Num momento providencial deste filme, descobrimos que a morte acidental de sua filha num jardim-de-infância foi o fato traumático que permitiu que a Dra. Ryan Stone, personagem de Sandra Bullock, se tornasse tão abnegada em relação ao seu trabalho como médica assistente da NASA. Nos créditos finais, o diretor Alfonso Cuarón dedica o filme à sua própria mãe. Apesar de aparentemente distanciadas, estas duas percepções são essenciais para compreender a função desempenhada por “Gravidade” (2013) na filmografia do cineasta, celebrado por sua habilidade técnica – em especial, no que diz respeito ao uso elaborado de planos-seqüências – mas também dotado de autoralidade, principalmente no que diz respeito à importância que a noção de maternidade desempenha em seus longas-metragens.
Se, por um lado, o tema da orfandade é central em obras como “A Princesinha” (1995) e “Grandes Esperanças” (1998), além de ecoar significativamente em “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), por outro, ele é transfigurado em “E Sua Mãe Também” (2001), cujo magistral roteiro ressignifica o tema da rebeldia juvenil que, numa olhadela bastante superficial, associaria este filme a outras produções protagonizadas por adolescentes ávidos por fazerem sexo. A ligação direta entre “Filhos da Esperança” (2006) e o filme mais recente, ambos atrelados ao gênero ficção científica, mas sob vieses completamente distintos, deixa ainda mais evidente o quanto a temática anteriormente abordada é provida de interesse analítico, não obstante obnubilada pelos malabarismos directivos e pela versatilidade consistente dos enredos.
A constância quase obsessiva de signos maternais/reprodutivos (a Dra. Ryan flutuando como se fosse um feto após ter se despido, pedaços de aeronave que adentram a atmosfera terrestre como se fossem espermatozóides fecundando um óvulo, nosso planeta antonomasiado como “mãe Terra”, etc.) leva-nos a constatar que, por detrás das limitações cíclicas da cadeia de perigos espaciais que ameaçam a vida da Dra. Stone, o que é privilegiado é a associação entre a sua gana por sobrevivência e a redefinição de seu instinto maternal, sendo a imagem final – um ‘contra-plongée’ da personagem, pisando firme na lama do local em que aterrissou – uma precipitada reelaboração darwiniana da primazia evolutiva da mulher sobre os demais espécimes animais, suspeitosamente contaminada pelo triunfalismo estadunidense que invade o enredo.
Por mais que as convenções do gênero tornem verossímil o sobejo de ameaças cósmicas que perseguem Ryan, a insistência no enfoque da bandeira norte-americana de seu uniforme de astronauta é dotada de um sentido muito maior que a mera casualidade gentílica, o que se torna absolutamente patente quando é noticiado que o satélite de um país outrora comunista foi autobombardeado por um míssil e na exposição das dificuldades experimentadas pela protagonista quando tenta manobrar veículos espaciais respectivamente controlados pela Rússia e pela China, cujas diferenciações alfabético-tipográficas aparecem como problema nodal, a ponto de ela brincar que ‘no sabe hablar chino’ quando se depara com um teclado de computador confeccionado a partir de ideogramas chineses. Todo este conjunto de empecilhos culturais (estrangeiros) para a sobrevivência da Dra. Stone em pleno espaço externo do planeta Terra é dotado de uma oportuna constituição nacionalista, que prejudica sobremaneira os pretendidos êxitos roteirísticos do diretor e de seu filho Jonás Cuarón. Em outras palavras, malgrado ser otimamente dirigido, eficientemente montado (pelo próprio diretor, em colaboração com Mark Sanger) e brilhantemente fotografado, o roteiro de “Gravidade” parece tão atirado a esmo quanto a personagem principal, em mais de um momento do filme.
Além de ter trabalhado em quase todos os filmes do diretor Alfonso Cuarón, o fotógrafo Emmanuel Lubezki também é conhecido por sua colaboração nos filmes recentes do diretor Terrence Malick, o que justifica o magnificente pendor naturalista na derradeira seqüência, quando uma belíssima tomada submarina permite que percebamos um anuro nadando ao lado de Ryan, quando ela tenta subir à superfície para respirar. Ao conseguir emergir, mosquitos circundam-na, antes que ela descanse na água por alguns minutos, antes de levantar-se tão imponentemente quanto uma heroína dos antigos filmes B de ficção cientifica, especialmente “O Ataque da Mulher de 15 Metros” (1958, de Nathan Juran). Não seria inadequado vincular o modo impávido com que a protagonista, decidida a sobreviver, adentra a paisagem natural desconhecida ao modo justificadamente invasivo com que as incumbências de colonização norte-americana são organizadas na contemporaneidade, através do soslaio simbólico preponderante da dominação cultural. Nessa perspectiva, o extraordinário recurso da filmagem em 3D é paradigmático, visto que a suscitação de reações somáticas por parte dos espectadores em relação aos objetos rapidamente deslocados na tela possibilita uma nova abordagem do caráter técnico das máquinas ópticas que, de acordo com o teórico Jean-Louis Baudry, é relacionado à prática científica (no caso, ao aprimoramento tecnológico das formas cinematográficas) “para mascarar não apenas o seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar. Sua base científica lhes assegura uma espécie de neutralidade e evita que se tornem objeto de um questionamento”.
