Steven Soderbergh é um diretor prolífico que transita competentemente por diversos gêneros cinematográficos: quando pronunciada, esta frase verídica denota pelo menos dois grandes encômios em relação à proveitosa trajetória deste cineasta em Hollywood, onde dispõe de cacife suficiente para erigir uma produtora de filmes independentes e realizar diversas atividades técnicas simultâneas (além de dirigir, ele costuma fotografar e montar seus filmes, entre outras funções). Porém, tanto um quanto o outro atributo esbarram num problema taxonômico essencial: é difícil reconhecer a temática recorrente dos filmes soderberghianos, identificar aquilo que pode ser associado especificamente ao seu estilo directivo.
Sendo responsável por filmes tão radicalmente distintos quanto o introspectivo “Kafka” (1991) e o extrovertido “Onze Homens e um Segredo” (2001), este diretor é digno de exaltações laudatórias pelo modo como consegue transitar entre terrenos enredísticos tão divergentes, mas que, afinal, são permeados por um rasgo tornado deveras ostensivo em “Magic Mike”: a predominância do superego enquanto instância subversora de uma determinada situação (moral).
Por mais evidente que esta predominância pudesse ser verificada no que tange à assunção tardia – porém efetiva e corrosiva – da verdade em “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989), à compreensão das mentiras sobrevivenciais em “O Inventor de Ilusões” (1993) ou às persecuções conscienciosas que se manifestam diante de condutas reincidentes em “Obsessão” (1995) e “Solaris” (2002), para ficar em apenas alguns exemplos, em “Magic Mike” ela ficou muitíssimo evidente.
Talvez o filme com que esta produção mais se coadune estilisticamente seja “Confissões de uma Garota de Programa” (2009), mas a impossibilidade provisória de ter acesso a ele leva-nos a compará-lo com “Full Frontal” (2002), cuja temática mais ampla e pretensiosa não elimina as similaridades formais com o percalço tramático do filme mais recente.
Roteirizado pelo novato Reid Carolin, “Magic Mike”, sinopticamente, é demasiado previsível: um jovem que sonha em ter o seu próprio negócio como restaurador de móveis trabalha às noites como ‘stripper’. Quando conhece um rapaz desorientado que insiste em ser seu melhor amigo, ensina a ele os estratagemas da profissão, mas a adesão do rapaz aos vícios da vida noturna faz com que ele se sinta traído, buscando consolo na irmã conservadora do mesmo, por quem, afinal, se apaixona. Desde a primeira cena do filme, é possível adivinhar como a estória vai acabar, mas, se algo surpreende neste enredo, isso diz respeito à progressiva diminuição da relevância no personagem-título (Channing Tatum) na condução da trama, visto que ele praticamente se torna um elemento psicológico intermediário entre os afãs pós-adolescentes do estouvado Adam (Alex Pettyfer) e as determinações conservadoras de sua irmã Brooke (Cody Horn), culminando para a predominância da última enquanto personagem com quem o roteiro mais se identifica moralmente, depois que a instável Joanna (Olivia Munn) demonstra-se comprometida com um rapaz cujo estilo de vida é muito diverso daquele que Mike se vincula profissionalmente, mas insiste em não se atrelar na vida pessoal.
Tal predominância é realçada pelo modo como a direção não se prende a apenas uma perspectiva personalística, seguindo à risca um conselho providencial do proprietário da casa de eventos em que Adam e Mike trabalham: “olhe para todas as mulheres [e, por extensão, pessoas], mas não foque em nenhuma!”. Se, num filme menos integrado a uma sutil recorrência temática, isto seria um grave problema, no filme soderberghiano, este é um aspecto elogiável, ainda que desenvolvido de maneira imponderada.
Prejudicado principalmente pelas más atuações de seu belo elenco (no sentido fisiculturista do termo) – em que a composição sagaz de Matthew McConaughey é uma honrosa exceção – “Magic Mike” transfere para o espectador um conflito que não é bem resolvido no filme: se os cacoetes da direção versátil de Steven Soderbergh (realçados pela montagem eficiente de Mary Ann Bernard, um dos nomes que ele utiliza para se “esconder” nos créditos) e a ótima direção de fotografia do próprio cineasta (sob o pseudônimo Peter Andrews) impressionam, a composição dos personagens e os clichês redentores do roteiro incomodam negativamente. Porém, quando os ‘strippers’ estão no palco, o filme atinge clímaxes impressionantes, tanto no que diz respeito ao distanciamento crítico com que emoldura a sensualidade dos dançarinos quanto no perfeito entrosamento entre os espetáculos intradiegéticos e a demonstração de uma inteligência bem-vinda no cinema contemporâneo. Em linhas gerais, o filme é tecnicamente primoroso, justificando os elogios que Steven Soderbergh angaria pela agilidade e coerência com que conduz os seus projetos, já tendo alcançado, inclusive, a proeza de ser indicado por dois filmes bastante diversos numa mesma cerimônia do prêmio Oscar [no caso, o extraordinário “Traffic” (2000) e o eficiente “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento” (2000)].
Apesar de ser um filme “menor” em seu numeroso ‘corpus’ – o que está longe de ser um demérito para um cineasta que realizou obras de grande fôlego político como “Che 2 – A Guerrilha” (2008) e “Contágio” (2011) – “Magic Mike” é assaz elucidativo acerca das intenções sub-reptícias que atravessam a impressionante habilidade de Steven Soderbergh em agradar concomitantemente público e crítica com filmes que misturam gêneros estadunidenses canônicos [o romance e o policial em “Irresistível Paixão” (1998); o drama histórico e o suspense em “O Segredo de Berlim” (2006)] e, ao mesmo tempo, erigir marcas registradas que parecem diluídas em sua sutileza, mas que manifestam-se certeiramente no rigor que ele imprime em cada obra. Neste sentido, a aplicação analítica da correlação paradigmática entre “Estados Unidos da América, dinheiro e idiotas” (mencionada pelos ‘strippers’ num momento de descontração), aliada à deslumbrante seqüência em que os mesmos parodiam o militarismo estadunidense num ‘show’ de 04 de julho (feriado da independência norte-americana) e a recorrência de motivos proto-empresariais/empreendedores nos diálogos, assume-se como temática sustentacular da predominância do superego que é enaltecida na condenação das drogas e do enriquecimento fácil e imoral que perpassa praticamente todos os seus filmes.
Steven Soderbergh é um cineasta que merece bastante atenção e esforço classificatório, visto que, nem bem as imagens de “Magic Mike” se sedimentam nas mentes dos espectadores e o seu diretor já está novamente comprometido com a pós-produção de dois filmes simultâneos [o televisivo “Behind the Candelabra” (2013), sobre a vida do célebre pianista Liberace, e “Side Effects” (2013), categorizado como ‘thriller’ dramático]. Definitivamente, a vastidão curricular deste cineasta impressiona, ainda que seja precipitado defini-lo como gênio!
Wesley Pereira de Castro.
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