quinta-feira, 25 de novembro de 2010

HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE: PARTE 1 ('Harry Potter and the Deathly Hallows: Part 1) EUA/Inglaterra, 2010. Direção: David Yates

Ao contrário do que um pré-conceito literariamente elitista faria supor no plano defensivo, “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, da autora britânica J. K. Rowling, não é um livro ruim e, muito menos, adequado sobremaneira ao público infantil. Para além dos atropelos climáticos da trama e de uma concepção incomodamente autotélica da magia, o livro é bem-sucedido na composição psicológica de seus personagens que, por estarem muito mais maduros e atormentados por perigos reais do que nos livros anteriores, são críveis, interessantes, verossímeis e, cada qual a seu modo, apaixonantes.

Neste sentido, era de se supor que o filme derivado a partir dele seria tão interessante quanto. Graças à segurança elogiável do diretor com currículo amplamente televisivo David Yates, consegue-se imprimir à cinessérie uma conotação político-administrativa muito bem-vinda e até mesmo surpreendente, substituindo a rivalidade caprichosa entre grêmios estudantis dos primeiros filmes por oposições de cunho ético-partidário entre os agrupamentos de personagens, de maneira que as intrigas e profecias que agora circundam a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts são convertidas em chamarizes válidos para platéias adultas e mais esclarecidas em relação a um arcabouço cultural de caráter erudito. Entretanto, tanto livro quanto filme possuem problemas incontornáveis de ritmo e narrativa, sendo que estes ficaram ainda mais evidentes na versão filmada por causa de alguns motivos bastante ostensivos, entre eles a caricaturização excessiva dos vilões e a má interpretação de alguns atores masculinos juvenis. Tentemos expor com cautela, portanto, os erros e acertos mais evidentes do filme enquanto peça cinematográfica propriamente dita, sem levar em consideração as autorizadas liberdades adaptativas em relação à obra literária original.


Se o irrepreensível Alan Rickman tem poucas oportunidades cronológicas de brilhar em sua impecável composição do complexo personagem Severus Snape, a graciosa Emma Watson oferece um positivo contraponto como a eloqüente e exibicionista Hermione Granger. Porém, os dois pólos personalísticos de maior relevância na trama (Lorde Voldemort e o hipertrofiado personagem-título) sofrem com as preleções compositivas hiper-estimadas de seus personagens, visto que nem Ralph Fiennes demonstra aqui o talento superlativo que o tornara célebre noutros filmes nem o inexpressivo Daniel Radcliffe é capaz de dotar de exigida significância o portentoso personagem a que ficara associado desde a infância.

Assim sendo, diversas seqüências que soam credíveis no romance original, principalmente quando dizem respeito aos compreensíveis auto-questionamentos do protagonista acerca das dificuldades vitalícias que enfrenta por ser o único capaz de enfrentar o vilanesco Voldemort, carecem de vigor no filme, tamanha a desenxabidez do ator protagonista. A forçação de barra espirituosa na composição do insosso personagem Ron Weasley (cada vez menos competente na interpretação de Rupert Grint) e os gritos clicherosos a que Helena Bonham Carter se submete como a espalhafatosa Bellatrix são os elementos que mais prejudicam a autenticidade aventurosa deste filme, seguidos de perto pelos cacoetes preguiçosos dos demais componentes da trupe de Voldemort, como o tolo Rabicho (Timothy Spall) ou o progressivamente nulo Lucius Malfoy (Jason Isaacs).


Em relação às interpretações dos correligionários de Harry Potter, lamenta-se a pletora desperidçada de personagens secundários, que, apesar de contar com nomes imponentes como David Thewlis (Lupin), Rhys Ifans (Xenophilius Lovegood) ou Bill Nighy (ministro Rufus Scrimgeour), felizmente foi suprimida no primeiro quartel do bom roteiro de Steve Kloves, mais dinâmico na descrição quase dispensável dos eventos matrimoniais que ocupam várias páginas do livro de J. K. Rowling. Ainda falando-se no roteiro de Steve Kloves, cabe laureá-lo positivamente pela solidez com que ele apresenta as disputas de poder entre os bruxos, destacadas em seu viés político-administrativo partidário, conforme já mencionado, em que parece de muito bom tom destacar o letreiro “magia é poder” que estampa as paredes do Ministério da Magia a que o trio de protagonistas consegue penetrar disfarçadamente, focalizar em primeiro plano várias notícias de jornais e/ou capas de livros relevantes para o desenrolar da trama e filiar a maturidade irrefreável (inclusive, no patamar físico) dos personagens a outros componentes bem-sucedidos da equipe técnica. Neste sentido, é perfeitamente compreensível e louvável constatar que a trilha sonora de Alexander Desplat não mais evoca os temas encantatórios de John Williams para os primeiros filmes da cinessérie, perceber que a direção de fotografia de Eduardo Serra prioriza tão positivamente as belezas geológicas dos cenários em que Harry, Hermione e Rony se escondem durante a busca pelas Horcruxes perdidas e admirar-se diante da bela cena em que Harry Potter e Hermione Granger dançam ao som de “O Children”, do amargo grupo de ‘rock’ australiano Nick Cave and the Bad Seeds. Os personagens cresceram – por dentro, por fora e também no que diz respeito à condução das expectativas espectatoriais.


Por fim, qualquer pretensa crítica deste filme que se almeje minimamente respeitosa aos apanágios fílmicos (tanto positivos quanto negativos) deve salientar com entusiasmo a entrada em cena do excelente personagem Dobby, um elfo doméstico habituado à taciturnidade ditirâmbica, ou seja, à vocação nata à servidão quase masoquista aos desejos de seus amigos, personagem fantástico que aqui ressurge ainda melhor construído psicologicamente do que sua aparição anterior no fraquíssimo “Harry Potter e a Câmara Secreta” (2002, de Chris Columbus). A fecundidade com que ele faz uso de seus poderes mágicos num calabouço onde os bruxos estavam confinados e a grandiosidade sacrificial de seu falecimento (não tão dramático quanto o do livro, mas ainda assim carregado de emoção) fazem com que Dobby responda pelos momentos mais efetivamente climáticos deste filme, que , mesmo sem inovar no plano narrativo como fora feito por Alfonso Cuaron no ótimo “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), se dá ao luxo de momentos grandiosos de cinema hollywoodiano, como a seqüência animada que explica o subtítulo do filme (“As Relíquias da Morte”), o triste momento em que Hermione é obrigada a apagar a sua própria existência da memória de seus pais “trouxas”, a já citada cena em que Harry e Hermione dançam ao som de uma canção melancólica e o breve funeral de Dobby à beira-mar.

A saturação de efeitos especiais combativos poderia ser evitada nalguns momentos e o inevitável desconforto que se instaura quando o filme é interrompido depois de irregulares 146 minutos de duração ao menos é compensado pela certeza de que a permanência de David Yates enquanto condutor directivo garantirá que a segunda parte deste capítulo final da trajetória profética do bruxo seja dotada de toda a emoção rememorativa e ambígua que pelo menos metade das adaptações cinematográficas dos livros de J. K. Rowling ficou devendo...

Wesley Pereira de Castro.

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