Parte considerável do material de divulgação publicitária relacionado a este filme destaca o fato de que o diretor Arnaldo Jabor, sem realizar um longa-metragem há mais de 10 anos, intentava dotá-lo do mesmo fervor nostálgico que os filmes de Federico Fellini, podendo-se perceber aqui traços de crônica histórico-familiar que lembram remotamente “Amarcord” (1973). Porém, se o cineasta italiano cunhou a expressão “memórias inventadas” para descrever seus filmes absolutamente singulares, em que reminiscências oníricas misturavam-se a reconstituições autobiográficas, Arnaldo Jabor opera numa via reflexiva diametralmente inversa, em que cada seqüência, por mais bem-intencionada que seja no plano da emotividade, soa artificial ou esquemática, muito mais inventada do que necessariamente mnemônica, desperdiçando o rico arcabouço que o cineasta brasileiro erigiu em seu ‘corpus’ fílmico setentista, marcado por extraordinárias adaptações de peças de Nelson Rodrigues e divertidas metáforas sobre a “dialética da malandragem” sob a qual se constitui a representação jocosa do brasileiro típico.
A cena em que o garotinho protagonista (então vivido por Caio Manhete) assiste a um estranho espetáculo circense em que uma anã potencialmente adúltera é ficcionalmente esfaqueada por seu marido ciumento talvez seja a mais bem-sucedida, no plano das idéias, em relação ao contato felliniano, visto que emula não somente um tema característico das obras do diretor italiano como encontra eco também no belo documentário em curta-metragem que Arnaldo Jabor realizou em 1965, sob o título mui objetivo de “O Circo”. De resto, as pressões mercadológicas adotadas na obra estragam consideravelmente a sua espontaneidade emotiva, mas não conseguem impedir de todo que espectadores mais suscetíveis aos efeitos humanos da passagem do tempo derramem algumas lágrimas sinceras por causa da identificação forçosa que, afinal, o filme tanto luta para causar.
O principal fator de impulso para o derramamento salutar destas lágrimas de identificação personalística está no maravilhoso título do filme, esplêndido não somente enquanto expressão utópica unanimemente desejada (nem que seja em nível inconsciente), mas também enquanto possibilidade concomitantemente refutada e ensejada pelo personagem de Marco Nanini, que afirma que “a vida só gosta de quem gosta dela”. Enquanto elaboração enredística, o momento em que o avô Noel descreve o súbito arrebatamento de felicidade que o atingira quando se dirigia até um ponto de ônibus é impregnado das tenções epifânicas de que o filme tanto se beneficiaria se as conseguisse levar a cabo em tempo integral.
A citação de Carlos Drummond de Andrade que antecede os créditos iniciais é igualmente pungente em seu intento emotivo: “as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão”. E, com esta citação, vários defeitos estruturais do filme (o vai-e-vem cronológico à frente) são justificados, enquanto que outros (a má condução de atores, por exemplo) permanecem largamente danosos. As horrendas entradas em cena do pornográfico e inverossímil personagem de João Miguel, a estereotipia derramada sobre a prostituta personificada pela ótima Maria Luísa Mendonça, as ridículas ameaças católicas perpetradas pelo personagem paroquial de Ary Fontoura e o péssimo desempenho do casal Dan Stulbach e Mariana Lima, que interpretam os pais do protagonista, são, nesse sentido, os piores defeitos actanciais do filme, que, como tal, solapam muito o resultado final, tornando caricato o que deveria ser minimamente honesto enquanto conjunto de lembranças morais do protagonista Paulo (vivido, em sua fase pós-adolescente, pelo simpático Jayme Matarazzo).
Se a escolha da trilha sonora peca por uma anglofilia reinante (má justificada enquanto fator de época) e a direção de arte está rente à mediania funcional do padrão qualitativo das telenovelas produzidas pela Rede Globo de Televisão, a irregularidade componencial dos personagens não sustenta a beleza que ameaça emanar de várias seqüências, a maior parte delas associada justamente à promiscuidade passional de Paulo, que dota seus arroubos namoratórios por meretrizes de um encanto putativo tão elaborado que estes se tornam anticlimáticos quando interrompidos, da mesma forma que acontece na última cena do filme, tão abruptamente vetada quanto inconclusa. Se a seqüência em que a prostituta vivificada por Majô de Castro morre nua, em decorrência de uma navalhada traiçoeira, consegue ser deslumbrante mesmo quando se artificializa através da hipertrofiada inclusão de uma trilha sonora operística, a dança moribunda do avô Noel sobre um cenário de gafieira, que é posteriormente substituído por uma paisagem tipicamente urbana e atual, possui um sentido crítico que, apesar de discursivamente elaborado por seu diretor-roteirista, não foi suficientemente traduzido em emoção recognoscível para o público.
Por outro lado, a surpreendente e contida atuação de Elke Maravilha e o aproveitamento lúdico da sexualidade dúbia do melhor amigo de Paulo, Cabeção (vivido decentemente por César Cardadeiro), são pontos inequivocamente positivos da produção, ainda que a atmosfera mística à la Jean Genet deste segundo componente roteirístico seja prejudicada pelo excesso de bruma noturna na saída em cena do garoto indutivamente atrelado ao homossexualismo ressentido.
No cômputo avaliativo geral, portanto, a indefinição entre a fotografia em cores, a tonalidade em sépia e o uso do preto-e-branco em “A Suprema Felicidade” serve como corolário prático de um apotegma atribuído ao erudito escritor irlandês George Bernard Shaw, que sugeriu que, assim como um “peixe que precisa botar miríades de ovos de modo que alguns possam chegar à maturidade, o fotógrafo precisa fazer miríades de fotografias para que algumas atinjam uma real qualidade”. O consagrado diretor de fotografia Lauro Escorel tinha uma consciência semelhante em mente, ao passo que o diretor Arnaldo Jabor distancia-se tão violentamente (no sentido negativo) de seus filmes anteriores que o não-reconhecimento dos traços característicos de suas obras mais famosas neste seu mais recente filme denota um lamentável declínio estilístico e uma subsunção vergonhosa aos ditames da homogeneidade cultural de traços capitalistas, no caso, regidos por sua fidelidade contratual à emissora de TV para a qual trabalha.
Se a verve crítica de obras geniais como “A Opinião Pública” (1967), “Toda Nudez Será Castigada” (1973), “Tudo Bem” (1978) e, até mesmo, “Eu Te Amo” (1981) é aqui substituída por um conjunto de clichês familiares da pequena-burguesia carioca das décadas de 1940 e 1950, ao menos sobrevivem os truísmos poéticos de Olavo Bilac de que o personagem de Marco Nanini se serve para proclamar que “só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas”. Porém, no afã por fisgar o espectador com um vigor recordativo similar àquele adotado pelo cineasta italiano que lhe serviu de referência, Arnaldo Jabor deveria se lembrar que Cinema é também linguagem, e não apenas um amontoado de situações tragicômicas, concatenadas a fórceps através de intentos mercadológicos tão assumidos quanto sub-reptícios no turbilhão de ideologias direitistas que o filme embala em seus altos e baixos enredísticos, distribuídos em 121 minutos de projeção. Mas algo deve ser repetido como louvável aqui: a percuciência emotiva do título [na verdade, retirado de uma definição do escritor francês Victor Hugo – constante no livro “Os Miseráveis” (1862) – sobre o reconhecimento justo daquilo que somos] é simplesmente arrebatadora!
Wesley Pereira de Castro.
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