“Boudu Salvo das Águas” (1932, de Jean Renoir) é, sem dúvidas, um paradigma internacional acerca das possibilidades cômicas e analíticas sobre as divergências de classes sociais num contexto contemporâneo. Regravado em 1986 por Paul Mazursky (sob o título “Um Vagabundo na Alta Roda”), a trama deste filme – na verdade, baseada numa peça escrita em 1919 por René Fauchois – sofreu uma drástica atualização, transmutando a criticidade quase anarquista da obra original num humorismo formulaico, que tende muito mais a reiterar as diferenças de classe do que a questioná-las, sob a desculpa falaciosa da tolerância advinda da convivência esporádica entre elas. Esta tendência é bastante recorrente no cinema hollywoodiano, engendrando obras tão diversas quanto “Trocando as Bolas” (1983, de John Landis), “Um Salto Para a Felicidade” (1987, de Garry Marshall) e “Três Trapalhões da Pesada” (1987, de Michael Schultz).
Apesar de ter sido realizado no mesmo país em que René Fauchois nasceu, “Intocáveis” é um filme que, lamentavelmente, está filiado de maneira oportunista ao pior dos projetos tramáticos até então citados, visto que são diversos os pontos de contato formal entre o seu enredo e a sinopse do horrível filme protagonizado por The Fat Boys. O fato de “Intocáveis” ter sido baseado numa história real, entretanto, nos leva a repensar a negatividade desta filiação...
Centrado na amizade desenvolvida entre um tetraplégico branco e milionário (maravilhosamente interpretado por François Cluzet) e um senegalês desbocado e pobre (vivido por Omar Sy, que dota o seu personagem de um humor que não raro beira a vulgaridade), o roteiro escrito pelos próprios diretores é muitíssimo mais efetivo em sua metade final que no desfile de lugares-comuns apresentado no início, tão previsível quanto as produções hollywoodianas assimiladas nos acostumaram a esperar que fosse. Se o contraste entre os hábitos refinados e burguesamente afetados do milionário Philippe e o cotidiano caótico do até então desempregado Driss não chama a atenção pela originalidade, há de se notar que as piadas envolvendo o que se convencionou chamar de “politicamente incorreto” são realmente inspiradas, como o instante em que Driss testa a insensibilidade dos nervos da perna paralisada de seu patrão derramando água fervente sobre ela, o chiste envolvendo o Teleton (maratona televisiva destinada a angariar fundos monetários para pessoas que são afligidas por deficiências físicas e/ou psicológicas) ou quando ele propõe que, a fim de que o tetraplégico eduque melhor a sua filha adolescente, ele a atropele com a sua cadeira de rodas.
Além disso, o conteúdo de tais piadas é essencial para que entendamos o que Philippe quis dizer quando alega que acha positivo que Driss não sinta compaixão dele enquanto assume as funções de seu empregado pessoal. Entretanto, as diversas situações chavonadas envolvendo a profusão libidinosa de Driss, que trata de forma machista quase todas as mulheres que atravessam o seu caminho, ou as blagues relativas à fetichização da arte erudita pecam pela superficialidade de sua elaboração, ainda que pareçam ocasionar gargalhadas da platéia, conforme detectado na cena em que Driss acha absurdamente ridículo assistir de forma respeitosa a um cantor de ópera fantasiado de árvore enquanto canta em alemão.
A exposição recorrente dos problemas de gueto que circundam o cotidiano pobre da família de Driss, por sua vez, resvalam numa pusilânime adesão ideológica a um “estado de coisas” capitalista mantido pela suposta incapacidade dos moradores de áreas periféricas de reagirem a problemas como o tráfico voluntário de drogas, a procriação desmesurada e a inevitabilidade subempregatícia. O modo como a família e equipe de Philippe aceitam de bom grado algumas atitudes coercitivas de Driss – como interceptar com violência um motorista que estacionou numa área proibida ou intimidar agressivamente um ex-namorado da filha de seu contratador para que ele se desculpe por tê-la xingado de puta – convalida estruturalmente as más condições de vida que Driss insistia em levar, inclusive acostumando-se a depender da previdência estatal para receber dinheiro sem trabalhar. Tudo isso, aliado à subsunção ostensiva do filme aos mais evidentes clichês do gênero, faz com que “Intocáveis” seja muito perigoso socialmente, para além das boas intenções filantrópicas percebidas em seus créditos finais, que anunciam que 5% de toda a renda do filme serão destinados a instituições que cuidam de pacientes tetraplégicos.
Descontados todos os ônus políticos do filme – que, definitivamente, não são poucos – há que se concordar que “Intocáveis” possui um bom ritmo tramático (o que, mais uma vez, é explicado por sua extrema similaridade a diversos produtos congêneres hollywoodianos), conta com ótimas interpretações do elenco secundário [Anne Le Ny (Yvonne) e Audrey Fleurot (Magalie), principalmente], é marcado por uma bela trilha sonora incidental de Ludovico Einaudi (contrabalançada pelo excesso de canções estadunidenses reverenciadas por Driss) e beneficia-se adequadamente de uma perspectiva compartilhada entre os dois protagonistas, que vai além da mera comparação entre cotidianos no quartel final, quando o tema da amizade sobrepõe-se ao das diferenças cômicas de classe.
A partir de então, as brincadeiras com o bigode de Philippe, a percepção funcional da educação artística de Driss e o enfrentamento conjunto de seus problemas de relacionamento e de sociabilidade tornam verossímil e muito emocionante a aparição dos homens reais que inspiraram a trama do filme, Philippe Pozzo di Borgo e Yamin Abdel Sellou, cujos destinos verídicos de companheirismo duradouro são anunciados antes dos créditos finais. Graças a esta imagem documental muito bem assimilada à trama reconstitutiva, “Intocáveis” atenua o desconforto preconceituoso que não é convenientemente disfarçado pela tendência sumamente espirituosa do enredo. É um filme para ser visto e analisado com muito zelo sociológico, pois tende a ser tão perigoso e traiçoeiro quanto a tradição desgastada de humor à qual se coaduna...
Wesley Pereira de Castro.
e eu não discordo de você, e a risada não é um ato exclusivamente legitimador do preconceito, a reflexão e a emoção as vezes não andam juntas e isso é perigoso você tem razão... se eu assistisse esse filme sozinho eu ia odiar tanto ou mais que você.... mas eu repito concordo com todas virgulas de seu texto!
ResponderExcluirE eu sorrio porque tu existes, Jadson, e porque não me deixaste ficar só na sessão...
ResponderExcluirAliás, quanto a termos visto o filme juntos, cabe destacar que, no quesito elogio à amizade, a imagem documental que realçou por alguns segundos algo de efetivamente belo no filme, não seria a mesma coisa se eu estivesse sozinho...
Mas que venha o perigo: estamos aqui para enfrentá-lo! (WPC>)