Apesar de o primeiro filme [“Praying With Anger” (1992), ainda não visto] do diretor indiano radicado nos EUA M. Night Shyamalan ser pouco conhecido, a sensibilidade que ele demonstrou em “Olhos Abertos” (1998) chamou a atenção de parte da crítica, fazendo com que o filme fosse levemente cultuado alguns anos depois. Seu filme seguinte, “O Sexto Sentido” (1999), catapultou-o para a fama, em razão do genial final-surpresa, que escamoteava o simplismo de algumas passagens do entrecho, levando-o inclusive a ser indicado para os prêmios Oscar de Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original.
Daí por diante, cada um de seus filmes passou a ser acompanhado com redobrada atenção: a inusitadíssima abordagem do tema dos super-heróis cotidianos em “Corpo Fechado” (2000) arrebanhou inúmeros fãs; os arroubos sociológicos e religiosos deveras oportunos de “Sinais” (2002) foram recebidos com entusiasmo; e a obra-prima “A Vila” (2004) teve seus méritos reconhecidos por alguns, mas foi acolhido com desconfiança pelos adeptos dos filmes de terror, tamanha a quantidade de inovações exorbitantes que o diretor impingiu, provocativamente, no que parecia ser um exemplar típico do gênero. Após isto, ele se repetiu conceitualmente em “A Dama na Água” (2006) e se mostrou formulaicamente desgastado no interessante mas incompreendido “Fim dos Tempos” (2008), tendo, em seguida, demonstrado uma preocupante falência criativa no horroroso “O Último Mestre do Ar” (2010), deleteriamente infantilizado.
Em virtude desta trajetória tão peculiar, as expectativas depositadas sobre o mais recente lançamento do diretor – sem dúvida, um dos mais autorais surgidos em Hollywood nos últimos anos – eram amplificadas, menos por causa das possibilidades qualitativas do mesmo (o fato de o argumento original ter sido escrito pelo astro Will Smith era bastante duvidoso) que pelo receio de serem confirmadas as suspeitas de que o diretor chafurdara na mediocridade cara a muitos realizadores de arrasa-quarteirões norte-americanos. Felizmente, não foi o que aconteceu: apesar do sobejo de concessões hollywoodianas, M. Night Shyamalan conseguiu trazer à tona um filme surpreendentemente pessoal, irregular em seu conjunto, mas profundamente entretenedor e inventivo.
Não obstante o filme ser prejudicado pelos arroubos condutivos precipitados da trilha sonora de James Newton Howard (colaborador habitual do diretor, aqui menos inspirado) e pela parca competência do adolescente Jaden Smith, que não faz jus à extrema responsabilidade actancial que ficou a seu cargo, o filme equilibra muito bem as marcas registradas de Alfred Hitchcock e Steven Spielberg, influências confessas do realizador. Do primeiro, o diretor demonstrou ter compreendido proficuamente as intuições teoréticas referentes à condução do olhar, existindo no filme diversas passagens e ângulos inusuais de câmera que confirmam esta compreensão, em especial, da noção de que a identificação primária do espectador é em relação à câmera, e não em relação ao olhar do protagonista do filme. É por esse motivo que, quando se dirige ao filho Kitai, o personagem de Will Smith exige que ele olhe diretamente nos olhos de seu interlocutor. Mais à frente, sempre que ambos os personagens pronunciam algo de forte relevância moral ou pragmática no decorrer do enredo, os seus intérpretes encaram diretamente o espectador, mesmo que este contato ocular seja permitido somente a partir de enquadramentos tecnológicos intradiegéticos.
Além disso, algumas cenas são contrabalançadas por uma perspectiva externa aos dois personagens centrais, destacando-se o momento em que Kitai analisa as condições danosas da nave que acabara de cair numa versão futurista e selvagem do planeta Terra e acompanhamos as suas ações por detrás de uma cortina plástica que abre e se fecha diversas vezes e o instante em que ele é arrastado por algum ser vivo quando está inconsciente por conta do frio atmosférico, para, somente em seguida, descobrirmos que seu salvador fora a ave de rapina que aparentemente o perseguia para matá-lo em represália à destruição do seu ninho. Do segundo diretor influente, M. Night Shyamalan serviu-se da basilar apologia ao conceito de família, porém retrabalhado num viés bastante particular.
Se, nos filmes shyamalanianos anteriores, as famílias desfeitas e/ou assimétricas eram constantes [pensemos no avô falecido de “Olhos Abertos”, na mãe solteira de “O Sexo Sentido”, na esposa falecida de forma súbita e traumática em “Sinais” ou nos parentes afligidos pela violência urbana em “A Vila”, para ficar em apenas alguns exemplos], em “Depois da Terra”, esta obsessão temática do diretor (e também de seu mentor directivo) é transmutada num dos maiores clichês do cinema estadunidense: a redenção do pai que se afasta de casa por causa de compromissos empregatícios.
