Numa passagem emocionante do livro “Ilusões Perdidas”, publicado por Honoré de Balzac em 1843, o protagonista Lucien de Rubempré ouve de alguém preocupado com o seu bem-estar que “a amizade perdoa os erros, os gestos irrefletidos da paixão; mas deve ser implacável com a decisão firme de mercadejar a alma, o intelecto e o pensamento”. Apesar de pertencer a uma tradição dramático-histórica radicalmente distinta do estilo cômico a que este filme está associado, tal citação é pertinente para se entender o quão oportuna é a exortação do relacionamento entre o protagonista John Bennett (Mark Wahlberg) e seu ursinho de pelúcia maconheiro Ted (dublado pelo próprio diretor e roteirista Seth MacFarlane), magicamente tornados “companheiros de trovoadas” desde a infância.
Porém, se no plano moral, o filme parece bem-sucedido em seus objetivos, em seus meandros efetivamente cinematográficos, ele soçobra a passos largos, desdenhando a segunda metade do conselho amistoso utilizado como epígrafe deste texto.
Apesar de algumas piadas serem, de fato, violentamente engraçadas em sua forçação de barra irônica, o roteiro do filme é deveras irregular e a direção do filme é opaca, prejudicando sobremaneira o desempenho extensivo das referidas piadas.
Conhecido e bastante elogiado pela concepção do ótimo seriado televisivo animado “Uma Família da Pesada” (em exibição desde 1999), Seth MacFarlane é indubitavelmente meritório enquanto argumentista e dublador, mas, nesta sua primeira experiência em longa-metragem, não dispôs de autoridade suficiente para conduzir os atores, que, apesar de carismáticos, não apresentam bons desempenhos. A composição caricata do personagem vilanesco de Giovanni Ribisi (o afetado Donny), a vacuidade persecutória do insosso personagem de Joel McHale (Rex, o patrão da namorada do protagonista humano) e a graça desperdiçada da personagem de Jessica Barth (a vulgar atendente de supermercado Tami-Lynn) são demonstrações efetivas da insegurança directiva de Seth MacFarlane, também manifesta em relação aos personagens principais, visto que Mila Kunis parece perdida em cena em diversos momentos (vide o exagero nojoso da cena em que ela precisa coletar as fezes de uma prostituta no chão de seu apartamento) e Mark Wahlberg dá a impressão de estar inadequado em seu papel, não obstante a sua caracterização ser bastante correlata à descrição teórica que sua namorada insiste em fazer dele. A única interpretação bem-sucedida em todo o filme, portanto, sem considerar os artistas que aparecem como si mesmos, é justamente a do desbocado ursinho protagonista...
Muitíssimo bem vivificado pela própria voz de Seth MacFarlane, o ursinho Ted é tão personalisticamente coerente que, para além das convenções do gênero cômico, sua existência bizarra é facilmente assimilada, em termos de verossimilhança cotidiana. O uso deveras oportuno da gravação sonora de “eu te amo” contida em sua programação original enquanto brinquedo numa cena de despedida é boníssima, bem com o senso de humor emocionalmente integrado à amizade sincera que ele apregoa em relação ao seu proprietário desde a infância. Nesse sentido, o apotegma inicial da narração (“não importa o quão especial tu sejas, depois de algum tempo ninguém vai te dar a mínima!”) também ajuda a naturalizar os comportamentos desordeiros de Ted, que, em quase todas as seqüências em que aparece, está ingerindo maconha ou proferindo ironias contra o cristianismo. Toda a seqüência da festa em que Ted fica sob efeito de cocaína e a hilária seqüência da luta com John, em que ele faz questão de utilizar uma Bíblia Sagrada como arma, demonstram que, se o filme confiasse mais na agilidade nonsense de seu protagonista peludo (como ocorre em relação ao bebê psicótico e ao cachorro falante no seriado animado concebido por Seth MacFarlane), ele seria muitíssimo mais divertido e satírico. O quartel final xaroposo e pretensamente aventureiro da produção, entretanto, atraiçoa o que tínhamos visto até então, tornando-o quase tão anódino (no mau sentido do termo) quanto “Garfield – O Filme” (2004, de Peter Hewitt), personagem inclusive mencionado numa comparação mastológica inolvidável!
Analisando o filme em cotejo com as expectativas que ele desencadeou, o mesmo demonstra-se francamente decepcionante e, quiçá, limado em seu poderio sardônico por exigências produtivas, não obstante a quantidade de vezes em que o nome de Seth MacFarlane é repetido entre as referências técnicas. O excesso de piadas com flatulências e a subsunção a um discurso de readequação capitalista que é legitimado pela instância narrativa (Patrick Stewart, muito bom) quando anuncia os destinos dos personagens na seqüência anterior aos créditos finais demonstram pusilanimidade do filme em relação aos trabalhos prévios do roteirista, mas as seqüências protagonizadas pelo canastrão Sam J. Jones [astro de “Flash Gordon” (1980, de Mike Hodges), filme favorito dos personagens] e pela cantora Norah Jones (que também canta o tema principal do filme, “Everybody Needs a Best Friend”), além das menções e da hilária aparição do ator Tom Skerritt, recuperam provisoriamente a verve satírica e hollywoodianamente influente da produção.
“Ted” é um filme inegavelmente engraçado, mas tem como prerrogativa assimiladamente negativa o fato de achar-se muito mais interferente do que realmente é, quando, como bem demonstra o aguardado reatamento do romance entre John Bennett e sua namorada Lori, ele se aproveita de uma forma supostamente inaceita de humor negro para reiterar a ordem social vigente. O virulento ursinho Ted incomoda, perturba, desconcerta, mas, afinal, é somente por causa dele que tudo continua como antes: não é suficientemente evidente o que isto quer nos dizer enquanto discurso?
Wesley Pereira de Castro.
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