Apesar de a protagonista ser Alessandra Negrini e de a sua personagem alvoroçadamente angustiada estar presente em quase todas as cenas, o fato de este filme iniciar e terminar sob a perspectiva dos homens com que ela se envolve não é nada casual. Alegadamente inspirado na canção “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, cujo maior mérito é ser conduzida a partir de um eu-lírico feminino gradativamente autoconfiante, o roteiro de “O Abismo Prateado”, escrito por Beatriz Bracher em colaboração com o próprio diretor, ignora tudo aquilo que é relevante na letra da canção, desde o cínico desejo de felicidade declarado pelo amante que abandona a mulher até a tardia conquista de auto-estima desta última a partir da percepção de que fora amada “bem mais e melhor” por outros homens. O que resta é uma translação malfeita do trecho compreendido nestes versos: “quando você me deixou, meu bem/ (...)/ quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ mas, depois, como era de costume, obedeci”.
Difícil entender como o mesmo artista responsável pela obra-prima “Madame Satã” (2002) e pelo encantador “O Céu de Suely” (2006) – sem contar o excepcional “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes) – se deixou envolver num projeto tão superficial e entulhado de preconceitos de classe, que, se possui algum mérito infinitesimal, este está justamente em sua assunção involuntária como sintoma composicional: o filme é muito elucidativo em sua representação do cotidiano desenxabido da classe média carioca, em que comprar uma passagem de avião de um dia para o outro e hospedar-se solitariamente num motel de luxo são atitudes corriqueiras. Ou seja, se “O Abismo Prateado” acerta em alguma coisa é justamente quando ele mais erra na consecução das pretensões directivas, bastante evidentes, especialmente no que diz respeito ao desenho de som.
Dotado de um estilo consagrado, entre diversas virtudes, pela excelente utilização da trilha sonora, neste filme Karim Aïnouz perpetua associações constrangedoras com músicas xaroposas, principalmente na ridícula seqüência em que “You Make Me Feel Brand New”, da banda Simply Red, supostamente executada de forma diegética na cena em que a protagonista se senta no táxi de uma motorista (Carla Ribas) também atormentada por problemas amorosos, permanece sendo ouvida (de forma igualmente distanciada) quando ela desce do veículo. A pretensa ironia dramática relacionada à defasagem entre o tom positivamente declarativo da canção e o comportamento lamurioso da personagem soçobra consideravelmente dada a perniciosidade deste prolongamento não-diegético, que também acomete os momentos posteriores àquele em que a protagonista Violeta dança ao som de “Maniac”, de Michael Sembello, numa boate, ou quando ela ouve, por acaso, “Quando um Grande Amor se Faz”, na versão de Cleiton e Camargo, numa sorveteria praiana.
A entrada em cena da pequena Maria Isabel (Gabi Pereira), cuja simpatia é vergonhosamente forçada no instante em que ela dança ao som de “Só Love”, de Claudinho & Buchecha, só deixa ainda mais evidente o quanto o diretor foi tremendamente infeliz na seleção musical, não no que diz respeito à qualidade das canções – até porque ressignificar canções consideradas bregas ou excessivamente ‘pop’ é um dos elementos mais aplaudíveis de seus filmes anteriores [vide o seu ótimo segmento na produção coletiva “Desassossego (Filme das Maravilhas)” (2010)] – mas no modo desengonçado com que as mesmas aparecem. As exceções estão a cargo da partitura original de Tejo Damasceno, Rica Amabis e Dustan Gallas, em especial na cena da academia de ginástica, cujos acordes eletrônicos ouvidos num determinado ambiente hipertrofiam o mal-estar emotivo sentido por Violeta depois que escuta a mensagem de abandono de seu marido Djalma (Otto Jr.), somente mais tarde ouvida pelo espectador.
Voltando à questão das perspectivas masculinas que iniciam e terminam o filme – e que, por dedução, transformam o langor de Violeta num interstício secundário – vale lembrar que as primeiras imagens do filme mostram Djalma nadando à noite numa praia e, em seguida, caminhando de sunga pelas ruas circunvizinhas ao seu apartamento, ostentando uma expressão de enfado que antecipa a declaração de sufocamento e de desamor que ele grava na caixa postal do telefone celular de Violeta. O problema é que a cópula entusiasmada que se segue e o diálogo simpático que é travado entre ele e seu filho adolescente (João Vítor da Silva), através da porta vítrea de um banheiro, tornam inverossímil a ruptura súbita da relação amorosa (e familiar) duradoura que fora compartilhada entre estes personagens. Do mesmo modo, a rapidez com que o humilde Nassir (Thiago Martins, numa interpretação realmente valorativa) se envolve com a protagonista é dotada de semelhante imponderação, sendo deveras afoito o plano subjetivo no interior da van conduzida por ele, ao som de uma péssima versão de “Olhos nos Olhos” cantada pela graciosa Barbara Eugênia, quando sabemos que ele continua a pensar na mulher que acompanhou até o aeroporto, ao lado da filha pequena.
Aliás, as situações protagonizadas por Maria Isabel são insuportáveis, tamanho o descaramento forçoso na exalação do conjecturado carisma da menina, que desaparece em meio a detalhes desleixados como a exclamação “porcaria de vida!” no momento em que ela defeca ou o desdém frente a um sorvete de morango quando sabemos que a garota vive numa situação economicamente mui dificultosa com o pai, a ponto de precisar dormir no veículo que ele adquirira recentemente. As brincadeiras infantis no interior do aeroporto são o píncaro da desconexão classista, francamente vergonhosas quando comparadas à leveza das cenas do dia-a-dia nordestino mostradas no já citado “O Céu de Suely”.
No afã por encontrar um paralelo conteudístico com os variegados equívocos deste filme, talvez se possa encontrá-lo na telessérie “Alice” (2008), roteirizada e eventualmente dirigida por Karim Aïnouz, novamente em parceria com Marcelo Gomes, para o canal fechado HBO. Os enredos focados no arrivismo empresarial da protagonista desta série televisiva – que também deu origem a um díptico de telefilmes, sendo um deles [“Alice: O Primeiro Dia do Resto da Minha Vida” (2010)] dirigido pelo cineasta – têm a ver com a entrega precipitada de Violeta à depressão deambulatória que se segue ao repúdio marital inesperado de que foi vítima.
Se, por um lado, a cena em que ela não consegue se concentrar numa de suas atividades como dentista por causa da ansiedade emotiva é inconvincente, bem como a queda de bicicleta que ela sofre e que será mencionada ao longo do restante da projeção por conta das feridas epidérmicas decorrentes da mesma, por outro, o instante em que Violeta senta-se calmamente no matagal próximo ao local onde se instalou a filial de uma barulhenta agência de construção imobiliária é brevemente elogiável, tanto quanto as aparições de expressivos transeuntes em cenas de amostragem urbana. Afora isso, “O Abismo Prateado” é uma desagradável perversão do enredo de uma das mais belas canções românticas do Brasil, transformado na extensão vendável de um manual de auto-ajuda psicológica para mulheres aquisitivamente bem-sucedidas que não sabem lidar com imprevistos emocionais. Um lamentável retrocesso na filmografia de um dos mais interessantes cineastas brasileiros surgidos nos últimos anos!
Wesley Pereira de Castro.
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