quarta-feira, 20 de outubro de 2010

COMER, REZAR, AMAR ('Eat, Pray, Love') EUA, 2010. Direção; Ryan Murphy

Apesar de ter dirigido um filme estruturalmente desengonçado [“Correndo com Tesouras” (2006)] que recebeu divulgação elogiosa por parte da crítica especializada em razão da boa condução de atores, Ryan Murphy é melhor conhecido como o bem-sucedido criador e roteirista das séries televisivas “Nip/Tuck” e “Glee”, uma com enfoque adulto e a outra direcionada ao público infanto-juvenil. Ambas merecem crédito laudatório pelo êxito estabelecido com determinados públicos-alvo, previamente sujeitos à identificação marginal, no que concerne aos temas-tabus que são discutidos em seus episódios. Tanto uma como a outra série dispuseram de bons pontos de partida enredísticos, mas foram se desgastando à medida que se estenderam por mais de uma temporada, em razão de um aspecto fundamentalmente nocivo: Ryan Murphy, enquanto criador e roteirista, não demonstra pulso forte no que tange à fidelidade conceptual de suas personagens, concentrando sua vocação espectatorial na hipnose decorrente da exposição tentadora de estratagemas de consumo. É nesse contexto que “Comer, Rezar, Amar” surge, enquanto uma conjunção de práticas tão pormenorizadamente estudadas que os três verbos do título poderiam ser simplesmente substituídos por “comprar” ou “gastar”.

Dizendo de outra forma: este tipo de filme, cada vez mais comum na onda “femininista” hollywoodiana atual (ou seja: retroalimentadora de papéis convencionais de feminilidade) torna irrelevante um julgamento avaliativo/qualitativo depurado, visto que ele se pretende mais funcional ou psicologicamente remediador do que necessariamente artístico, estabelecendo-se como a panacéia espúria de uma crise estabelecida pelo próprio sistema capitalista que monopoliza as ações dos personagens, mas que nunca é efetivamente questionado enquanto implementador dos problemas de relacionamento familiar e social abordados.
Senão, vejamos: ainda na primeira cena do filme, quando somos apresentados à protagonista Liz Gilbert, interpretada por Julia Roberts a partir de uma estória de vida real, ouvimo-la comentar sobre o trabalho de uma amiga, que realiza atividades de assistência social com imigrantes cambojanos. Destacando que estes imigrantes ilegais enfrentaram sofrimentos variados em seu país de origem, desde perseguições políticas até miséria e efeitos de guerra civil propriamente ditos, a protagonista se antecipa em dizer que, para além de todas estas compreensíveis reclamações, quando os mesmos vão listar seus problemas no consultório de sua amiga, as desilusões amorosas são os principais assuntos de seus depoimentos lamentosos. Ou seja, numa paráfrase possível das palavras da protagonista, por mais que soframos num sentido macrológico, tudo é esquecível diante de problemas amorosos, conclusão esta que autoriza que uma amiga dela ateste que redecorar a cozinha ou entoar um mantra religioso “correspondem à mesma coisa, variando apenas em relação às culturas nacionais de que fazem parte”. Com isso, é estabelecido um ponto nodal de caracterização classista em relação ao discurso fílmico, que invalidaria a identificação genérica com o público (principalmente feminino) de vários países subdesenvolvidos e/ou culturalmente colonizados, mas este estigma de classe é prontamente diluído pelos estratagemas globalizados do enredo, que mantêm o espectador entretido com chavões depressivos e relações superficiais de coleguismo entre a protagonista e alguns habitantes da Itália, da Índia e da Indonésia.

Não por acaso, nos três países que ela visita, as motivações pessoais da protagonista para comportar-se de um dado modo são proporcionadas justamente pelas condições aquisitivas superiores de que ela dispõe, o que justifica a ridícula montagem entre a comemoração de um gol numa partida de futebol na Itália e a tentativa da personagem principal em vestir uma calça apertada, o oportuno encontro, durante uma “obrigação filantrópica”, entre ela e uma rapariga hindu prometida em casamento a um desconhecido, que fala inglês fluentemente e deseja se graduar em Psicologia, e o mutirão de cheques que ajudam uma curandeira balinesa a construir uma casa com os azulejos azuis que a filha pequena desejava.

