domingo, 4 de novembro de 2012

FRANKENWEENIE ('Frankenweenie') EUA, 2012. Direção: Tim Burton.

Numa das cenas mais propositalmente suspeitas, porém incisivas, deste filme, o pai do protagonista infantil exibe diante dele dois garfos – um espetando um camarão; outro, um pedaço de carne bovina – e discorre sobre a possibilidade de coadunar duas opções aparentemente incongruentes numa mesma atividade. Segundo este personagem, frente a um dilema acerca do que escolher, o mais adequado seria amalgamar ambas as proposições, discurso que vem servindo para justificar a carreira de Tim Burton desde que ele começou a trabalhar como animador nos Estúdios Disney, onde concebeu filmes fantasiosos que são, ao mesmo tempo, lúgubres e autorais, conforme o seu realizador deseja, e simpáticos e bem-sucedidos comercialmente, conforme os seus produtores exigem.

Sendo “Frankenweenie” a regravação de um curta-metragem homônimo que o diretor realizou em 1984, ainda no início de sua carreira, é muito coerente e oportuno que tal discurso paterno seja tão ostensivamente compartilhado com o espectador (os garfos são focalizados sob o ponto de vista do personagem aconselhador, inclusive): mais uma vez, Tim Burton empreende um filme que lhe permite fazer as pazes consigo mesmo! 

 Tendo se dedicado, nos últimos anos, à refeitura de obras anteriormente realizadas por outrem – com resultados que, salvo “Sombras da Noite” (2012), estão aquém do esperado, tanto num cotejo com os alvitres do próprio diretor quanto com os filmes originais – Tim Burton aproveita cada fotograma de “Frankenweenie” para citar a si mesmo e justificar a qualidade técnica, emocional e conteudística de seu conjunto de obra: para além de referências pontuais e geniais a clássicos como “A Noiva de Frankenstein” (1935, de James Whale), “O Vampiro da Noite” (1958, de Terence Fisher, exibido na TV) e “Gremlins” (1984, de Joe Dante), o principal alvo citacional desta obra são mesmo as produções anteriores de Tim Burton, meritórias e suficientemente singulares para justificarem esta homenagem sem recair na autocomplacência ou na bazófia.

 Por mais que alguns espectadores não percebam que o nome da personagem dublada por Winona Ryder neste filme faz menção à atriz (Elsa Lanchester) que interpreta a personagem-título do filme whaleniano destacado (cuja famosa mecha branca no cabelo vertical é incutida na cadelinha Persephone), que a tartaruga de um dos colegas de Victor traz à tona o nome da escritora londrina que escreveu a obra literária capital em que Tim Burton se inspirou [“Frankenstein” (1818), de Mary Shelley] ou que a amalgamação entre um gato e um morcego menciona humoristicamente o frenesi animalesco filme danteano, ainda assim, este filme é prenhe de diversão tragicômica, justificando mais uma vez a acertada incursão à mesa do pai de Victor Frankenstein (dublado muito convenientemente por Martin Short).

Entretanto, a fruição adequada deste filme suplica pelo reconhecimento das características insignes do estilo burtoniano. Não apenas por estender muito bem (exceto por alguns aspectos de sua meia-hora final) a trama do curta-metragem homônimo “Frankenweenie” (1984), em que um garotinho revive o amado cachorrinho que fora atropelado, este filme chama positivamente a atenção dos fãs do diretor desde a sua seqüência metalingüística inicial, quando, ao apresentar para a família um filme que realizara em sua própria casa, o protagonista infantil Victor Frankenstein (dublado por Charlie Tahan) demonstra-se como uma reencarnação personalística do artista biografado em “Ed Wood” (1994), exibindo situações que já foram satiricamente representadas em “Marte Ataca!” (1996).

O plano geral que exibe as fachadas da vizinhança da família Frankenstein parece uma nítida versão em preto-e-branco do cenário de “Edward Mãos de Tesoura” (1990), o mesmo sendo dito acerca do sótão da casa do protagonista, em que ele se diverte solitariamente tanto quanto o garotinho atormentado que intitula o genial curta-metragem “Vincent” (1982). Tal qual o personagem principal de “As Grandes Aventuras de Pee-Wee” (1985), Victor locomove-se numa bicicleta e, quando está a realizar o seu grande experimento de reanimação, serve-se do auxílio de uma pipa em formato de morcego, catapultando-nos mnemonicamente direto para “Batman” (1988), filme que deu projeção comercial ao cineasta.

Na cena em que o jovem aprendiz de cientista desenterra o corpo de seu animalzinho, a ambientação do cemitério remete a “Os Fantasmas se Divertem” (1988), sem contar que a portentosa entrada em cena do professor Rzykruski (dublado por Martin Landau, intérprete do ator Bela Lugosi numa das obras-primas do diretor) reinstala um elogio à criatividade dos seres lutuosos que encontra eco em todas as obras anteriormente mencionadas, incluindo a sanha na persecução de objetivos que motivava o atribulado protagonista de “Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (2007), cuja trilha sonora é assemelhada aos crescendos adotados pelo músico Danny Elfman neste filme mais recente, ainda que a partitura à qual o seu mais recente trabalho esteja sendo comparado seja uma das poucas ocasiões em que ele não colaborou com o diretor.

 Demonstrada a exitosa reiteração dos caracteres burtonianos, até mesmo através dos elementos mais discretos da direção de arte e do estilo de animação – obviamente assemelhado ao encantatório “A Noiva-Cadáver” (2005, co-dirigido por Mike Johnson), lamenta-se que, mais uma vez, o roteiro de John August – colaborador habitual do diretor em seus filmes recentes – não sustente a atmosfera de autenticidade prometida no início e descambe para um clímax explosivo, clicheroso, desengonçado e pouco interessante (a monstruosa ressurreição mutante dos cadáveres dos animaizinhos dos colegas de Victor), que, apesar de confirmar a veracidade das palavras do professor Rzykruski sobre a necessidade de se realizar experimentos científicos com paixão, não esconde a convencionalidade de seus intentos no que diz respeito à obsedação do público infanto-juvenil do filme, acostumado a seqüências semelhantes nas outras produções dos estúdios Disney. Entretanto, a cena derradeira da produção é belíssima, mostrando os cachorros Sparky e Persephone trocando choques elétricos nasais de forma amorosa, enquanto a canção “Strange Love”, interpretada por Karen O, começa a ressoar na apresentação dos créditos finais, onde o diretor inclui um bem-vindo agradecimento a Barret Oliver, Shelley Duvall e Daniel Stern, atores do curta-metragem que deu origem a este filme, afinal, muito enternecedor em toda a comoção zoofílica que transmite.

A montagem de cenas com a expressão inane do entristecido Victor, depois que Sparky é atropelado, e as engraçadas situações em que pedaços do corpo do cachorro ressuscitado caem, mas que seu dono logo se antecipa em dizer que irá consertar, validam magnanimemente os versos da canção-tema do filme, que apregoa que “quando há beleza no interior, não há nada em seu exterior que a modifique”. É o que acontece em relação ao filme como um todo, que possui muitos equívocos, conflitos produtivos e desvios roteirísticos, mas, no que tange a emoção e coerência autoral, cumpre muitíssimo bem o seu papel: faz chorar, de tão belo que é!

 Wesley Pereira de Castro.

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