Num lance impressionante de genialidade reprodutiva, o diretor bifurca esta ausência em dois meandros: o literal, visto que o general Cypher Raige está comumente viajando pelo espaço para proteger a raça humana que agora habita o planeta Nova Prime; e o simbólico (porém ainda mais literal), quando Cypher deixa de auxiliar o filho quando a comunicação cibernética entre eles é interrompida, em razão de um acidente sofrido por Kitai. Num pronunciamento perceptivo que se presta a mais de um sentido, o personagem quase desfalecido de Will Smith exclama, numa gravação destinada à esposa Faia (Sophie Okonedo) que perdeu o contato com o filho, algo que, tal qual ela reclamara mais de uma vez, fora constatado desde o primeiro encontro familiar mostrado no filme, quando os diálogos entre pai e filho dão-se mais pelo âmbito da autoridade militar que pela afetividade parental propriamente dita.
Por conta disso, apesar de o roteiro parecer redundante em sua legitimação de um discurso tipicamente recorrente no cinema mais trivial de Hollywood, as intenções demonstradas por M. Night Shyamalan são concernentes a uma exponenciação do que já estava presente em seus filmes anteriores. O mesmo poderia ser dito, aliás, para o ‘flashback’ inserido de forma brilhante em que Senshi, a filha falecida de Cypher (vivida por Zoë Kravitz) insiste para que o pai assopre, à distância e através da tela de um computador, as velas de seu bolo de aniversário, dizendo que, se ele realmente quiser, ele é capaz disso. Novamente trabalhando com signos hitchcockianos, esta cena, para além de sua emulação da felicidade familiar de outrora, serve para situar o espectador na adesão voluntária às convenções do gênero ficção científica, ao qual este filme se enquadra, malgrado incorrer em clímaxes de ação e num sobejo de efeitos especiais que são estranhos à sutileza estilística do diretor, que precisou se submeter aos mesmos para conseguir ter seu filme lançado, visto que os produtores duvidavam do potencial de bilheteria de seus filmes desde o declínio de criatividade insinuado no inventário do primeiro parágrafo. Conforme se percebe nas entrelinhas analíticas deste filme, a inscrição “um filme de M. Night Shyamalan” nos créditos é perfeitamente digna de merecimento e aplausos!
Por fim, já se tendo destacado os dois maiores problemas estruturais do filme, convém acrescentar que, se atuação de Will Smith não é de todo eficiente, ao menos ele corporifica com firmeza a galhardia de seu personagem. A direção fotográfica de Peter Suschitzky é maravilhosa e estupefaciente, inebriando-nos tanto na exposição das belezas naturais (ou melhor, reconstituídas) do planeta Terra mostrado na tela, onde não há mais humanos, quanto pelo meticuloso atrelamento aos demais membros da equipe para engendrar as soluções ousadas pretendidas pelo diretor em sua condução narrativa diferenciada, a partir de um roteiro que ele escreveu em colaboração com o idealizador de jogos eletrônicos Gary Whitta. Neste, a dialética entre a desobediência requerida enquanto iniciativa sobrevivencial e o rigor disciplinar exigido para quem está afiliado à conduta militar (a qual, no caso de Kitai, é problematizada desde o início, quando ele reprova numa progressão de patente) é bem explorada, abrindo possibilidades hermenêuticas que ultrapassam a previsibilidade funcional deste estratagema enredístico, visto que era óbvio que, nalgum momento, o estouvado Kitai precisaria desafiar as ordens de seu pai se quisesse salvá-lo, não obstante o filme versar justamente sobre o respeito inequívoco prestado às ordens do mesmo, afinal obedecidas quando a voz do pai não mais podia ser ouvida pelo filho.
Por falar em audição, os sentidos básicos do ser humano são evocados explicitamente num aconselhamento de Cypher, que orienta Kitai a prestar mais atenção às condições de sua situação presente, a fim de que, assim, o medo enquanto projeção do futuro seja dirimido (visto que, na lógica do filme, é uma escolha) e ele possa se tornar imune aos ataques da assustadora raça de monstros alienígenas batizada como ursa. Relembrando o quanto “A Vila” e as obras mais famosas do diretor são pontuais na explanação das funções sociais (e governamentais) do medo, tal conselho paterno é dotado de uma significância em muito superior ao mero componente narrativo que visa a designar a formação do caráter íntegro de Kitai, que, numa das últimas cenas, opta por trabalhar ao lado da mãe.
Lidando habilmente com as exigências hodiernas do mercado cinematográfico, M. Night Shyamalan conseguiu, neste filme subestimado e a principio trivial, contrabandear com habilidade os seus traços marcantes de personalidade artística, provando que ainda é um dos mais geniais diretores em atividade nos Estados Unidos da América. Por isso, os ostensivos defeitos do filme são quase irrelevantes frente à necessidade do diretor em ser fiel àquilo em que acredita e deseja expressar através de seus filmes...
Wesley Pereira de Castro.
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