Por mais que Liz Gilbert realmente tenha sucesso em sua jornada programada de alimentação meridional, meditação oriental e progressão aritmética namoratória, o dinheiro que ela investe em restaurantes e butiques napolitanas, nos jarros com efígies de entidades hinduístas que ela compra na Índia e na rejeição vernal do questionamento recorrente sobre conhecer um homem rico em Bali é que ditam as verdadeiras intenções – ao mesmo tempo, explícitas e sob-reptícias – do filme, no sentido mais oximórico da crise formal e empresarial que ele metonimiza.

Apesar de ser protagonizado por uma das maiores representantes atuais do ‘star system’ hollywoodiano, “Comer, Rezar, Amar” escancara um desrespeito formal aos cânones do ‘studio system’ a que este estivera atrelado noutras eras mais notórias. O que isso quer dizer? Implica em afirmar que a derivação literária de auto-ajuda do roteiro, os renitentes ‘travellings’ paisagísticos do diretor e a mediania actancial do elenco secundário não categorizam este filme como merecedor de uma avaliação positivamente cinematográfica, mas têm a intenção conjunta e prioritária de disfarçar seus cacoetes televisivos e suas dimensões publicitárias. É neste sentido que as inconvenientes declarações matrimoniais da assistente do xamã Ketut Liyer (estereotipadamente vivido por Hadi Suniyanto), a agradável trilha sonora acompanhante de Dario Marianelli e a dedicação do roqueiro Eddie Vedder na composição e interpretação da bonita canção que é executada durante os créditos finais (“Better Days”) são muito mais extensões clicherosas e formulaicas do subgênero romântico da cultura de massa do que ostensivas características deste filme em particular, que, para além de todos os seus defeitos, merece elogios por ao menos dois aspectos: o uso eficiente de ‘flashbacks’ e a ausência de julgamentos morais sobre as constantes substituições da protagonista no que tange aos três principais interesses amorosos que se manifestam no filme. Se, no primeiro caso, o melhor exemplo de efetividade está quando a protagonista lembra, sem rancor ou nostalgia impotente, das músicas que dançou em sua cerimônia de casamento, no segundo caso, as ótimas participações – e, vale a pena frisar: firmes composições personalísticas – de Billy Crudup e James Franco antecipam com elogiável dignidade a entrada em cena de Javier Bardem, menos inspirado como o brasileiro Felipe.


Tal qual acontece com “Sex and the City – O Filme” (2008, de Michael Patrick King) ou “Nosso Lar” (2010, de Wagner de Assis), para ficar apenas em dois exemplos aparentemente contrastantes, “Comer, Rezar, Amar” será lembrando menos pelo que oferece em matéria de material cinematográfico e mais, bem mais, pela funcionalidade arrebatadora no que diz respeito aos anseios evasivos da platéia, que são levados a ignorar lacunas cabais de composição discursiva intra-fílmica, como a cena em que Liz é flagrada utilizando um ‘laptop’ antes de deparar-se com o elefante que fugira de um circo na Índia ou quando a câmera focaliza em ‘close-up’ a quantidade de rúpias que ela precisa desembolsar para comprar um adesivo que designe a sua subsunção a um voto de silêncio na seita hinduísta a que se filia provisoriamente, em que a “caverna de meditação” apresentada aos turistas compõe-se na verdade, de um aposento com vários sofás, paredes de vidro e um aparelho de ar condicionado. Na pior das hipóteses, este filme é um bom retrato oficial de como os detentores do poder e de influência capitalista enxergam a globalização ao redor do mundo.

Wesley Pereira de Castro.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Não vi o filme, e não parece ser muito o tipo de filme que gosto.
    Como você bem lembrou, é um filme voltado às mulheres.
    Não digo que não verei, porque vejo de quase tudo. E ir com a namorada no cinema vê-lo, talvez seja até legal.
    Muito boa sua análise, muito bem feita mesmo.
    Parabéns pelo blog que parece ser todo levado nesse nível alto.
    Obrigado por ter visitado e comentado em meu blog. Também estou a te seguir.
    Abraços.

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