É difícil comentar com seriedade um filme que é descaradamente exibido pela metade e que, para disfarçar o inconveniente folhetinesco, exibe “cenas do próximo capítulo” durante os créditos finais. Porém, apesar do sobejo de situações ridículas, “Ninfomaníaca – Volume 1” não é de todo desprezível: por mais bizarramente submetido às exigências eróticas de mercado que o diretor Lars von Trier, outrora consagrado por seu invencionismo formal, se demonstre nesta produção e por mais incômoda que seja a interpretação asséptica da bela Stacy Martin, pululam os protótipos de discussão envolvendo este (meio-)filme.
Não obstante o infinitésimo desconforto instaurado pelos minutos de tela negra na abertura– o que faz com que empolguemo-nos precipitadamente, imaginando que o cineasta manterá ativo o seu fulgor autoral provocador – a cena imediatamente subseqüente traz uma canção da banda germânica Rammstein (“Führe Mich”) na trilha sonora, uma opção tão inusitada quanto oportuna que deixa claro a intenção de tornar a obra acessível em termos de vendabilidade fonográfica.
Ao som desta canção, acompanhamos a câmera perscrutar um beco, no qual Joe (Charlotte Gainsbourg, automática e desenxabida) está desfalecida no chão. Ela é encontrada por Seligman (Stellan Skarsgard, ator preferido do diretor, numa atuação monocórdia e impessoal), que, constatando que ela fora brutalmente espancada, pergunta-lhe se ela quer que ele chame uma ambulância ou a polícia. Ela recusa ambas as opções assistenciais, dizendo que basta-lhe uma xícara de chá com leite. Ao ser levada para casa pelo pacato senhor de ascendência judaica, ela insiste em se autodepreciar como um péssimo ser humano. Seguem-se os primeiros cinco capítulos de sua estória permeada pela sexualidade irrefreada...
Servindo-se de uma comparação sugerida por seu resgatador entre o ‘hobby’ da pescaria e a disponibilidade sexual, Joe inicia a narrativa do primeiro capítulo da trama (“O Pescador Perfeito”) confessando que descobrira a sua vagina (mencionada numa terminologia propositalmente chula) aos dois anos de idade. Vemo-la, ainda criança, brincando com uma amiguinha loira, experimentando arremedos de masturbação no chão do banheiro. No capítulo seguinte (“Jerôme”), a narradora apresenta-nos àquele que regressará futuramente como o homem por quem ela se apaixona, interpretado por Shia LaBeouf. Na cena em que ela pergunta-lhe se ele está disposto a romper a sua virgindade, ostenta-se um dos maiores defeitos do filme: o seu pendor excessivamente tautológico.
A protagonista menciona que fora sacolejada três vezes na vagina por seu parceiro sexual, e cinco em seu ânus. Aparece na tela, em algarismos enormes, os números 3 e 5, acrescidos de um sinal de soma que faz com que o audiente judaico estabeleça um paralelismo com padrões artísticos parcamente justificados. Quando ela reclama que, após a ejaculação do amante, fora tratada como um saco de batatas, surge justamente um saco de batatas sendo revirado, opção imageticamente pleonástica que ressurge em diversos momentos da narrativa, como quando Seligman conclama que “se alguém tem asas, não pode deixar de voar” (e aparece um pássaro voando) ou quando Joe demonstra a Jerôme que pode estacionar um veículo num dado espaço e diversos vetores atravessam a tela. No mesmo capítulo, as derivações atabalhoadas do relacionamento titubeante entre Joe, que consegue emprego como secretária inexperiente, e seu patrão Jerôme, que assume o cargo empresarial de um tio doente, beiram a puerilidade, incorrendo em situações involuntariamente engraçadas de tão dramaturgicamente constrangedoras. Até este segmento, por mais que o filme não seja completamente execrável, seguimos perguntando-nos: “aonde Lars Von Trier quer chegar com tamanha obviedade?”...
