Por motivos óbvios e bastante aguardados, a comemoração do centenário de Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), recebedor meritório da antonomásia “o rei do baião”, engendraria a necessidade de uma cinebiografia, o que se tornou mercadologicamente urgente diante da tendência cada vez mais usual das produtoras audiovisuais vinculadas à Rede Globo de Televisão de capitalizar – num viés batizado como “convergente” – até mesmo os detalhes das vidas pessoais dos artistas que ajuda a divulgar.
A contratação de Breno Silveira, consagrado por causa do equivocado e muito rentável “2 Filhos de Francisco” (2005), diminuiu as expectativas positivas acerca deste projeto, pois o fato de este diretor ter como arremedo de estilo menos uma temática recorrente que um problema mal-resolvido entre pai e filho, convertido em chamariz enredístico de todos os seus filmes, concentrou antecipadamente a trama de “Gonzaga – De Pai Pra Filho” num embate parcial entre as duas gerações familiares mencionadas no subtítulo.
A opção por iniciar o filme a partir da perspectiva de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (1945-1991), conhecido como Gonzaguinha – destacando-se evidentemente a ocasião em que o seu sucesso foi matéria de capa da revista Veja – foi muito bem-sucedida, visto que sua trajetória artística desmente paradoxalmente o mote (“filho de gato, gatinho é!”) proferido na rápida, humorística e quase desnecessária participação de João Miguel no trecho inicial do filme, quando associa o talento do jovem Luiz Gonzaga no traquejo com a sanfona à descendência do diligente Mestre Januário. Gonzaguinha, entretanto, não adquire o hábito pela sanfona (fato desdenhado no filme, apesar de um promissor ‘flashback’ sonoro no início, quando Luiz Gonzaga repreende o filho por estar tocando em seu instrumento musical), tornando-se um compositor de MPB e samba muitíssimo mais politizado (e amargurado) que o pai.
Há de se adiantar, portanto, que, apesar de sua incontestável genialidade musical, Luiz Gonzaga foi acusado de defender posicionamentos reacionários, conforme percebido em letras de canções deslumbradas como “Forró de Mané Vito”, “Nordeste Prá Frente” e “Canto Sem Protesto”, assaz entusiásticas, não obstante as duas últimas terem sido lançadas no final da década de 1960, quando o Brasil enfrentava uma ditadura política violenta, que, no filme, é televisivamente noticiada, mentirosamente, a partir de imagens extraídas do documentário “Jango” (1984, de Silvio Tendler).
Ao se mencionar a palavra-chave televisão, vaticina-se que este é o veículo midiático projetado como ideal para a transmissão deste filme, visto que, em mais de uma situação, ele adota uma formatação telenovelesca, em especial na primeira fase da vida de Luiz Gonzaga, a sua adolescência, quando é interpretado sem muita inspiração pelo simpático Land Vieira, e tem sua composição actancial desperdiçada num roteiro que exacerba suas dores amorosas e tenta obliterar sua participação colaborativa, enquanto militar, na Revolução de 1930.
A segunda vivificação de Luiz Gonzaga (a cargo do músico Chambinho do Acordeon), do final de sua mocidade à idade adulta, não é ruim, mas as situações dramáticas que enfrenta não são suficientemente credíveis a partir do roteiro escrito por Patrícia Andrade, exceto quando mostra o cantor e compositor entusiasmado nos palcos ao redor do País. Neste sentido, a reprodução do concerto na laje do Cine Rex, o encontro com o compositor Humberto Teixeira (cuja importância na carreira do cantor é estranhamente negligenciada) e a seleção dos músicos improvisados que se tornam ajudantes de palco são instantes inspirados, bem como a brilhante reconstituição do retorno de Luiz Gonzaga à sua cidade natal (Exu, interior em Pernambuco), numa situação que amalgama as letras de dois dos maiores hinos do cantor [“Respeita Januário” e “Samarica Parteira”], narrativos por excelência.
Se estes instantes fílmicos demonstram que há uma preocupação eminentemente cinematográfica em “Gonzaga – De Pai Pra Filho”, esta é negativamente contrabalançada pelo mau uso da trilha sonora incidental xaroposa de Berna Ceppas (que se presta a reproduzir a melodia de “A Deusa da Minha Rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj, na cena em que Luiz e a mãe de seu filho se conhecem), pela ridícula execução do “Adágio” de Tomaso Albinoni na seqüência em que o cantor descobre que seu filho está com tuberculose, mesma doença que vitimou a mãe do adolescente, e pela cena em que o pai quebra o violão do filho por flagrá-lo cantando “música de comunistas”, cuja pujança dramática é desperdiçada pelo excesso de cortes na edição impessoal (leia-se: mui profissionalizada e tecnicamente asséptica) de Vicente Kubrusly.