Não é por acaso, portanto, que, graças ao uso genial de longos planos, às vezes realizando voltas de 360º, a visão do espectador confunda-se com a de Ryan Stone à deriva no espaço, tamanho o excesso proposital de ângulos que se confundem com o ponto de vista da protagonista no interior de seu capacete tecnologicamente muito desenvolvido. A periculosidade inerente a quase tudo o que circunda a Dra. Stone leva-nos a introjetar o seu ímpeto sobrevivencial, que se sobrepõe rapidamente ao anterior alquebramento deambulatório decorrente da perda de sua filha, quando ela confessa, entristecida, que costumava dirigir seu automóvel a esmo, quando saía do trabalho num hospital, pois não sentia ânimo de retornar para um lar solitário. No quartel final do filme, Ryan deixa claro que quer “voltar para casa” e, por causa disso, é dotada de uma determinação física até então entorpecida. A forma do filme está rigorosamente submetida ao seu conteúdo ideológico, portanto!
Tudo o que foi mencionado até este ponto faz com que a avaliação qualitativa deste filme seja balizada por aspectos que transcendem a pretensa evolução das técnicas cinematográficas (já que evolução parece um termo-chave do filme, cuja imputação nauseante sobre o acompanhamento espectatorial assume-se como uma espécie de metáfora compartilhada dos enjôos físicos de uma gravidez), mas que, ao mesmo tempo, fixam-se criticamente a tais aspectos, no sentido de que os estratagemas de contaminação ideológica destacados por Jean-Louis Baudry são demasiado evidentes.
Em outras palavras: por mais impressionante que seja esta obra quando analisamos os seus elementos técnicos de forma desmembrada (a direção é excelente, as atuações de Sandra Bullock e George Clooney são muito boas, a fotografia é acachapante), numa percepção mais geral, “Gravidade” soa mecânico em seu entulhamento de riscos físicos e em sua progressão repetitiva de situações que situam a vida da Dra. Stone no limiar invariável da superação. Conforme antecipado, tanto o roteiro é dramaticamente esvaziado em sua sujeição disrítmica às explosões, acidentes, incêndios e quedas (in)esperadas quanto a trilha sonora de Steven Price é aplicada de forma disfuncional em situações que seriam muito mais efetivamente assustadoras se conduzidas em silêncio (vide o instante genial em que a Dra. Stone crê que seu companheiro de equipe fora resgatado no módulo espacial chinês em que se encontrava).
Para além de seus alucinantes (no bom e no mau sentido) momentos de concatenação imagético-sonora, “Gravidade” é um filme que empilha diversos arremedos de clímaxes sensórios com o intuito de apregoar um discurso: a fim de caminhar novamente sobre a Terra que antes lhe intimidava por causa da generalização de um trauma familiar (hipertrofiado no espaço sideral quando a fotografia da família de um astronauta falecido flutua sobre o seu rosto destruído por uma colisão objetal), a Dra. Ryan Stone precisa atender ao conselho que seu amigo insistentemente bem-humorado lhe concede quando está prestes a zanzar pelo espaço. Diz-lhe ele: “tu precisas aprender a deixar ir”... A minuciosa correlação entre o que é percebido pelo espectador e aquilo que é visto pela protagonista, através da imitação de seu olhar, serve como canal de transmissão ideal deste conselho, que atrela-se a uma conjuntura de validação ufanista comum em Hollywood mas dissonante em relação à obra cuaroniana.
Aqui, maternidade e patriotismo se confundem de forma perniciosa, em que a habilidade elogiável no uso da perspectiva tridimensional serve para que o filme esteja dotado de uma “espécie de aparelho psíquico substitutivo, respondendo ao modelo definido pela ideologia dominante”, para citar novamente o vaticínio de Jean-Louis Baudry em seu famoso artigo de 1970, “Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base”, que nos ajuda bastante a compreender as intenções sub-reptícias do aprimoramento técnico deste filme.
Se, nos longas-metragens prévios do diretor, o que acontecia no entorno (sociopolítico) dos personagens estabelecia as transformações comportamentais que eles demonstravam ao longo de ótimos roteiros, em “Gravidade”, a motivação sobrevivencial da protagonista psicologicamente abalada é a mera explosão centrífuga de uma propensão ao domínio ambiental (e geográfico) que se encontrava adormecido na protagonista e que é imprescindível – segundo os desígnios condutivos do entrecho – que também esteja prestes a ser despertado nas reações do público. A ode embevecida à maternidade levada a cabo por este filme não é contingente, estando a propensão tematicamente autoral de Alfonso Cuarón infelizmente cooptada no processo de legitimação colonizatória estadunidense.
Wesley Pereira de Castro.
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