa das seqüências iniciais, o mistério crescente das motivações políticas dos personagens que transitam em torno do ex-primeiro-ministro Jack Lang (Pierce Brosnan), a própria assunção do mesmo em relação aos crimes de guerra que cometera e as tramóias militares que emergem à medida que a trama se desenvolve são elementos que deixam a nu os intentos questionadores e críticos do filme, que vão muito além de sua argúcia genérica no patamar cinematográfico, o que, seja dito novamente, o filme faz com presteza admirável. Tanto é que só se percebe que o protagonista é inomeado depois que o filme acaba e ele supostamente está morto.

No auge de seus 76 anos de idade e enfrentando fortes restrições no seu direito de ir e vir, Roman Polanski, realiza, portanto, um arrojado filme de autor no costumeiramente formulaico panorama anglofílico hodierno de cinema. Que venham outros!

Wesley Pereira de Castro.

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