O terceiro capítulo do filme, “Sra. H”, tenta responder a este questionamento imediatista: malgrado o afobamento constitutivo da seqüência, não há como negar que a aparição de Uma Thurman, vivificando a angustiada esposa de um marido que a abandona no intuito de ilusoriamente viver com Joe, tem muitíssimo a ver com os perturbadores filmes anteriores trierianos: a extrema chantagem emocional que esta personagem inflige contra o seu marido, envolvendo os três filhos pequenos, tem variegados pontos em comum com situações constantes dos filmes que compõem “a trilogia do coração de ouro” do diretor.
Ou seja, tanto os conflitos amorosos de “Ondas de Destino” (1996) quanto as ofensas familiares de “Os Idiotas” (1998) e as acusações injustas de “Dançando no Escuro” (2000), além das condenações passionais de “Dogville” (2003), são emulados, num crescendo de angústia que só não é melhor por causa da presença apática de Stacy Martin e dos atores masculinos adultos desta seqüência (Hugo Speer e Cyron Melville). Mas, neste segmento, a montagem passa a apresentar os cacoetes elípticos que se tornaram uma marca registrada secundária do diretor.
O quarto capítulo (“Delirium”), por sua vez, apesar de ser muito requintado – inclusive sendo filmado em preto-e-branco – merece aplausos pelo ótimo trabalho fotográfico de Manuel Alberto Claro [que já trabalhara com o diretor em “Melancolia” (2011)] e pela entrega de Christian Slater ao seu personagem moribundo, ainda que o envolvimento familiar entre o seu personagem e a filha seja pouco convincente, o que não inviabiliza o efeito dramático pungente do enquadramento que mostra uma gota de lubrificação vaginal escorrendo pela perna de Joe logo após a morte de seu pai. Talvez seja o melhor capítulo do filme, portanto!
Em relação ao quinto capítulo, “A Pequena Escola de Órgão”, novamente equivocado em seus truísmos referenciais, há uma associação entre a condição tripartite da vida sexual de Joe em determinado período de tempo e o estilo polifônico da música bachiana, em que a subserviência de um dado amante equivale a um som monótono (porém basilar) inferior, a rusticidade de outro corresponde à vibração dos sons executados pela mão direita, e “o ingrediente secreto do amor” (representado pelo recorrente Jerôme) vincula-se à intensidade dos sons produzidos pela mão esquerda. Esses três componentes subdividem a tela, numa composição audiovisual interessante. De repente, o filme se interrompe quando Joe reclama que, mesmo apaixonada por Jerôme, não sente nada enquanto faz sexo com ele.
O que sobra? Rememorações vergonhosas (o instante em que várias garotas lúbricas recitam o mantra ‘mea vulva, mea máxima vulva’ enquanto notas musicais supostamente satânicas são extraídas de um piano), trechos narrativos imbecilizados (a seqüência em que Joe e uma amiga competem entre si para saber qual delas consegue transar com mais homens durante uma viagem de trem, estabelecendo um pacote de confeitos de chocolate como prêmio para a vencedora) e diálogos horrorosos (como quando Joe compara a sua vagina – ou melhor, a sua boceta, como ela mesma diz – a uma porta deslizante hiper-sensível de ‘shopping center’, que se arreganha até mesmo para as folhas que são trazidas pelo vento). É chocante perceber o talentoso e original Lars von Trier envolvido num projeto tão entreguista, aburguesado e anti-psicanalítico (no que tange ao desrespeito vilanaz contra os ensinamentos freudianos)!
Resta-nos aguardar que, no segundo volume da narrativa – que conterá mais três capítulos, perfazendo oito no total, que nem os solavancos durante a sua desvirginização –, ao menos Charlotte Gainsbourg possa se exibir como uma atriz audaciosa, explicando os motivos que conduziram ao espancamento de sua personagem e lidando com a previsibilidade situacional que torna deveras previsível que Joe foderá (em mais de um sentido do termo chulo!) com o seu casual redentor. Pode ser que este filme faça jus à piada que afirma que “sexo, mesmo quando é ruim, ainda é bom”, mas “Ninfomaníaca – Volume 1” é uma ejaculação precoce cinematográfica de baixo calão!
Wesley Pereira de Castro.
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