Apesar de não ser (ou parecer) tão essencial na análise deste filme uma comparação tramática com a obra de Jack Kerouac que lhe deu origem, pode-se dizer que o roteiro de Jose Rivera não traiu o romance acerca da reprodução de seus principais fatos e percursos geográficos. No que tange à composição dos personagens, entretanto, as diferenças são cavalares.
Se o romance original, publicado em 1957, apresenta algumas limitações compositivas que não necessariamente resistiram ao tempo – sendo muito mais compreendidas por quem conhece a fundo as peculiaridades do moralismo estadunidense do final da década de 1940, quando se passam os eventos – no filme, algumas transmutações personalísticas prejudicam deveras a adesão empática ao périplo do protagonista. Na obra kerouaquiana, Sal Paradise, alter-ego do escritor, conhece Dean Moriarty após um divórcio, ao passo que, no filme, o encontro se dá após o velório do pai do primeiro, o que não apenas reforça o eco narrativo com a busca sintomática do segundo pelo pai desaparecido como transforma o narrador num filhinho-de-mamãe antipático e psicologicamente amorfo.
A atuação desenxabida de Sam Riley hipertrofia a má composição do personagem, muitíssimo menos interessante que a sua inspiração literária. E, só por este detalhe, pode-se antecipar que não tinha como este filme dar certo...
Em contraponto à atuação apática de Sam Riley, Garrett Hedlund tenta dotar Dean Moriarty do cafajestismo sedutor que explica o porquê de todos a seu redor ficarem tão apaixonados por ele, mas, para além da extrema beleza física do ator e de sua imponente voz grave, os méritos actanciais não são bem-sucedidos: compreendemos que ele seja irresponsável, mas não apreendemos o fascínio que o narrador insiste em atrelar a ele.
Surpreendentemente, as duas melhores presenças humanas em “Na Estrada” correspondem a personagens secundários, no caso, Marylou, a (ex-)esposa adolescente de Dean e Carlo Marx, um poeta homossexual inspirado em Allen Ginsberg. A primeira, muitíssimo bem-vivida pela criticamente subestimada Kristen Stewart, é sabotada pelo conservadorismo exibicionista do roteiro – que insiste numa pudicícia visual não condizente com seu liberalismo oral advindo do livro – mas, ainda assim, protagoniza pelo menos uma excitante cena, em que masturba simultaneamente os dois amigos protagonistas, enquanto um deles dirige um automóvel em alta velocidade.
O segundo, interpretado por Tom Sturridge, tem a seu favor um dos melhores diálogos do filme, quando, ao lamentar a indiferença de Dean Moriarty em relação a ele – não tanto pela sexualidade, mas por não retornar os seus telefonemas carentes –explica a Sal que o que sente “não pode ser definido como ‘coração partido’, pois isto seria muito banal, nem como ‘melancolia’, pois isto seria bastante langoroso, mas talvez possa ser adequadamente descrito como ‘pesar’”. Neste momento, entendemos o impacto ‘moriartiano’ sobre aqueles personagens.
Ainda em relação ao elenco, Viggo Mortensen tem alguns bons momentos como um personagem que lembra bastante William S. Burroughs, enquanto Amy Adams e Kirsten Dunst estão apenas corretas em suas composições de mulheres relegadas à espera conjugal, e Alice Braga dota a aguerrida imigrante (ao menos, no romance original) Terry de uma vacuidade atroz, naquela que periga ser a mais grave displicência adaptativa em relação ao texto original. A montagem de François Gédigier e a direção fotográfica de Eric Gautier apelam para uma agilidade elíptica e cálida, a fim de transmitir ao espectador o empreendedorismo emocional das quatro viagens do protagonista, mas não conseguem dirimir o enfado que se instaura ao longo dos 137 minutos de duração deste filme, musicado de forma pouco inspirada pelo competente e costumeiramente ousado Gustavo Santaolalla.
Conforme insinuado anteriormente, se o livro já apresenta algumas evidentes manifestações arrítmicas, no filme, estas foram subsumidas a uma equanimidade entre o tédio que os personagens alegam sentir em mais de uma seqüência e o aborrecimento que toma de assalto o espectador, exposto ao obtuso anacronismo moral da encenação.
À guisa de conclusão, cabe trazer à tona um questionamento acerca da estranha (ou oportunista) decisão do roteirista em estender o assédio que Dean sofre de um homossexual mais velho (vivido por Steve Buscemi) em sua terceira viagem pelos EUA, convertendo o que era apenas uma bravata de meia-página no romance em uma cena de sexo prostituído que deixa Sal Paradise, a ponto de este brigar com seu amigo pródigo por causa disso. Se, na biografia do escritor Jack Kerouac, é bastante emulado o suposto envolvimento homoerótico com o companheiro Neal Cassady (que inspirou o personagem Dean Moriarty) e esta mesma emulação é fundamental para se entender o imediatismo com que Sal decide se atirar na estrada ao lado do amigo ou com o interesse de reencontrá-lo, por que esta a mencionada cena de desentendimento entre amigos, que beira a homofobia, foi efetivada? Seja qual for a resposta para esta indagação, perdura no filme um alquebramento lamentável: o de que ele é uma traição hodierna ao espírito ‘beatnik’!
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
NA ESTRADA ('On the Road') EUA/Inglaterra/ Brasil/França, 2012. Direção: Walter Salles.
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