Apesar de o filme servir muito mais para atender às ansiedades internas do diretor que para apresentar Luiz Gonzaga às novas gerações, ele foi sobremaneira exitoso neste aspecto, aproveitando-se muito bem da comparação com documentações reais (gravações em cassete doméstico, fotografias, vídeos, etc.) de momentos célebres da vida do artista, além de elucidar aspectos complexos de sua relação com o filho Gonzaguinha, posto que, até 1981, graças à turnê “A Vida do Viajante”, pai e filho nunca tinham compartilhado um mesmo palco, não obstante ambos serem músicos conceituados e aclamados nacionalmente. As opções rememorativas para justificar a revolta de Gonzaguinha são precipitadas, mas o filme acerta ao não tomar partido nem de um nem de outro, aceitando o perdão e a admissão de erros por parte de ambos, numa seqüência reconciliatória visualmente forçada (exageradamente filmada à contraluz pelo competente Adrian Teijido) que, afinal, é verossímil e importante para o desfecho informativamente emocionante do filme, que conta com as excelentes interpretações de Adélio Lima e Júlio Andrade, responsáveis pelas vivificações dos artistas nas fases finais de suas vidas.
Aliás, deve ser destacada, para além das impecáveis atuações, a impressionante similaridade fisionômica – e, principalmente, vocal – entre os dois atores e os personagens biografados, tanto que, nalguns momentos, era difícil distinguir quando o filme estava a utilizar gravações reais ou ficcionais. Neste sentido, a escolha destes dois membros do elenco é digna de aplausos, o mesmo sendo dito para o adolescente Alison Santos (que interpreta Gonzaguinha quando criança), para Silvia Buarque (competente como a sua mãe adotiva Dina), para Cássio Scapin (magnífico como Ary Barroso) e para Luciano Quirino (firme e sincero como o amigo Xavier).
Num saldo geral, “Gonzaga – De Pai Pra Filho” é bastante regular enquanto produto audiovisual sujeito a uma avaliação crítica e irregular no que tange ao seu desenvolvimento rítmico. Dentre os seus méritos adicionais, estão a agradável canção-tema de Gilberto Gil (“Mundo do Lua”, um tanto deslocada em relação ao restante do filme), uma convincente adoção da narrativa oral entrecortada por lembranças visualizadas (o que reforça que esta não é uma biografia em sentido estrito, mas a análise coesa de um motivo relacional), e a inebriante execução de obras-primas musicais tanto de Luiz Gonzaga (“Qui Nem Jiló”. “Asa Branca”, a já citada “A Vida do Viajante”, em dueto com o filho) quanto de Gonzaguinha (a magistralmente aproveitada “É Preciso” e a inebriante “O Que É, o Que É?”, ao final, que intima a platéia a cantar junto).
As más atuações de Nanda Costa (Odaléia) e Magdale Alves (Helena) como as esposas do cantor e as inversões emotivas do enredo (as já mencionadas seqüências passadas em Exu, por exemplo) surgem como defeitos estruturais do filme, que tem como maior nódoa a própria vinculação ao projeto anistórico da Globo Filmes, que, conforme destacado na cena em que Helena e Luiz Gonzaga assistem à exposição do golpe militar de 1964 pela televisão, corroboram a afirmação do teórico da Economia Política da Comunicação Cesar Bolaño, quando este atesta que a Rede Globo de Televisão (e, por extensão, suas derivadas institucionais) “tende a dissolver inclusive tradições da nossa cultura cinematográfica, visto que a concorrência obriga a empresa vencedora a recontar a história do campo a seu favor”. Este é o problema maior do filme: ser rendido e subserviente, adjetivos que se adéquam muito bem aos propósitos falsamente conciliatórios do diretor Breno Silveira!
Wesley Pereira de Castro.
eu quis dizer e isso e não soube, obrigado.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAchei o filme muito emocionante. Chorei copiosamente pela história de pai e filho, a lembrança de minha vó nordestina e de todo tom dramático que me convenceu.
ResponderExcluirConcordo que algumas atuações ficaram abaixo, mas no geral, achei um bom filme. E ter centralizado a convivência de "Gonzagão" e Gonzaguinha me pareceu de melhor escolha do que tão somente a biografia do grande Lua. A relação deles nunca foi muito "esclarecida" do que rolava e foi bom um filme sobre isso.
Já era fã dos dois, saí da sala do cinema ainda mais!
Salve o Rei do Baião!
Um dos maiores símbolos da Cultura Nordestina, sem dúvida.
ResponderExcluir